2001
Revista CULT
n° 49 - Ano V
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA
Agosto de 2001
Caetano Veloso,
o poeta da MPB
o poeta da MPB
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D o s s i ê 37
Em entrevista exclusiva à CULT,
Caetano Veloso fala sobre cultura e literatura
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CULT Qual foi o livro de Unamuno que Luís
O U T R A S P A L A V R A S
Caetano Veloso sempre projetou em suas
canções um apurado sentido literário. Não
apenas as letras de sua música exalam poesia
e imaginação. O cotidiano do cantor e
compositor baiano está impregnado pela
experiência da leitura e da literatura, de um
modo vivo e profundo.
Caetano nos recebeu no Rio de Janeiro,
cidade em que mora, com exclusividade e
generosidade (dado o tempo exíguo e os
muitos compromissos de um cantor popu-
lar dos mais célebres do Brasil). Foram
quatro encontros que vararam uma semana
e resultaram no registro de quase sete horas
de gravação.
Nesta conversa que virou entrevista histó-
rica, o leitor poderá entender como a leitura
e a literatura (de um modo geral) estão pre-
sentes na vida e na obra de Caetano Veloso.
E vai se deparar com aspectos inéditos e
revelações. Mesmo os mais ardorosos fãs e
fiéis aficcionados vão encontrar nessas
páginas uma miríade de surpresas, desco-
nhecidas até para os que colecionam suas en-
trevistas e para os que leram seu livro de me-
mórias e trajetória, Verdade tropical, lançado
em 1997 pela Companhia das Letras.
A pauta inédita sobre literatura comportou
outras notas numa pauta que não deixou de
ser musical. Da literatura, a conversa ainda
percorreu cinema, filosofia e cultura,
esclarecendo e informando fatos relevantes
do processo de formação e de criação do
artista. Talvez a entrevista possa iluminar a
audição das músicas (embora estas sejam
irredutíveis), convertendo o leitor num
ouvinte privilegiado de outros sentidos. O
disco Livro até seria uma boa coda como a
trilha sonora desta leitura.
Leitor voraz e variado, dotado de curiosi-
dade, inteligência e sensibilidade singulares,
Caetano transita por um amplo repertório,
sem arrogância ou pretensão. No intervalo
de um dia entre dois encontros, por exemplo,
ele lera um novo livro (além dos outros
alguns que lê simultaneamente) e, no calor
da leitura, trouxe às respostas exemplos da
recente colheita literária.
O tom franco de entrega e confessional-
mente direto das declarações não elide um
vago desejo de manter (em algumas oca-
siões) o mistério até certo ponto intacto (ou
a vontade de que ele se expresse por si só).
Já no final do texto de contracapa do pri-
meiro disco solo, Caetano afirma: “porque
eu não quero, porque eu não devo explicar
absolutamente nada”. São as palavras
“tentando roubar os nomes às coisas” (como
ele escreveu no texto da revista Navilouca).
Além de saborosas histórias e instigantes
Reflexões - e vamos, por que não? -, esta
conversa (natural e despojada, plena de
graça e bossa) é um manifesto entusiasma-
do e entusiasmante, evidente e contundente,
do amor à literatura (como instância
mediadora de nossa relação com o mundo e
as pessoas, o ato de ler tão vital quanto
respirar e conviver).
E é uma prova da luz e da felicidade que
moram nos livros, do conhecimento e do
prazer que podemos encontrar na(s)
leitura(s).
BERNARDO VOROBOW
curador de cinema e programador cultural; criou e
dirigiu o setor de cinema do Museu da Imagem e do Som e o departamento de programação
da Cinemateca Brasileira, foi
programador de filmes no Museu de Arte
Contemporânea e diretor da Sociedade Amigos da Cinemateca; realizou os filmes
Depois da Lua (ou Obrigado, Chacrinha), O Discurso e Cinema Paulista - Ovo de
Codorna
CARLOS ADRIANO
mestre em cinema pela USP e cineasta; realizou os
filmes A Luz das Palavras, A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha (melhor
documentário Festival de Chicago; convidado: Roterdã, Toronto, Lussas, Nova
York), Remanescências (aquisição/coleção The New York Public Library); projetos
premiados: Ministério da Cultura, Itaú Cultural, Petrobