Rio de Janeiro - 3/5/2017 |
3/5/2017 |
3/5/2017 - Os autores e Roberto Menescal |
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Salvador - 10/5/2017 |
Variedades
Biografia
não autorizada de Caetano Veloso será lançada hoje em Salvador
Livro
escrito por Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco está pronto desde 2003;
sessão de autógrafos será às 19h, na Saraiva do Salvador Shopping
Ana Cristina Pereira (ana.pereira@redebahia.com.br)
10/05/2017
06:30:00Atualizado em 10/05/2017 11:10:03
Ninguém disse que seria fácil. Só que, lá no longínquo 1997, quando começaram a fazer a biografia de Caetano Veloso, os escritores cariocas Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco não imaginaram que teriam tantas dificuldades para transformar o sonho da dupla de amigos em realidade.
“Foi uma verdadeira odisseia tropical, não só pela longevidade, mas
também pelos obstáculos”, resume Carlos
Eduardo, 46 anos, que estará nesta quarta (dia 10) em Salvador, juntamente com
Marcio, autografando Caetano Uma Biografia – A Vida de Caetano Veloso, o Mais
Doce Bárbaro dos Trópicos (Editora Seoman), às 19h, na livraria Saraiva do
Salvador Shopping.
Além das dificuldades naturais
de contar a história de um personagem tão importante e polêmica da cultura
brasileira, os autores se depararam com a questão legal, já que, efetivamente,
não tinham a autorização formal de Caetano para a empreitada. Tinham apenas um “tudo bem”, conseguido por intermédio de
Rodrigo Velloso, irmão de Caetano, lá atrás, no começo do projeto. Foi Rodrigo,
a quem o livro é dedicado, que aproximou os autores de Santo Amaro, da família
Velloso e de muitos amigos.
Biografia de Caetano Veloso estava pronta desde 2003, mas o cantor e compositor não liberou publicação - Foto: Thereza Eugenia/divulgação |
Carlos e Marcio foram à luta,
levantaram uma grande bibliografia e entrevistaram 103 pessoas, incluindo o
próprio Caetano e alguns que já não estão mais entre nós, como a matriarca D.
Canô (1907-2012), o cantor e compositor Dorival Caymmi (1914-2008), o agitador
cultural Álvaro Guimarães (1943-2008), responsável por levar Caetano e Bethânia
para o mundo artístico, a fotógrafa Maria Sampaio (1948-2010), guardiã de um
rico acervo fotográfico sobre os Velloso, e o empresário Guilherme Araújo
(1936-2007), que trabalhou por décadas com Caetano.
Pronta desde 2003, a biografia
ficou este tempo todo na gaveta. Primeiro. porque a editora da época, a
Objetiva, recuou, diante da não autorização do músico. “Nunca sabemos realmente o que aconteceu, mas talvez ele não tenha
gostado”, diz Carlos, acrescentando que Caetano teria lido a primeira
versão. Depois, veio o debate sobre a publicação de biografias não autorizadas
no Brasil, que só terminou em 2015, quando o Superior Tribunal Federal (STF)
decidiu pela não necessidade de autorização prévia do biografado.
MUITOS DETALHES - Foi aí que a
dupla retomou o projeto. “Fizemos uma revisão, reescrevemos muita coisa e
escrevemos o posfácio”, explica Carlos Eduardo. O resultado está nas 544
páginas, um trabalho que exigiu fôlego dos autores, mas também exigirá de quem
se dedicar à leitura até o fim. Com um nível de “detalhamento profundo”, a
biografia, em muitos momentos, se torna cansativa e excessivamente descritiva.
A narrativa começa bem antes de
Caetano nascer, em Santo Amaro, e segue por sua meninice, tempos de Salvador,
São Paulo, Rio de Janeiro, exílio... - resgatando familiares, ex-professores,
ex-colegas, amigos, amores e músicos que tiveram mais ou menos importância na
vida do artista. “Queríamos mostrar e dar importância a todas as fases da vida
dele. Dar voz e tornar conhecidas pessoas que foram fundamentais para Caetano
ser quem ele é”, diz Carlos Eduardo. Eles não queriam, por exemplo, dar mais
peso ao Tropicalismo ou fazer uma análise crítica da obra de Caetano.
“Queríamos narrar os fatos em seus contextos, onde, quando e como as coisas
aconteceram”, Justifica Carlos Eduardo.
Da infância, por exemplo,
ficamos sabendo que o precoce Caetano gravou um disco rudimentar de presente
para uma prima, cantou antes de uma apresentação de Silvio Caldas e deu
boas-vindas a Juscelino Kubitschek em passagem do político por Santo Amaro. E
que também pensou seriamente em seguir pelo caminho das artes plásticas, como o
ex-colega conterrâneo Emmanuel Araújo. Depois, a aventura segue com os
bastidores da efervescência cultural da Salvador dos anos 60, onde os irmãos
santo-amarense conheceram Gilberto Gil e Gal Costa. E mais um monte de gente
fundamental como Tom Zé, Waly Salomão (1943-2003), Torquato Neto (1944-1972),
José Carlos Capinan e Tuzé de Abreu...
Ano a ano, a biografia elenca a
produção, as conquistas nacionais e internacionais e, claro, as muitas
polêmicas em que Caetano se meteu, como o bate-boca público com Paulo Francis
(1930-1997) e Fagner. E abre espaço para um Caetano namorador, que engatou romances
com Regina Casé, Vera Zimmerman, Sonia Braga e Paula Lavigne, tudo em paralelo
com seu casamento longo e aberto com Dedé Gadelha. “Nosso critério para colocar ou não uma história no livro era saber se
teve algum impacto na vida dele”, diz Carlos. Após a separação de Dedé, em
86, Caetano e Paula se casaram e ela passou a assumir todos os passos da
carreira dele.
Em 1976, Caetano, Gil, Gal e Bethânia se reuniram no Vila Velha para o show dos Doces Bárbaros - Foto: divulgação) |
ESTILO - Outra escolha dos autores foi por adotar
um estilo narrativo que não identifica a
fonte de determinada informação. As histórias estão lá, mas não sabemos
necessariamente quem contou. Um entre muitos exemplos: o primeiro encontro de
Caetano com o ídolo João Gilberto. Foi em Salvador, em 1965, na casa do
produtor Carlos Coqueijo. Foi ele que, sabendo da paixão do jovem pelo cantor,
fez o convite para o jantar. Acompanhado de Dedé, na época sua namorada,
Caetano mofou horas até que João aparecesse. O que só aconteceu depois dele ter
jantado, sozinho, no quarto. E ainda exigiu que o encontro fosse no escuro.
“Somos ligados à literatura, e para nós, uma
obra literária é como um sonho, não queríamos quebrar a magia. Queríamos que
fosse como um romance”, justifica Carlos. Se Caetano vai gostar ou não da versão final da
biografia agora não importa muito. O livro está na rua e os autores comemoram o
fato dele ter sido publicado, coincidentemente, nos 50 anos da Tropicália e nos
75 de Caetano – que completa em 7 de
agosto. Comemoram ainda o fato da publicação ser a primeira após a decisão
histórica do STF, “inaugurando uma nova fase do mercado editorial
brasileiro”.
3/5/2017 - Carlos e Wanderlino Nogueira |
3/5/2017 - Os autores e Mabel Velloso |
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S. Paulo - 13/5/2017 |
Editora Seoman, Livraria
Cultura e os autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco convidam todos
para o lançamento do livro 'Caetano - Uma Biografia' com uma programação
especial:
Dia 13/05, sábado
desde 16:00 até 19:00
16hs - Sessão de autógrafos
17hs - Pocket Show com Gilmelândia (Projeto: 'Gil canta Caetano')
Livraria Cultura | Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073 - Bela Vista / SP
desde 16:00 até 19:00
16hs - Sessão de autógrafos
17hs - Pocket Show com Gilmelândia (Projeto: 'Gil canta Caetano')
Livraria Cultura | Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073 - Bela Vista / SP
13/5/2017 - Foto Walquiria - Foco das Notícias |
13/5/2017 - Foto Walquiria - Foco das Notícias |
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DRUMMOND, Carlos Eduardo; NOLASCO, Marcio. Caetano
- uma biografia - A vida de Caetano Veloso, o
mais Doce Bárbaro dos Trópicos. Editorial Seoman. 1ª edição, 2017. 544 pág.
Foto da capa: Thereza Eugênia (1984) |
A biografia foi realizada de 1997 a 2004. Não foi publicada na época, por falta de autorização formal desse tipo de trabalho.
Carta
que teria sido escrita por Caetano Veloso, dando aval à obra
|
2013 - Marcio Nolasco e Carlos Eduardo Drummond
Foto: Rony Maltz / Folhapress
|
Sinopse:
Caetano Veloso dispensa apresentações, porém sua história e suas facetas ainda foram pouco exploradas. Existem livros que que abordam quase que exclusivamente a sua fase Tropicalista, porém, os longos trechos ainda desconhecidos de sua história não podem permanecer sem registro. Por isso, torna-se necessário contar sua trajetória de vida de modo amplo e irrestrito, com o respeito e a isenção que o artista merece. Este livro é resultado de uma pesquisa de vinte anos dos autores, e conta a história completa do carismático músico brasileiro, passando por todas as suas fases com igual peso, permitindo ao grande público entender e conhecer um pouco mais sobre Caetano Veloso.
Caetano Veloso dispensa apresentações, porém sua história e suas facetas ainda foram pouco exploradas. Existem livros que que abordam quase que exclusivamente a sua fase Tropicalista, porém, os longos trechos ainda desconhecidos de sua história não podem permanecer sem registro. Por isso, torna-se necessário contar sua trajetória de vida de modo amplo e irrestrito, com o respeito e a isenção que o artista merece. Este livro é resultado de uma pesquisa de vinte anos dos autores, e conta a história completa do carismático músico brasileiro, passando por todas as suas fases com igual peso, permitindo ao grande público entender e conhecer um pouco mais sobre Caetano Veloso.
Para
Rodrigo Velloso,
Antônio Nunes
e Maria Sampaio
Rodrigo Velloso,
Antônio Nunes
e Maria Sampaio
Índice
Prólogo 9
Capítulo
1 ● Lua de São Caetano 15
Capítulo
2 ● Rua do Amparo 31
Capítulo
3 ● Back in Guadalupe 47
Capítulo
4 ● Estrada da Vida 61
Capítulo
5 ● O Casarão Amarelo 75
Capítulo
6 ● [Re] União de Apóstolos 91
Capítulo
7 ● Nós , por Exemplo… 110
Capítulo
8 ● Casa, Comida, Diversão e Arte 131
Capítulo
9 ● A Manhã Tropical se Inicia 146
Capítulo
10 ● Tropicalismo: Vida, Paixão e Banana 167
Capítulo
11 ● Acorrentados 189
Capítulo
12 ● Frio, Drogas e Rock and Roll 211
Capítulo
13 ● Comecar de Novo 235
Capítulo
14 ● Uma Temporada Joia 255
Capítulo
15 ● Barbarizar… Sem Perder A Doçura 273
Capítulo
16 ● Dentro da Estrela Azulada 295
Capítulo
17 ● O Que É Que o Baiano Tem? 315
Capítulo
18 ● Conexões Internacionais 337
Capítulo
19 ● Baião de Dois 357
Capítulo
20 ● Chiclete com Banana 377
Capítulo
21 ● Uma Nova Ordem Musical 397
Capítulo
22 ● Circulando Mundo Afora 417
Capítulo
23 ● Vamos Comer Caetano? 437
Capítulo
24 ● Discos, Livros e Tudo Mais 457
Capítulo
25 ● Prenda Minha, Tua, Dele… 477
Capítulo
26 ●Tomar o Mundo Feito Coca-Cola 495
Posfácio 517
Agradecimentos 529
Índice
de Músicas 533
Obras de
Caetano Veloso 534
Fontes 536
Créditos 542
PRÓLOGO
Música e cinema. Essa
combinação deu certo desde as primeiras sessões no Eden francês, onde as
primeiras obras foram exibidas no cinematógrafo dos irmãos Lumière, lá pelos
idos de 1895. Apesar de a película ainda não conseguir registrar som em
paralelo, as apresentações eram acompanhadas por música de toda espécie. Cinema
e música. Continuou assim quando o som se fez presente na voz pioneira do
cantor de jazz Al Jolson. Daí para o cenário atual, foi um longo caminho dentro
de uma sequência evolutiva natural. Em algum ponto dessa estrada luminosa,
entre os anos 1940 e 50, Caetano Veloso pegou esse bonde para as estrelas e
dele nunca mais desceu. Ainda na infância se deixou levar pelas luzes que saíam
da tela grande e logo entendeu sua magia arrebatadora. Nunca esqueceria as
lágrimas de seu Agnelo Rato Grosso, matuto rude, que reconhecia nos filmes de
Federico Fellini a história de sua própria vida. E em Fellini também passou a
se reconhecer. Chorou por Giulietta Masina, suspirou ao lado de Dasinho e
aprendeu com Chico Motta a gostar de Gene Kelly nas noites claras da Praça do
Rosário. O traquejo com as palavras o levou a escrever críticas em O Archote e
a ler os Cahiers du Cinéma. E mais. A paixão pelas divas, a fraternidade com
Álvaro Guimarães e Glauber Rocha, as participações em filmes de Júlio Bressane
e Cacá Diegues, os trabalhos com Neville d’Almeida e Fábio Barreto. A amizade
com Pedro Almodóvar e o reconhecimento a Michelangelo Antonioni. Teve até seu O
Cinema Falado. Se nem tudo na vida dele mantinha relação com o cinema, muita
água desse rio de sonhos banhou momentos de sua vida. Tanto assim que o ano de
2002 revelou-se prolífico nesse ramo da arte. Primeiro foi a ponta em Fale Com
Ela, de Pedro Almodóvar, cantando “Cucurrucucu Paloma”. Depois, o inusitado
convite para gravar “Burn it Blue”, tema do filme Frida, de Julie Taymor. Este
o levaria ainda mais longe. Ou não. Atribulado por uma série de compromissos no
primeiro semestre daquele ano, não pôde ir aos Estados Unidos para fazer o
trabalho. Além disso, a música pareceu-lhe grandiosa demais para uma voz com o
timbre da sua. Mas a singeleza de seu canto era exatamente o que a diretora
queria. Ouvi-lo seria como ouvir Diego Rivera encantado pelo magnetismo
exuberante de sua Frida Kahlo. Ainda mais tendo como contraponto feminino na
canção, a presença morena da mexicana Lila Downs, outra artista acostumada a
rodar este mundo com desenvoltura. Tinha de ser Caetano. E Julie sabia ser
persistente, como prova uma passagem de sua história. Para conseguir encenar
seu musical O Rei Leão, na Broadway, precisou dobrar vozes dissonantes até
mesmo da própria Disney. Alguns produtores da divisão teatral da empresa
achavam uma temeridade a montagem ganhar a luz do palco. Não tinham ideia do
megassucesso que quase deixaram de lado. Encenado sem interrupção desde 1997, o
espetáculo atrai milhares de pessoas todos os anos e continua a correr o mundo
sempre envolto da mesma fascinação. Se Frida faria algo semelhante ainda não
dava para dizer, mas a certeza particular de Julie Taymor é que contaria com a
voz do cantor brasileiro Caetano Veloso. Vencidas as barreiras, Julie e o
maestro Elliot Goldenthal, seu marido e também autor da música, desembarcaram
no Brasil acompanhados da cantora Lila Downs, para gravar com o baiano. Os
trabalhos aconteceram no Rio de Janeiro. Foi tudo muito rápido, mas ficou um
cheirinho bom no ar. Corria o início de 2002. Meses depois, em novembro, nessas
andanças da vida, Caetano passava por Nova York em sua turnê norte-americana,
quando o casal eufórico foi vê-lo. Prenunciavam a indicação ao Oscar. Seria
algo inédito apenas para Julie Taymor, uma vez que Goldenthal conseguira a
façanha por conta de trilhas incidentais como as de Entrevista com o Vampiro e
Michael Collins: o preço da liberdade. Mais comedido, Caetano preferia esperar
até fevereiro do ano seguinte, quando a Academia anunciasse oficialmente os
indicados. Como em um roteiro bem planejado, o anúncio se confirmou e a
felicidade bateu fundo. O filme obteve seis indicações ao Oscar, entre elas as
de melhor trilha e melhor canção. Tudo conspirava para que Caetano fosse também
o intérprete de “Burn it Blue” na festa do cinema mundial. A escolha abriria um
precedente histórico: pela primeira vez um cantor brasileiro teria a chance de
se apresentar ao vivo na cerimônia de entrega do prêmio. E bem que poderia ter
um parceiro à altura. Cidade de Deus, longa-metragem dirigido por Fernando
Meirelles, escolhido pelo Ministério da Cultura como representante brasileiro
para concorrer à estatueta de melhor filme estrangeiro, não conseguiu ver sua
candidatura prosperar. Ao menos naquele momento, a premiação ficaria na
saudade. A chance de o filme concorrer de fato só vingaria no ano seguinte e a
injustiça seria corrigida com juros e correção monetária. Na festa de 2003, Caetano
poderia ser o exclusivo representante do Brasil. O plano começou a ganhar mais
corpo quando o Carnaval chegou, e com ele Julie Taymor e Elliot Goldenthal.
Além de aproveitar o agito de Salvador, o casal queria acertar os detalhes para
a cerimônia de entrega do Oscar. Nada apagava uma ideia da cabeça de Julie: o
cantor brasileiro apresentaria a música também na cerimônia. A pouco mais de um
mês de sua realização, e-mails recebidos por parte da Academia e da Miramax,
distribuidora do filme, tratavam de tirar qualquer dúvida sobre sua
participação. No meio de todo o disse me disse estelar, Caetano Veloso estava
garantido na festa. E ela só não seria completa porque havia a perspectiva de
uma guerra EUA versus Iraque eclodir a qualquer momento. O problema era pior do
que se imaginava. Osama Bin Laden, esse falso profeta, decidira abalar
estruturas quando enviou aos ares seus anjos da destruição. Derrubadas as
torres gêmeas, demonstrou o poder de seu desvario. O mundo mudou desde 11 de
setembro de 2001. Passada a tormenta, nada mais seria como antigamente. A essa
altura, as consequências do atentado ganhavam a forma de um ultimato, lançado
por George W. Bush, o filho, em 17 de março de 2003. O presidente americano
deixou o mundo perplexo ao comunicar pela TV que o ditador Saddam Hussein teria
48 horas para deixar o Iraque. Desde que George H. W. Bush, o pai, tinha
invadido o país nos anos 1990 sem conseguir derrubar o chamado “regime do mal”,
uma pulga persistia atrás da orelha. Motivado pelos fracassos na caçada a Bin
Laden, apoiado na falácia da produção de armas de destruição em massa e para
justificar a fortuna aplicada em medidas antiterroristas, Bush escolheu o
caminho da guerra. A decisão não tinha apoio do Conselho de Segurança da ONU, o
que, cá entre nós, de pouco importava. Se o ditador não saísse por conta
própria, os EUA e seus aliados se encarregariam de tirá-lo de lá à força. E
Bush, o “rei da brincadeira”, dizia a verdade; Saddam, o “rei da confusão”, não
acreditava e aguentou tão firme quanto podia. Expirado o prazo, uma chuva de
bombas desabou sobre as terras antes mágicas de Bagdá. Entre bombas e Brigitte
Bardot, a grande maioria prefere a segunda opção. A indústria do cinema também.
Apesar do clima de instabilidade, a Academia decidiu manter a cerimônia de
premiação na base da velha máxima the show must go on. A guerra estava em
andamento, quando Caetano Veloso e Paula Lavigne viajaram para os EUA. A
entrega do Oscar aconteceria em 23 de março, no Kodak Theatre, em Los Angeles.
Depois de 74 edições, finalmente o evento ganhava uma casa para chamar de sua.
Localizada no coração do Hollywood Boulevard, pertinho da “Calçada da Fama” do
Chinese Theatre, onde as estrelas, mais e menos conhecidas, deixam suas marcas
no concreto do chão. E se no local, nove entre dez turistas disputam o gosto de
sentir os pés sobre as “mãos” de Marilyn Monroe, seria mais difícil ainda
chegar até a porta do teatro. Para evitar maiores problemas, não haveria a
tradicional aglomeração de curiosos na entrada. O espaço aéreo estava
controlado; os arredores, cercados; e as ruas em volta, isoladas. Podese dizer
que, por medida de segurança, havia mais policiais que caçadores de autógrafos.
Nas ruas próximas, ninguém entendia nada. A manifestação de um lado era a favor
da guerra, a passeata do outro, contra. Ao menos ali, ninguém matava, ninguém
morria. É o lado bom de haver lugares onde se respeita a opinião do outro.
Coisas da democracia. Dentro do teatro, o clima era parecido. Os pinguins
engomadinhos de gravata borboleta que organizavam o movimento recomendavam
evitar discursos políticos. Naturalmente a orientação era posta de lado pelos
“Che Guevara” de plantão. O galã mexicano Gael García Bernal, antes de chamar
Caetano Veloso e Lila Downs, deu sua espetada elegante naqueles imperialistas
que gostavam de dar porrada em outros, quase todos barbudos. Lembrou que Frida
Kahlo “pintava sua realidade e não seus sonhos”. Em seguida, emendou dizendo
que “a necessidade de paz no mundo não era um sonho, era uma realidade”. E só
depois de emitir tais palavras anunciou, com muitos elogios, a entrada dos
intérpretes de “Burn it Blue”, tema de Frida. O filme conta a história da
pintora mexicana Frida Kahlo. Na interpretação do tema, Caetano Veloso,
brasileiro, cantou em inglês, e Lila Downs, mexicana, em espanhol. A combinação
de culturas, o tom épico da canção, o brilho pessoal dos artistas no palco. Por
alguns momentos foi possível esquecer que o homem, além de produzir um
espetáculo artístico de rara beleza, é capaz de fazer a guerra, matar seus
semelhantes. No fim da apresentação, enquanto a plateia hollywoodiana aplaudia
com entusiasmo, o cantor brasileiro, abraçado a Lila, fazia questão de
agradecer em bom português: “Obrigado!” “And the winner is…” Como tantos
cinéfilos, Caetano já tinha ouvido pela TV a categórica frase que anunciava
cada premiado. Não ouviria daquela vez. No fim dos anos 1980, os tempos do
politicamente chato a derrubaram em troca do “And the Oscar goes to...” E não
seria apenas essa parte que ele deixaria de ouvir... A escolhida como melhor
canção original foi “Lose Yourself ”, do rapper Eminem, tema do filme 8 Mile:
Rua das Ilusões. Embora Frida não tenha vencido nessa categoria, ganhou o Oscar
de melhor trilha sonora e melhor maquiagem. Indiretamente, Caetano também se
sentiu premiado. E não só por Frida, mas também por Fale com Ela, no qual fez
uma ponta sob a direção de Pedro Almodóvar. O Oscar de melhor roteiro original
foi parar nas mãos do amigo espanhol. Naquela noite ímpar, Caetano cantou no
idioma bretão, mas provou mais uma vez o quanto acha saborosa a língua de Luís
de Camões. Muitos pares de olhos cheios de cores assistiram à sua apresentação.
Jamais poderia se dizer que voltou de lá americanizado. Com seu singelo
“Obrigado!” ressoando baixinho, simbolicamente colocou na história do cinema
internacional a imagem desse país ilhado pelo idioma e quase totalmente
excluído da nova ordem mundial. Embora não fizesse tanta diferença para ele, um
fato não poderia ser ignorado. Caetano Veloso tinha se apresentado para o maior
público de sua carreira até então. Muitos foram os caminhos percorridos por ele
até chegar àquele momento, mas, como acontece com qualquer pessoa, tudo começou
num piscar de olhos.
♣
Você já foi à Bahia, meu nego? Não?! Então venha. Mergulhe nela com essa
força estranha, presença de todas as cores, nascida e criada nas regiões
profundas do ser do Brasil, que aqui é de papel, mas em outra verdade tropical
é concreta como o Planalto Central. A Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.
Muita sorte teve, muita sorte tem e muita sorte terá. Tudo lá faz a gente
querer bem. E é engraçada a força que as coisas parecem ter quando elas
precisam acontecer...
1
LUA DE SÃO CAETANO
Santo Amaro, Bahia • Brasil • Agosto de 1942
Seu Zezinho não era
afeito a jogos de azar, mas no dia em que comprou uma rifa para ajudar um
vendedor de Santo Amaro, ganhou um bilhete da loteria federal. O cestinho de
roupas do filho recém-nascido, perfumado com alfazema, parecia um bom
esconderijo, e ali ficou esquecido o mapa do tesouro. Bem que dona Canô
desconfiou do marido mexendo nas coisas do bebê, mas deixou por isso mesmo. Não
podia imaginar que a sorte grande sorriria duplamente para o casal. Quando deu
a notícia no rádio que o prêmio havia saído para a Bahia, teve gente rumando
cedo em direção ao telégrafo de Santo Amaro. O bilhete 24966 dava direito à
quantia de trezentos contos de réis. A soma considerável não deixaria ninguém
rico, mas ajudaria um bocado. O ganhador daquele sorteio pensava assim também.
Com uma família numerosa, seu Zezinho achou melhor dividir o dinheiro entre os
parentes. E olha que sobrou até para os amigos mais próximos. De qualquer
forma, o bilhete premiado seria apenas uma anunciação. Muitas alegrias ainda
estavam por vir para aquela família. Os Velloso moravam na rua Conselheiro
Saraiva nº 39, mas como na Bahia se dá apelido em tudo, era mais conhecida como
rua Direita. O velho sobrado em que viviam fora vendido por João Cardoso para
os Correios e Telégrafos, cujas atividades passaram a funcionar no mesmo
endereço. Localizada no trecho mais movimentado da cidade, a construção com
traços do século XIX se comunicava com a rua Direita pela frente, e com a rua
do Amparo pelos fundos. A ligação entre as duas vias e os portões sempre abertos
permitiam à vizinhança usar a passagem como atalho, mas isso não chegava a
incomodar quem trabalhava no local. O serviço era conduzido por José Telles
Velloso, o seu Zezinho, e sua irmã Jovina, a Minha Ju. Responsável pelo correio
e pelo telégrafo, seu Zezinho era o agente postal telegráfico, ou APT, como se
dizia na época. Disciplinado, levantava todos os dias às cinco da manhã para
fazer a chamada e conferir se as linhas estavam em condições normais de
operação. Com tudo checado, tomava o café da manhã nos fundos da casa, onde
ficavam a cozinha e a sala, e depois abria o correio. Enquanto Minha Ju operava
o telégrafo, seu Zezinho passava telegramas pelo telefone operado à manivela.
Dono de voz firme mas tranquila, às vezes precisava aumentar o tom para vencer
o ruído da linha precária. E só assim conseguia se comunicar com o operador de
São Francisco do Conde, localidade próxima a Salvador. O telégrafo ficava na
parte da frente da casa. Colocado inicialmente no andar de cima, desceu
conforme mais cômodos foram preparados para abrigar a família que não parava de
crescer. Vez por outra, diversão e trabalho se misturavam. As soluções químicas
necessárias ao funcionamento das máquinas exerciam fascínio natural nas
crianças. Na bateria eletrolítica, o azul produzido pelo sulfato de cobre
atraía as mãozinhas curiosas, mas a tentação em mexer diminuía quando o pai
explicava com paciência que aquilo não era brinquedo. Com o expediente dividido
em dois turnos, um pela manhã, outro à tarde, o trabalho exigia atenção
dobrada. Mesmo com a rotina cansativa, o respeito à profissão fez com que seu
Zezinho nunca tirasse férias. A estrutura enxuta do serviço, tocada por ele e
sua irmã, não o deixava confortável para esquecer, mesmo por alguns dias, a
obrigação que tinha com seus conterrâneos. O que poderia ser um fardo, no
entanto, deu-lhe um presente maravilhoso. O trabalho realizado na própria casa
permitiu que estivesse sempre presente. Além da convivência natural com a
família, pôde acompanhar o desenvolvimento de cada filho, primo ou sobrinho sob
sua tutela. Essa praticidade proporcionou uma união que de outra forma não
seria possível.
♣
No Nordeste do Brasil as estações nem sempre são bem caracterizadas como
em lugares onde claramente existe verão, outono, inverno e primavera. Em
agosto, no Recôncavo Baiano, e, portanto, inverno no Hemisfério Sul, os dias
são quentes, e as noites, frias. Na noite de 7 de agosto de 1942, o vento úmido
que soprava baixinho trouxe boas novas. Mais um filho de seu Zezinho e dona
Canô veio a este mundo. Às 22 horas e 50 minutos, sob o signo de leão, nasceu
Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso. Na ocasião nem todos da família
estiveram na plateia para assistir ao parto. Margarida e Mariinha, sobrinhas de
seu Zezinho, iam à Igreja toda sexta-feira, e aquela não tinha sido diferente.
Embora estivessem ansiosas pela chegada do primo, acharam por bem pedir aos
céus que dona Canô tivesse uma boa hora. E as preces foram atendidas. Quando
chegaram acompanhadas de minha Ju encontraram o menino repousando ao lado da
mãe. Dormia um sono tranquilo depois de aparado por mãos experientes. No
sobrado não havia criança que acreditasse em cegonha. Por mais que se contasse
esse conto da Carochinha, ninguém embarcava na história. Naquela família, todo
mundo sabia que para tirar criança da barriga tinha que trazer Iá Pomba e vó
Júlia, mães de seu Zezinho e dona Canô, respectivamente. Daquela vez, porém,
não foi assim. Apenas vó Júlia aparou o pequenino Caetano. Iá Pomba tinha
deixado saudades quase um ano antes, vítima de problemas cardíacos.
♣
Maria Clara Velloso, a Iá Pomba, era parteira, ou aparadeira, como se
costumava dizer na época. Nascida em Santo Amaro, conheceu e se uniu a José
Cupertino Telles, comerciante de Berimbau, hoje Conceição do Jacuípe. José foi
abrir uma casa de negócios na cidade e se apaixonou por Iá Pomba, que estava
viúva e cheia de filhos. De seu primeiro relacionamento teve Francisco, Maria
Pacífica, Arabela e Isabel. Nem a existência de toda essa filharada tirava o
ímpeto de José Cupertino em ser pai. Realizaria seu sonho antes da virada para
o século XX, com o nascimento de sua primeira filha, Jovina. Jovina Telles
Velloso foi batizada segundo o costume antigo, que pedia o sobrenome do pai
vindo antes do da mãe. Na tradição do apelido, embora o natural fosse chamar de
Jô, ou Jó, com o som aberto característico do sotaque baiano, acabou chamada de
Minha Ju. O possessivo ficava por conta do tratamento carinhoso da família.
Minha Ju ganhou um dengo todo especial do pai e teve educação digna de princesa.
Entrou para o Colégio das Irmãs Sacramentinas, onde lecionaria anos mais tarde.
Na instituição exclusiva para meninas aprendeu francês e a tocar piano. A
desenvoltura com o instrumento despertou também o interesse pelo canto. Com o
passar do tempo, Minha Ju uniu o útil ao agradável. Católica praticante, entrou
para o Coro Santa Cecília, da Igreja da Matriz da Purificação, e por muito
tempo faria ecoar sua bem colocada voz de soprano. Fosse na Matriz ou no
Rosário, em Oliveira dos Campinhos ou na Lapa, e onde houvesse festa, lá
estaria Minha Ju. Em coração de pai e de mãe sempre cabe mais um. Se Minha Ju
era a menina dos olhos da família, em 14 de outubro de 1901 nascia José Telles
Velloso, para dividir um pouco as atenções. Zezinho e Minha Ju cresceram juntos
sob a proteção dos pais e influência dos irmãos mais velhos. Francisco, o
primeiro filho de Iá Pomba, já era casado e morava em outra casa. Foi ele quem
estimulou os caçulas na educação. Homem de forte presença, proveu a família dos
recursos necessários e botou os mais novos para estudar. Zezinho gostava de
música, poesia, serenata e era bom aluno. Minha Ju não ficava para trás. Podia
parecer muito, mas não era suficiente. Influenciados por Francisco, os dois
resolveram prestar concurso para os correios. A aprovação chegou, mas nem todas
as notícias soaram boas. Precisariam colocar os pés na estrada. As vagas eram
para trabalhar em Salvador. Fazer o quê? O jeito foi encarar o desafio. O tempo
passou e alguns anos de experiência foram acumulados até surgir a chance de
retornar. Fizeram novo concurso, desta vez interno, e, pela boa classificação
obtida, tiveram prioridade de escolha. Passaram ainda por Ilhéus, mas não
demoraria muito até que estivessem de volta à tranquila Santo Amaro. Aliás, tranquila
naquela época. Bem antes disso, porém, índio não queria só apito...
♣
No início eram os índios Abatirás. Os primeiros colonos que chegaram ao
Recôncavo Baiano, lá pelos idos de 1557, perceberam que aqueles eram inimigos
dos Tupinambás e ficaram satisfeitos. Inimigo de meu inimigo é meu amigo.
Enquanto os nativos se matavam, os portugueses tomavam suas terras. Para
catequizar os sobreviventes, uma turma de jesuítas do Colégio Santo Antão de
Lisboa subiu pelas margens do rio Traripe. Ergueram a capela de Nossa Senhora
do Rosário e nos arredores cresceu o povoado. A paz foi ameaçada quando
divergências entre índios, colonos e jesuítas, levaram à morte um padre em
plena missa. O fato ocasionou uma diáspora e o início de um novo povoado na
margem do rio Subaé (1). Dizia Pero Vaz de Caminha que no Brasil em se
plantando tudo dá. O massapê, terra escura rica em húmus, era abundante
naquelas plagas. Sabendo disso, o 3º Governador Geral do Brasil, Mem de Sá,
chegou com seu engenho e mudas de cana-de-açúcar. Deixou tudo nas mãos de seu
filho e foi cuidar de outros assuntos no Rio de Janeiro. Ele só não contava com
a morte prematura do filho. Sem herdeiros homens na linhagem, apressou o
casamento da filha Felipa com Fernando de Noronha, o Conde de Linhares. O Conde
assumiu o engenho e expandiu a freguesia rumo ao interior, dando vez a outros
povoados, como Brotas, Saubara e Acupe. Com a antiga capela abandonada desde a
morte do padre, mandou construir uma nova dentro do próprio engenho, agora em
nome de Nossa Senhora da Purificação. Sem filhos com Felipa, sua devoção cristã
fez com que as terras fossem doadas ao colégio de jesuítas, depois de sua
morte. Em 1600, as terras foram repartidas em sesmarias, e um bom quinhão do
povoado ficou sob a tutela de João Ferreira de Araújo. Pouco tempo depois
formava-se o distrito. Para aumentar ainda mais o alcance da fé, a expansão
pedia também uma nova capela. Em 1667, construiu-se outra, desta vez em nome de
Santo Mauro, ou Santo Amaro na forma mais utilizada em português. Do abraço da
fé entre os povoados surgidos ao redor das duas igrejas, cresceu a localidade
denominada a partir de 1727 de Vila de Santo Amaro da Purificação. Em 1837, a
promoção de Vila à Cidade custou a terminação do nome, daí em diante denominada
apenas por Santo Amaro. Os responsáveis pela mudança, porém, esqueceram de uma
coisa: casamento que Deus ordena, homem não desfaz. A cidade seria para sempre
conhecida como Santo Amaro da Purificação.
♣
De volta à sua terra, Zezinho continuou a servir à comunidade. E voltou
a morar no sobrado da Conselheiro Saraiva. O agente postal ainda tinha direito
a se instalar na sede do correio. Melhor assim, pois eles precisariam mesmo de
espaço. Maria Pacífica tinha morrido e seus filhos, Edmundo, Mariinha,
Lindaura, Detinha, Nair e Zequinha, foram morar lá também. Arabela tinha se
casado com Silvino Salles, mas como ele trabalhava nas usinas de Santo Amaro,
ela e as filhas, Tereza, Mariana, Lourdes e Margarida, ficaram no sobrado.
Isabel, a Mãe Mina, única irmã solteira de Zezinho, também morava lá. Não perca
a conta. Com mais Iá Pomba e Minha Ju, ao todo eram 15 pessoas vivendo sob o
mesmo teto. E mais gente ainda estava para chegar. Eunice de Souza Oliveira, a
Nicinha, era filha de Domingos Gaudino de Oliveira, barbeiro que morava com a
mulher, Gracilina Souza de Oliveira, algumas casas depois do sobrado. Vivia
brincando na casa das meninas do telégrafo. Certa vez foi acometida de sarampo
e aí é que não sairia mais de lá. Ainda hoje a doença é perigosa se o paciente
não receber o devido tratamento. Naquele tempo os riscos eram ainda maiores.
Como não existia antibiótico, o medo fez o sobrado ficar de quarentena. Iá
Pomba foi escalada para cuidar da criança e Mariinha ajudava passando as noites
zelando Nicinha. Quando a febre baixou e os sintomas enfraqueceram, a afeição
se tornou tão grande que ficou difícil afastar-se da menina. Depois de curada,
Nicinha voltou a passar os dias no sobrado, só voltando em casa para dormir.
Acontece que lá não tinha Mariinha, e assim não daria para continuar. Aos
poucos foi ficando por mais tempo na casa dos Velloso, e, se já era tratada
como se fosse da família, passou a ser de fato. Zezinho acabou escolhido por
Nicinha para ser seu segundo pai. Cuidar de pessoas não chegava a ser uma
novidade para ele, responsável por aquela grande família. Em 1930, porém, ainda
não tinha casado nem tinha filhos. Só não demoraria a achar sua alma gêmea. No
início dos anos 1930, com a cidade girando em torno dos 16 mil habitantes, não
era difícil as pessoas se conhecerem ao menos de vista. Fora o cotidiano
normal, boa parte da população se encontrava em ocasiões festivas. Festa do
Padroeiro Santo Amaro, festa de Nossa Senhora da Purificação, Bembé do Mercado,
Ata da Vereação, 2 de Julho, festa de São Pedro. Encontros não faltavam naquela
cidade. E como se não bastasse, havia também os “assustados”, que eram festas
organizadas de improviso na casa de quem cedesse o espaço para a diversão.
Tendo sempre contato com aquela jovem bonita e de atitude, pequena, de cabelos
compridos e negros feito a asa da graúna, Zezinho já estava interessado em
conhecê-la. Só não sabia seu nome. Sem problema; um “passarinho” assoviou em
seu ouvido: Canô.
♣
Canô nasceu Claudionor Vianna, filha de Anízio Cesar de Oliveira Vianna
e Júlia Moniz Araújo. Assim como Iá Pomba, Júlia perdera seu primeiro
companheiro e já tinha filhos, Joana e Almir, quando conheceu Anízio. Ele era
fiscal do governo e morava em Salvador, mas por conta de suas andanças pelo
interior, conheceu Júlia e logo se apaixonaram. Dizer que foi paixão à primeira
vista seria pouco; foi um grande amor, o qual gerou como fruto uma linda
menina. Nascida em 16 de setembro de 1907, dia seguinte ao de Nossa Senhora das
Dores, Claudionor deveria se chamar Maria das Dores, pelo desejo da mãe. Embora
respeitasse a mulher, Anízio não deu ouvidos quando foi registrar a menina. Por
ser espírita, não queria um nome que lembrasse tristeza ou algo parecido. O que
tinha em mente fora rejeitado de pronto. Rechevé era um pouco demais e apenas
ele sabia o significado. Só quando ele voltou do cartório, Júlia soube da
novidade. Nem um, nem outro. O nome escolhido foi Claudionor. Certa vez, ele
não pôde comparecer ao aniversário da filha, mas lembrouse de enviar um poema
de presente. Mal sabia a menina que a falta dele em breve aumentaria. Canô
completava nove anos e não teria o pai por muito tempo. Anízio, que já tinha
idade avançada, faleceria pouco tempo depois. Com os filhos ainda pequenos,
Júlia voltou-se para o dom que Deus havia lhe dado. Era parteira e com isso
sustentava a família. Na verdade, não cobrava um tostão para tirar o bebê da
barriga da mãe. As famílias é que reconheciam seu valor e retribuíam de bom
grado. Mais tarde, com o casamento de Canô e Zezinho, formaria com Iá Pomba a
dupla de aparadeiras mais conhecida da cidade. Juntas, ajudariam a trazer ao
mundo boa parte dos meninos e meninas da Santo Amaro daqueles tempos. O apelido
Canô foi obra de Osvaldo Fiúza, amigo dos tempos de infância. Sendo a pronúncia
de Claudionor longa e complicada para uma criança, Osvaldo só conseguia dizer
Nô. Daí para Canô foi um pulo. O apelido pegou e virou muito mais que um nome.
Brincadeira de criança é coisa boa e Canô se “vingou” do amigo: Osvaldo virou
Dundum.
♣
O “passarinho” era um amigo em comum de Zezinho e Canô. Mário Cardoso
foi o cupido necessário para tudo acontecer. Canô, moça namoradeira, gostou do
par e o amor brotou fundo. Tão fundo que a partir dali, em todas as festas da
cidade, eram vistos sempre juntos e enamorados. E olha que Zezinho nem gostava
de dançar. Mas isso não atrapalhou. Entre uma festa e outra, trocaram juras de
amor e a relação seguiu em frente. Ainda não pensavam em casamento, mas já
sabiam que eram feitos um para o outro. Em menos de um ano, teriam de
considerar a possibilidade mais seriamente. Naquele momento, outra preocupação
sobressaía. Estavam arrumando as malas de Zezinho mais uma vez. Em fins de
1930, a situação mundial se complicava. Um ano antes, a Bolsa de Nova York
tinha implodido, piorando de vez a crise econômica que se abatera desde o fim
da 1ª Guerra Mundial. No Brasil, o dinheiro de investimentos estrangeiros
escorria pelo filtro de café, desde que o grão deixou de ser vendido ao mercado
externo. Não bastasse tanto azedume, Getúlio Vargas dava o golpe em Júlio Prestes,
presidente eleito. Tantas mudanças ocorrendo ao mesmo tempo e outro agente
telegráfico chegava à cidade. Até então Zezinho tocava o serviço muito bem com
Minha Ju no correio de Santo Amaro, mas a chegada do novo agente foi o estopim
para uma nova mudança. A convivência se mostrou complicada e a direção da
empresa decidiu pela transferência do funcionário mais antigo. Iria chefiar a
agência de Nazaré das Farinhas. A notícia o pegou desprevenido. Sem saber o
melhor caminho a seguir, mais uma vez ganharia apoio do irmão mais velho. Se
conselho fosse bom ninguém dava; vendia. Experiente, Francisco deu a melhor
dica que o irmão poderia receber: se tinha de ir embora, que fosse casado com
Canô e constituísse sua própria família. Zezinho matutava a ideia fazia tempo.
A transferência e a sugestão do irmão apenas apressaram as decisões. Assim
seria feito, mesmo que para isso algumas pedras tivessem que rolar.
Inicialmente, a família de Zezinho não aprovava o casamento. Canô era conhecida
por ser uma mulher à frente de seu tempo. O Brasil, aos poucos, deixava de lado
as oligarquias rurais e se urbanizava. Em Santo Amaro, a febre da
industrialização também dava o ar da graça. E foi um alvoroço quando João
Gualberto da Silva, o Sinhô, marido de Joana, irmã de Canô, comprou uma Fubica.
Canô não perdeu tempo e pediu para guiar o carro. Atendida pelo cunhado, não
foi longe, é bem verdade; limitou-se a dirigir por alguns metros além de sua
casa, mas tornou-se célebre a pioneira motorista da cidade. Mulher vaidosa,
Canô gostava de andar na moda, mesmo que para isso fosse necessário
escandalizar os padrões da cidade interiorana. As atrizes das matinês que
apareciam em cena, de calças compridas, eram seu modelo de consumo. Gostou da
novidade e aderiu. Coitado de Sinhô, sempre ele, que perdeu uma peça de seu
guarda-roupa. Por essas e outras, o casamento não era visto com simpatia pela
família do noivo. As pedras também existiam do outro lado. Júlia não via a
união com bons olhos. Seu Cupertino, pai de Zezinho, era negro e ela não queria
que a filha casasse com um mulato. O amor, porém, foi mais forte e, aos poucos,
as barreiras foram sendo quebradas. A intransigência racial realmente não
combinava com as famílias que estavam para se juntar; afinal, vó Júlia tinha
sangue índio, proveniente de sua avó. Na mistura, eles se encontraram e as
vaidades foram deixadas de lado. Em 7 de janeiro de 1931 casaram-se na Matriz
de Nossa Senhora da Purificação. A igreja tinha passado por uma grande reforma
poucos anos antes e estalava de nova. A cerimônia foi simples, restrita a
familiares e alguns convidados. A noiva não atrasou mais do que o de costume e
chegou a pé, depois de percorrer as ruas empoeiradas da cidade. O noivo, apesar
de tenso, não gaguejou na hora de dizer o “sim” que selaria o matrimônio. Dali
em diante, até que a morte os separasse, seriam 52 anos de convivência. A lua
de mel seria em Nazaré das Farinhas, onde Zezinho já era esperado para assumir
seu posto nos correios. Por ora, tinham que partir, mas sabiam que iriam
voltar. E nem demoraria tanto assim. Com poucos meses em Nazaré das Farinhas,
dona Canô percebeu que suas regras atrasaram. Não havia dúvida: estava grávida,
e seria mãe pela primeira vez. Seu Zezinho adorou a notícia. Pensava retornar a
sua terra e aquele parecia ser um bom sinal. Começou, então, a mexer os
pauzinhos. Para seus superiores de Salvador, demonstrou que, além de ter uma
família numerosa em Santo Amaro, tinha trabalhado lá muito tempo e conhecia a
rotina da agência de olhos fechados. Como se não bastasse, havia ainda a
notícia da gravidez. Era o pretexto de que precisava.
(1) “Onde Eu Nasci Passa um Rio”
1973 - Foto: Thereza Eugênia |
1979 - Foto: Thereza Eugênia |
1982 - Foto: Thereza Eugênia |
Revista ISTOÉ.
Edição nº 2471
20 de abril 2017
É proibido proibir
Com aval da Justiça,
biografia não autorizada de Caetano Veloso perfaz cronologia da vida e dos
bastidores da carreira do artista — sem se aprofundar na análise de sua obra
Celso
Masson
Caetano em 1979, durante ensaio na casa da fotógrafa Thereza Eugênia: expressão de uma era. |
Aos 74 anos, Caetano Veloso
ainda é uma das celebridades mais influentes do Brasil. Com uma singular
carreira que percorre um arco de seis décadas, o baiano nascido em Santo Amaro
da Purificação reinventou o cancioneiro nacional ao compor e interpretar
músicas que sobrevivem com a aura de clássicos atemporais. Transcendendo a
condição de artista, o filho mais abusado de Dona Canô se ateve desde cedo à
condição de personalidade provocadora, um transgressor nato que iria interferir
de forma profunda na vida cultural do País.
Figura-chave do movimento
tropicalista que sacudiu a MPB no final dos anos 1960, Caetano apresentou
programas de TV (em duas oportunidades, primeiro ao lado de Gilberto Gil,
depois com Chico Buarque), dirigiu um longa-metragem (“O Cinema Falado” em 1986), escreveu seu livro de memórias (“Verdade Tropical”,
1997) e publicou ensaios (“O Mundo não É Chato, 2005). Biografar alguém dessa
envergadura, que continua vivo, produzindo e causando, é por si só uma tarefa
hercúlea. Para completar, o irmão leonino de Maria Bethânia é sabidamente uma
das figuras mais narcisistas do meio artístico brasileiro, capaz de reagir de
forma irascível quando confrontado com críticas a seu trabalho, suas opiniões e
até as roupas que veste.
Autorização
Pois nada disso impediu os autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco a dedicar quase vinte anos a um exaustivo trabalho de pesquisa cujo resultado chega às livrarias na primeira semana de maio. Em 544 páginas, “Caetano — Uma Biografia” (Seoman) retrata de forma cronológica a trajetória do compositor de “Alegria, Alegria” desde antes de seu nascimento até 2016. “Foi um quebra-cabeça insano”, diz Drummond. A pesquisa começou em 1997 e foi interrompida em 2003, quando uma primeira versão do texto estava pronta. Quando pensavam que a obra ficaria para sempre engavetada, uma decisão do Superior Tribunal Federal liberando a publicação de biografias não autorizadas trouxe um novo ânimo. A pesquisa foi retomada, os autores fizeram novas entrevistas e atualizaram o texto final.
Pois nada disso impediu os autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco a dedicar quase vinte anos a um exaustivo trabalho de pesquisa cujo resultado chega às livrarias na primeira semana de maio. Em 544 páginas, “Caetano — Uma Biografia” (Seoman) retrata de forma cronológica a trajetória do compositor de “Alegria, Alegria” desde antes de seu nascimento até 2016. “Foi um quebra-cabeça insano”, diz Drummond. A pesquisa começou em 1997 e foi interrompida em 2003, quando uma primeira versão do texto estava pronta. Quando pensavam que a obra ficaria para sempre engavetada, uma decisão do Superior Tribunal Federal liberando a publicação de biografias não autorizadas trouxe um novo ânimo. A pesquisa foi retomada, os autores fizeram novas entrevistas e atualizaram o texto final.
O termo “biografia não
oficial” significa que o biografado não a encomendou e nem interferiu sobre o
que está escrito. Isso não quer dizer que ele a desautorize. Os autores
entrevistaram Caetano mais de uma vez e garantem que ele sempre teve uma
atitude positiva quanto ao livro, entendendo se tratar de uma obra independente
e sobre a qual ele não poderia ter qualquer controle. Apenas as imagens, tanto
da capa quanto internas, precisaram de autorização.
Por retratar alguém que
teve a maior parte da vida seguida muito de perto pela mídia, o livro não prima
pelas revelações surpreendentes. O que ele faz é detalhar episódios conhecidos,
como os tempos que Caetano passou na cadeia ou em Londres. Situações polêmicas,
como as poucas experiências com drogas (lança-perfume na adolescência, maconha
e ayahuasca no final dos anos 1960) que resultariam em total aversão e no
apelido “Caretano”, surgem com certa superficialidade. “No nosso entendimento,
um assunto só deveria ser aprofundado se fosse fundamental para compor o perfil
do biografado”, diz Drummond. Tal opção resulta em uma neutralidade excessiva.
“As portas da
percepção estavam abertas e começava a sua viagem. (…) Ao fechar os olhos,
pontos de luz colorida surgiam aos borbotões e dançavam sem parar”
[Trecho do livro que relata uma experiência de
Caetano com a ayahuasca]
Embora o livro seja rico em
informações que permitem compreender melhor o ambiente e as pessoas envolvidas
na formação do artista, falta uma visão mais analítica das atitudes de Caetano
e do impacto de sua obra. Um evento decisivo como a histórica performance de “É
proibido proibir” no Festival Internacional da Canção de 1968, quando ele
passou um sermão na plateia, não mereceu no livro espaço maior que o de
bastidores das gravações de um disco sem grande repercussão.
A narrativa cronológica,
que simplifica o entendimento de uma vida complexa como a de Caetano, tem como
efeito colateral uma certa monotonia — algo bem diverso da natureza
intempestiva do biografado.
“Caetano é cada vez mais
complexo”
Carlos Eduardo Drummond
fala sobre os desafios de escreveu a biografia não autorizada de Caetano Veloso
Poeta, compositor de sambas
enredo e funcionário público federal a serviço da gerência de livros da
Funarte, no Rio de Janeiro, Carlos Eduardo Drummond não se considera um
biógrafo., Ainda assim, passou 20 anos envolvido com a pesquisa e a escrita de
“Caetano – Uma Biografia”, livro que lança na primeira semana de maio em
parceria com Marcio Nolasco.
ISTOÉ – Por que dedicar 20
anos a pesquisar a vida e a obra de Caetano?
Drummond – Foram 20 anos não ininterruptos. Houve um período intenso, de 1997 a 2003. Depois de 2015, com o pronunciamento do STF (permitindo a publicação de biografias não autorizadas) fizemos uma revisão minuciosa. Quando começamos, eu tinha 20 e poucos anos. Sentíamos uma carência de biografias longas de nomes importantes da MPB. Pensamos no nome do Caetano e nos lançamos ao trabalho. Não imaginávamos o longo percurso que teríamos pela frente.
Drummond – Foram 20 anos não ininterruptos. Houve um período intenso, de 1997 a 2003. Depois de 2015, com o pronunciamento do STF (permitindo a publicação de biografias não autorizadas) fizemos uma revisão minuciosa. Quando começamos, eu tinha 20 e poucos anos. Sentíamos uma carência de biografias longas de nomes importantes da MPB. Pensamos no nome do Caetano e nos lançamos ao trabalho. Não imaginávamos o longo percurso que teríamos pela frente.
O que houve em 2003 para
pensarem a desistir?
Com um personagem como ele, ou se faz algo profundo ou é melhor desistir. Nós perseveramos mesmo depois de imaginar que o projeto precisaria ser engavetado em função do fato de ser uma biografia não autorizada e do entendimento que a Justiça tinha na época. Cheguei a ficar deprimido com essa possibilidade. Mas nunca me conformei com a ideia de desperdiçar tanto tempo – o nosso e de entrevistados, como Chico Buarque, Bethânia e outros que não estão mais vivos. A importância de o livro vir a público para nós era tão grande que seria uma injustiça deixar isso tudo para trás.
Com um personagem como ele, ou se faz algo profundo ou é melhor desistir. Nós perseveramos mesmo depois de imaginar que o projeto precisaria ser engavetado em função do fato de ser uma biografia não autorizada e do entendimento que a Justiça tinha na época. Cheguei a ficar deprimido com essa possibilidade. Mas nunca me conformei com a ideia de desperdiçar tanto tempo – o nosso e de entrevistados, como Chico Buarque, Bethânia e outros que não estão mais vivos. A importância de o livro vir a público para nós era tão grande que seria uma injustiça deixar isso tudo para trás.
Vocês entrevistaram o
Caetano?
Nós conseguimos entrevistar o Caetano. Sabíamos que ele deveria ficar para o final, para as perguntas que só ele poderia responder. Antes disso, outras pessoas que havíamos entrevistado ajudaram a formar uma imagem positiva do nosso trabalho. Ele nos disse claramente que o livro era nosso e deu liberdade. Não houve desautorização da parte dele.
Nós conseguimos entrevistar o Caetano. Sabíamos que ele deveria ficar para o final, para as perguntas que só ele poderia responder. Antes disso, outras pessoas que havíamos entrevistado ajudaram a formar uma imagem positiva do nosso trabalho. Ele nos disse claramente que o livro era nosso e deu liberdade. Não houve desautorização da parte dele.
Em algumas passagens há a
impressão de que vocês tentaram evitar assuntos polêmicos…
O debate que surgiu em 2013 foi entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão. No nosso entendimento, se o assunto fosse importante para o suficiente para compor o perfil do biografado, deveria entrar no livro. A gente não entra em detalhe muito analítico.
O debate que surgiu em 2013 foi entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão. No nosso entendimento, se o assunto fosse importante para o suficiente para compor o perfil do biografado, deveria entrar no livro. A gente não entra em detalhe muito analítico.
O que o livro traz de novo?
Tivemos acesso a muito material inédito. O livro coloca numa tacada só desde a origem dele, antes mesmo de nascer, até 2016. Caetano é cada vez mais complexo. Ele se enriquece continuamente.
Tivemos acesso a muito material inédito. O livro coloca numa tacada só desde a origem dele, antes mesmo de nascer, até 2016. Caetano é cada vez mais complexo. Ele se enriquece continuamente.
OS AUTORES: Nolasco (à esq.) e Carlos Eduardo Drummond: falta de uma biografia de Caetano estimulou a dupla a trabalhar no livro por 20 anos |
Serviço:
“Caetano – Uma Biografia: a vida de Caetano Veloso, o mais doce bárbaro dos trópicos”, de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco. Selo Seoman (Grupo Editorial Pensamento), 544 páginas, R$ 59,90
Lançamentos com noite de autógrafos:
- 03/05, às 19 horas, na Livraria da Travessa/ Shopping Leblon – Av. Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon, Rio de Janeiro/RJ.
- 06/05, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional – São Paulo, horário a confirmar.
- 10/05 Livraria Saraiva Salvador Shopping – Salvador, às 19 horas.
O GLOBO
Livros
Cultura
Biografia não autorizada de Caetano reúne
arrazoado de histórias
CAETANO RECONTADO
Sem preocupação analítica, autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco vão da infância à maturidade do compositor
por Leonardo Lichote
21/4/2017
O compositor em ensaio na casa da fotógrafa,
Thereza Eugênia, 1979. Foto está em "Caetano - Uma biografia" - Thereza Eugênia / Divulgação
|
RIO — O prólogo de “Caetano — Uma biografia — A vida de Caetano Veloso,
o mais doce bárbaro dos trópicos” (Seoman), de Carlos Eduardo Drummond e Marcio
Nolasco, traz a cena de Caetano Veloso cantando “Burn it blue” na cerimônia de
entrega do Oscar, em 2003. Nas páginas seguintes, desfolha-se a árvore
genealógica santamarense do artista, a vida de seus avós e pais, até seu
nascimento, a descoberta das letras (decorando versos de Castro Alves e Arthur
de Salles), da música (as melodias cantadas pela mãe Canô, o rádio em casa, as
sociedades filarmônicas da cidade), do amor (aos 8 anos, a primeira namorada, a
menina Dó). O livro — cujo lançamento será no dia 3 de maio na Travessa do
Leblon — desenrola-se entre as duas pontas, traçando o caminho que levou o
compositor de Santo Amaro a Hollywood, desde sua formação, passando por suas
escolhas estéticas (a aproximação com o samba-reggae em “Livro”, o
experimentalismo de “Araçá azul”), pelas polêmicas em que se envolveu (com a
crítica, com o público, com Fagner, com Décio Pignatari), por questões de sua
vida pessoal (as paixões, o casamento aberto com Dedé, o início do romance com
a adolescente Paula Lavigne, a perda de uma filha recém-nascida).
MAIS DE CEM ENTREVISTAS
O abrangente apanhado, mais descritivo do que analítico, não traz teses ambiciosas sobre Caetano. Seu mérito é reunir histórias conhecidas do artista — contadas por ele mesmo em seu livro “Verdade tropical”, de 1997, ou em depoimentos ao longo das últimas décadas — e detalhes inéditos, colhidos em mais de cem entrevistas feitas pelos autores desde 1997, quando decidiram escrever o livro. Entre os entrevistados, estão familiares como Dona Canô e Maria Bethânia, artistas como Gal Costa e Chico Buarque, amigos de infância e músicos, além do personagem central.
Drummond, que até então tinha publicado apenas um livro de poesias,
explica por que ele e Marcio Nolasco escolheram o baiano para biografar. — O
primeiro personagem em que pensamos foi Roberto Carlos, mas logo percebemos as
dificuldades de trabalhar com ele, algo que pudemos confirmar anos depois
acompanhando os problemas que Paulo Cesar de Araújo teve (sua biografia do
Rei foi proibida e recolhida das livrarias). Então decidimos por Caetano,
sabendo desde o início que não podíamos ficar no meio- termo: ou faríamos
direito, ou nem começaríamos. Fizemos um levantamento monstruoso de periódicos
e livros, fomos diversas vezes a Santo Amaro e a Salvador, visitamos todas as
escolas em que ele estudou, localizamos personagens que ninguém procurou desde
os anos 1960, como Johnny Dandurand, o hippie que invadiu o palco enquanto
Caetano cantava “É proibido proibir”.
1968 - Johnny Dandurand, o hippie americano que invadira
o palco do Festival Internacional da Canção enquanto Caetano e os Mutantes
cantavam "É Proibido Proibir"
|
Desenho em aquarela feito por Caetano Veloso.
Início dos anos 1960
Imagem cedida por
Fernando Barros / Divulgação |
O escritório de Caetano, comandado por sua mulher e empresária, Paula
Lavigne, preferiu não se envolver com o projeto — que sai com status de
“biografia não autorizada”. O autor conta que, por isso, a Objetiva, editora
que originalmente publicaria o livro, em 2004, se retirou, temendo problemas.
“Caetano — Uma biografia” ficou engavetado até 2015, quando foi retomado, desta
vez pela editora Seoman. A versão que enfim sai agora foi totalmente revisada e
ganhou um posfácio, que cobre em poucas páginas a última década, o que inclui a
trilogia com a Banda Cê e a participação de Caetano na formação da Associação
Procure Saber, que, entre suas causas, defendia a obrigatoriedade de
autorização prévia para a publicação de biografias — causa perdida, aliás.
— A decisão do STF, em 2015, que derrubou a necessidade de autorização
prévia para biografias, permitiu que o livro fosse publicado agora — conta
Drummond. — Mas é importante ressaltar que “não autorizada” não é sinônimo de
“desautorizada”. Caetano e Paula Lavigne autorizaram o uso de fotos, como a da
capa (o livro transcreve um parecer de Caetano, dizendo que o que viu do
material levantado pelos autores animou-o a “encorajar a continuação da
pesquisa”).
Drummond vê o livro que escreveu com Nolasco (que tem como última frase
a evocação: “Vida longa e próspera a Caetano Veloso!”) como complementar a
“Verdade tropical”:
— “Verdade tropical” é o olhar dele, suas impressões, naquele tom
ensaístico e memorialista próprio dele. Nós pusemos essa perspectiva em diálogo
com outras.
Trecho
“Vai atirar em Caetano, pensou”
“No meio do tumulto, aproveitou o momento em que recitaria o poema de Fernando Pessoa e iniciou um esporro monumental: ‘Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?!...’ Assustada, a plateia se virou para ver e deu início à selvageria. Tomate, latas, ovos, pedaços de pau, eram atirados ao palco, enquanto Caetano, aos gritos, continuava o sermão. ‘... Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém...’ Na plateia, Dedé assistia a tudo horrorizada, ao lado do bailarino Lennie Dale. No calor da confusão, viu um homem armado seguir em direção ao palco. “Vai atirar em Caetano”, pensou. Não fossem seus gritos, talvez a segurança não tivesse despertado para o que ocorria. O indivíduo foi arrastado para fora por seguranças e ainda levou uns catiripapos no pé da orelha.”
- - -
“Nos ensaios, Caetano conversava com Nara Leão, quando Fagner se aproximou. Sempre muito simpática, Nara trocou algumas palavras com o cearense. Já Caetano fingiu que nem era com ele. Ficou de costas para o jovem talento que começava a despontar. Fagner ficou sem entender. No fundo, tinha fascínio pelo baiano, queria ser como ele. Até chegar ali os dois já haviam se trombado algumas vezes pelo caminho. O ranço de um episódio anterior dera sua parcela de contribuição. Durante um encontro, pediram uma canja a Caetano, mas o cansaço não permitiu a reverência. Fagner, por sua vez, chegava motivado, cheio de gás. Nem tinha gravado disco ainda, mas trazia no bolso um repertório inteiro de boas canções. Não se fez de rogado e assumiu o posto. Saiu de lá aclamado pelos presentes. Rivalidade, vaidade, oportunismo, falta de química, muitos sentimentos se misturaram na ocasião. (...). Com o sucesso de seu primeiro LP, ‘Manera fru fru manera’, Fagner se tornou o xodó da gravadora e o paparico das grandes estrelas. Por outro lado, ‘Araçá azul’, de Caetano, continuava recordista em devoluções. O clima de ciumeira aumentou e o bolo desandou de vez.”
O Estado de S.Paulo
21
Abril 2017 | 05h00
Cultura
Biografia de Caetano Veloso testa a nova
ordem do mercado editorial
Sai o primeiro livro não autorizado a sair
depois da nova Lei das Biografias, 'A Vida de Caetano Veloso, O Mais Doce
Bárbaro dos Trópicos'; aos ler os primeiros originais, Caetano os considerou
"de baixo nível literário"
Julio Maria
Anunciado
o ato literário que pode ser considerado como o primeiro teste à legitimidade
de uma nova ordem no mercado editorial: a biografia não autorizada de Caetano
Veloso. O homem que há quatro anos esteve no centro de um grupo de artistas que
defendia a preservação da intimidade em detrimento da liberdade irrestrita dos
biógrafos tem a vida exposta em 532 páginas escritas pelos autores Carlos
Eduardo Drummond e Marcio Nolasco. A Vida de Caetano Veloso – O Mais Doce
Bárbaro dos Trópicos levou ao todo 20 anos para ser publicado. Seus bastidores
poderiam render um outro livro (leia mais abaixo).
Até
chegar ao dia 19 de fevereiro de 1969, quando seria libertado depois de 54 dias
de prisão, Caetano amargaria a incerteza do destino e a iminência da morte.
Sairia em pele e osso e com a cabeleira vasta devidamente cortada, fechando o
ciclo de um suplício para começar outro. Entende-se por que Caetano, em
entrevistas como a que acaba de conceder para o documentário de Lúcia Veríssimo
sobre Severino Filho, líder do grupo Os Cariocas, se descontrola quando fala de
sua partida para o exílio. Ele faz questão de ajustar a história, não
suportando ouvir que partiu para Londres por vontade própria.
Ao
contrário de Gil, Caetano não tem uma adaptação fácil em Londres. As drogas que
Gil sugere para viagens sensoriais são recusadas pelo amigo, o que vai
caracterizar o traço “caretano” de Caetano. “A primeira experiência com as
drogas foi com o lança-perfume, que acaba sendo muito traumática a ele”, diz o
biógrafo. “Ele teve medo de morrer.” Com a ayahuasca, também passa mal.
“Diferentemente de Gil, seu organismo não aceita essas substâncias.”
Outra
sugestão de leitura importante da construção de sua personalidade está na
formação cultural do jovem reflexivo. Antes mesmo da música, que não parecia
deslumbrá-lo de início, suas atenções estavam voltadas à literatura, às artes
visuais e às muitas sessões de cinema de Santo Amaro, com filmes franceses e
italianos, e, eventualmente, de Salvador. “Acho Caetano um grande artista
plástico”, diz Drummond. Ele coloca no livro um autorretrato do artista e
lamenta não ter incluído uma série de pinturas da cantora Maysa.
O
caldo que sorve dessas fontes com a sede dos 16 anos mistura-se ao conhecimento
do ensino formal de colégio, que Caetano também aproveita bem, e acaba por dar
forma a uma sensibilidade holística na qual tudo parece se misturar. Quase se
entende que a música nem é o principal para ele, mas apenas o veículo de
expressão ao qual se adaptou melhor. “Pintor ou professor? Cineasta ou
escritor? Quem sabe filósofo? Estava de volta à estrada sem saber se queria
estar nela ou não”, dizem os autores quando se aproximam de 1965.
Caetano
surge assim, “de fora para dentro”, enquanto o amigo Gil, mais especializado e
mais músico, emerge de dentro para o universo. Quando chega a Tropicália, fica
tudo mais nítido. Gil arquiteta o que Caetano já tem na alma. A derrubada de
muros entre gêneros, juntando pífanos de Caruaru com guitarras de rock-n’-roll,
ganharia forma nos festivais da TV Record e seria levada às últimas
consequências em shows como o da Boate Sucata, no Rio. “Acompanhado pelos
Mutantes, cantou deitado no chão, plantou bananeira, deu salto, cambalhota,
pintou e bordou”, conta o livro.
A história
avança e a temperatura cai. Anos 90: Caetano, sempre tropicalista, assume um
protagonismo na axé music. Anos 2000: seu peso na história o credencia cada vez
mais a viver dela. A produção de fatos biográficos fica mais rara e os
biógrafos precisam lutar para que seus textos não ganhem tons de release – o
que, fatalmente, acaba acontecendo. Um ponto de ebulição é retomado em 2013,
quando Caetano alinha-se ao grupo Procure Saber no debate contra as biografias
não autorizadas, mas já não existe emoção. A publicação parece tomar cuidados
para não desagradar ao biografado e o preço é a burocratização da narrativa. Ao
final do livro, uma frase de louvação faz o que nenhuma biografia deveria fazer
em prol de sua credibilidade: “Vida longa e próspera a Caetano Veloso!”.
Cantor
autorizou fotos mesmo achando de ‘baixo nível literário’
Segundo
Paula Lavigne, Caetano não quis participar do projeto por ter ‘sofrido lendo o
material que mandaram a ele’
Os
bastidores do livro que narra a vida de Caetano Veloso foram longos. Carlos
Eduardo Drummond, autor ao lado de Marcio Nolasco, calcula 20 anos entre o
início do projeto e agora. “Foram seis
anos de pesquisa e um de redação da primeira versão. Mas ele ficou engavetado entre 2004 e 2015,
até que retomamos o projeto.”
Drummond
diz que já tinha quase 100 entrevistas feitas quando procurou Paula Lavigne
para apresentar o projeto. “Mas acho que
ela tomou um susto, deve ter se perguntado ‘o que esses caras estão fazendo?’”
A editora original, Objetiva, exigia uma autorização do cantor por escrito, mas
Caetano não atendeu. Drummond e Nolasco propuseram um contrato coletivo, para o
livro ser assinado por todos, mas o músico também não aceitou. O livro foi
então engavetado e a Objetiva desistiu de lançá-lo.
Procurada
pela reportagem, Paula Lavigne diz que Caetano não aceitou participar do
projeto porque achou o texto fraco. “É de
baixo nível literário”, disse ele. Paula afirma que o cantor não quer se
pronunciar agora sobre o lançamento por estar em uma situação difícil. “Se falar mal, vão dizer que está proibindo
o livro. Se falar bem, vai mentir. Ele prefere o silêncio. Caetano é muito
apegado à língua portuguesa, sofreu muito lendo o material que mandaram.”
Ela diz ainda que não há nenhum fato narrado que incomode o músico.
Drummond
diz que o material que Caetano leu era uma versão muito inicial do projeto. “Nós reescrevemos, o livro mudou muito.”
À parte das polêmicas, Paula e Caetano Veloso assinaram as autorizações de
imagem para que a editora pudesse usar as fotos.
“E não fizeram nenhuma contrapartida para
isso”, diz o autor. “Se quiséssemos criar algum problema, não
autorizaríamos as fotos”, diz Paula.
Biografia que fez Caetano chorar (e depois torcer o nariz) sai da gaveta
27/4/201
Tiago Dias
Do UOL, em São Paulo
Muitos Caetanos: Cantor em 1972, em show após sua
volta do exílio, no Teatro João Caetano
Imagem:
Thereza Eugênia
|
Presa
há mais de dez anos em uma gaveta, a biografia de Caetano Veloso
finalmente
vê a luz na prateleira a partir desta quinta-feira (27). "Caetano -
Uma
Biografia: A Vida de Caetano Veloso, o Mais Doce Bárbaro dos Trópicos", de
autoria
de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, era a grande aposta de
2005.
A editora Objetiva estava animada com a pesquisa refinada de seis anos e,
principalmente,
com o aval do biografado.
“Ele
praticamente chorou [de emoção] quando viu alguns documentos que mostramos
a
ele pessoalmente”, relembra Carlos Eduardo. “Mas em determinado momento, e eu
particularmente
nunca soube o motivo, ele abandonou o projeto”. Temerosa com o
silêncio
repentino de Caetano, a editora abortou o lançamento e a biografia caiu
no
limbo.
O
livro só chega agora ao público, em versão revisada pelo selo Seoman, graças à
aprovação
da publicação de biografias não autorizadas, garantida há dois anos
pelo
Supremo Tribunal Federal (STF).
A
recusa de Caetano em participar ativamente do projeto, no entanto, nada tem a
ver
com embate de informações. “Caetano achou tudo de baixo valor literário”,
revelou
a empresária Paula Lavigne.
Conhecido
por broncas públicas no Instagram quanto ao uso correto da crase, o
cantor
“sofreu” com o material e pediu auxílio ao poeta Eucanaã Ferraz para que
ele
ajudasse a melhorar o texto, mas a parceria não vingou e a autorização
formal
ficou restrita apenas às imagens. Ao UOL, Lavigne confirmou que, mesmo
constrangido,
Caetano não fará “campanha contra”.
Poeta
e compositor de sambas-enredo, Drummond diz que não houve imposição
nenhuma
do biografado, muito menos autocensura. “Abordamos tudo que fosse para o
entendimento
do artista, sem citar nada gratuitamente, por sensacionalismo”,
observa.
A
exceção é a história de uma paixão que o cantor teve por um rapaz aos 19 anos,
que
foi deixada no ar em “Verdade Tropical”, livro de ensaio e memórias lançado
pelo
baiano.
“Estou
seguro de que não me teria negado a entregar-me de corpo e alma a uma
história
de amor com um rapaz por quem também me apaixonei aos dezenove anos,
caso
ele estivesse igualmente aberto afetivamente para mim...”, conta no livro
lançado
em 1997.
A
história não foi ignorada na pesquisa e foi um dos temas das conversas com os
entrevistados.
“Alguns diziam inclusive que ele era bastante mulherengo”,
reforça
Carlos. De frente com Caetano, o episódio foi minimizado. “Ele optou por
não
dizer quem era e não deu ênfase que aquilo teria tido impacto na vida e na
orientação
dele dali em diante. Percebemos que não estaria acrescentando em
nada”.
Caetano em ensaio na casa da fotógrafa Thereza
Eugênia em 1979
Imagem: Thereza Eugênia
|
Um filósofo desenhista
Carregado de passagens informais e ditados chavões,
“Caetano - Uma Biografia”
ganha crédito ao destrinchar a infância e formação
do compositor. “Havia uma
lacuna. É importante para um entendimento de quem
se tornou o Caetano. O artista
não nasce pronto”, explica o autor.
O primeiro contato se deu ainda em 1997 com o irmão
de Caetano, Rodrigo, que
ajudou a encontrar familiares e antigos amigos. O
resultado é um mapa afetivo e
intelectual de um estudante de filosofia que vivia
resfriado, tinha (e tem)
completa aversão a drogas e, embora tocasse piano e
fosse mais antenado que o
dial da rádio, passava horas a desenhar.
Assim, professores como Neide Candolina (que ganhou
música no disco
‘Circuladô’), amigos como Wanderlino (que lhe
apresentou Oswald de Andrade) e
até a prostituta santamarense Felícia (a quem
Caetano dedica os discos ‘Domingo’
e ‘Omaggio a Federico e Giulietta’) ganham o mesmo
espaço que parceiros
conhecidos como o poeta Capinam ou o empresário
Guilherme Araújo, midas dos
baianos nos anos 1960.
Sem partir para o embate, o livro toca em pontos
sensíveis, como a prisão do
baiano em 1968 pelos militares, as rusgas com o
cantor Fagner, o casamento
aberto com sua primeira esposa Dedé e o romance com
Paula Lavigne, iniciado
quando ela ainda era menor de idade.
“Eu considero a publicação um ato de coragem, dada
a complexidade do personagem,
dado o nível de interlocução com os mais diferentes
setores da sociedade e dos
mais diversos campos da arte e da cultura, que
tornam a vida dele um
quebra-cabeça enorme, difícil de ser biografado”, explica
Drummond.
Já com a opinião do biografado quanto ao estilo do
livro, o autor parece não se
incomodar: “Como ele mesmo diz: ‘Narciso acha feio
o que não é espelho’”.
Confira trechos da biografia:
DROGAS
Ninguém acreditava que um cara cabeça como ele, com
pinta de bicho-grilo, amante
da liberdade e representante da geração 1960, não
apertasse um baseado de vez em
quando. A realidade, no entanto, era outra. Das
drogas, Caetano continuava fora.
Isso não o impedia de ficar ao lado do parceiro na
hora em que ele mais
precisava. No centro das discussões, Gil levou à
frente suas ideias libertárias.
SÔNIA BRAGA
Afinal, o que é que esse baiano tinha? A mulherada
caía em cima. Naquela boa
fase, Caetano teria outro ‘affaire’ marcante. Dessa
vez trocaria as jovens por
uma felina experiente, bonita o bastante para
despertar desejo até em padre de
batina. Em meados de 1981, engatou um romance com a
tigresa Sonia Braga. Foi uma
tremenda onda, que deixou todo mundo morrendo de
inveja.
ROMANCE AOS 13
O futuro namorado da filha de 13 anos, além de
casado, rumava para se tornar
quarentão em agosto daquele ano. Só que aquele
ditado batido de que o amor tem
razões que a própria razão desconhece encontrou
lugar nessa história. Com o
tempo, o casal foi se gostando mais e mais, e um
sentimento bonito nasceu entre
os dois. Paula era virgem quando conheceu Caetano.
Isso mudou em agosto de 1982,
na festa de quarenta anos dele. O presente foi uma
noite de amor inesquecível. A
partir daí, não tinha mais volta. Próximos ou
distantes, namorados ou casados,
separados ou reatados, estariam unidos para o resto
da vida.
TROPICÁLIA X MILITARES
Em pouco tempo, a fama do show chegou aos ouvidos
dos militares. Boatos diziam
que no meio do delírio, Caetano cantava o Hino
Nacional de forma desrespeitosa.
Partidário da filosofia “inimigo meu, se não tiver
defeito eu invento”, uma
autoridade apareceu na Sucata para conferir. Como
não ouviu nada suspeito,
implicou com o que viu. Ao lado do palco, como
parte do cenário, havia duas
bandeiras. Uma trazia ‘Yés, nós temos banana’ e
outra, de Hélio Oiticica,
estampava a foto do bandido Cara de Cavalo, morto
com mais de 50 tiros pela
polícia. Na parte de baixo do pano, os dizeres:
‘seja Marginal, seja Herói’. A
primeira passou, mas a de Hélio não. O resultado
foi a suspensão do show e a
interdição da boate.
RIVALIDADE
Nos ensaios, Caetano conversava com Nara Leão,
quando Fagner se aproximou.
Sempre muito simpática, Nara trocou algumas
palavras com o cearense. Já Caetano
fingiu que nem era com ele. Ficou de costas para o
jovem talento que começava a
despontar. Fagner ficou sem entender. No fundo,
tinha fascínio pelo baiano,
queria ser como ele. Até chegar ali os dois já
haviam se trombado algumas vezes
pelo caminho. O ranço de um episódio anterior dera
sua parcela de contribuição.
Durante um encontro, pediram uma canja a Caetano,
mas o cansaço não permitiu a
reverência. Fagner, por sua vez, chegava motivado,
cheio de gás. Nem tinha
gravado disco ainda, mas trazia no bolso um
repertório inteiro de boas canções.
Não se fez de rogado e assumiu o posto. Saiu de lá
aclamado pelos presentes.
Rivalidade, vaidade, oportunismo, falta de química,
muitos sentimentos se
misturaram na ocasião.
ÉPOCA
Cultura
Biografia
mostra um Caetano Veloso que se reinventa o tempo todo
Ele
compôs canções de sucesso e trilhas para cinema e teatro, apresentou programa
de TV, brilhou em festivais e shows, concebeu filme, fez pinturas, escreveu
crônicas, críticas e livro de memórias
SÉRGIO GARCIA
28/04/2017
São
raros os artistas que se reinventam o tempo todo não por esgotamento da fórmula
anterior, mas para poder dar vazão a seu múltiplo talento. Caetano Veloso faz parte dessa elite. Provavelmente, é o nome mais
influente na música e no comportamento no país nestes últimos 50 anos. Compôs
canções de sucesso e trilhas para cinema e teatro, apresentou programa de TV,
brilhou em festivais e shows, concebeu filme, fez pinturas, escreveu crônicas,
críticas e livro de memórias. Esmerou-se também em reunir gente e se meter em
querelas públicas. Esse personagem plural aflora em Caetano – Uma biografia: a vida de Caetano Veloso, o mais doce bárbaro
dos trópicos,
de Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, servidores públicos cariocas que
se aventuram em sua primeira obra do gênero. “Nossa ideia inicial era fazer um
personagem em torno do qual havia uma lacuna bibliográfica. O primeiro nome foi
o de Roberto Carlos, mas logo percebemos que a biografia dele seria
complicada”, conta Drummond.
O
maior mérito do livro está na pesquisa aprofundada, que desvela episódios
singulares do protagonista. Além do mergulho em centenas de arquivos de jornais
e revistas, os autores entrevistaram 103 pessoas, entre parentes, amigos de
infância e artistas que conviveram com o biografado. Tendo como ponto de
partida os avós de Caetano, o livro esmiúça infância e adolescência passadas na
cidade baiana de Santo Amaro. O leitor fica sabendo que seu pai, Zezinho,
declamava poesias, sua mãe, Canô, era uma mulher avançada para a época e que
Caetano cresceu numa casa superpovoada por irmãos e primos. A família era
católica praticante e conservadora, a ponto de os pais não deixarem que a filha
mais nova, Maria Bethânia, estreasse no teatro no papel de uma prostituta.
Nessa fase inicial da vida, Caetano demonstrava dom para outra arte: a pintura,
uma aptidão que manteve ao longo da vida. Inclusive, o livro exibe um elogiável
autorretrato feito no início da década de 1960. Ao mesmo tempo que desenhava, o
pendor para a música despontou. Sua estreia se deu aos 8 anos, quando foi
reprovado de cara num programa de calouros de uma rádio local, mas nada que o
traumatizasse, como evidencia a longeva trajetória.
Um
dos pecadilhos da obra é a narrativa toda em ordem cronológica, sem
hierarquizar os fatos mais marcantes. Há detalhes da prisão de Caetano e Gil
pela ditadura no final dos anos 1960, fruto de uma “fake news”. Um apresentador
de TV, sem se dar ao trabalho de checar o caso, protestou em seu programa que o
cantor havia profanado a bandeira e o Hino Nacional durante um espetáculo, o
que revoltou os militares. O exílio posterior em Londres foi uma das raras
fases de melancolia em sua vida. De personalidade forte e afeito a uma
contenda, Caetano pode se gabar de ter sido alvo de ataques da direita e da
esquerda ao mesmo tempo. No terreno da paixão, o livro traz as circunstâncias e
até as datas da primeira vez com a ex-mulher Dedé Gadelha e com a atual, Paula
Lavigne, exatamente na noite em que Caetano celebrava seus 40 anos – Paula
tinha 13. Relata também os namoricos que ele teve em paralelo a seu casamento
para lá de liberal com Dedé. Há ainda pormenores de cada trabalho ao longo da
carreira, em que se entrelaçam figuras da alta-roda da música brasileira.
A
dupla de autores iniciou o projeto há 20 anos, data em que o movimento
tropicalista completava três décadas. Em 2004, eles concluíram o trabalho.
Porém, como não houve acordo com os representantes de Caetano para a publicação
da obra, a editora que inicialmente iria lançá-la não se sentiu segura e deu
para trás. De lá para cá, o livro hibernou, sem perspectivas de ver a luz. O
quadro mudou quando o Supremo Tribunal Federal liberou as biografias não
autorizadas, em 2015, apesar do lobby contrário à medida do grupo Procure
Saber, que tinha Caetano, Roberto Carlos e Chico Buarque entre seus integrantes.
Desobrigados de obter a autorização do biografado, Drummond e Nolasco retomaram
o projeto e trataram de atualizar o texto. Graças a esse hiato, o lançamento
agora coincide com os 75 anos de Caetano, no dia 7 de agosto.
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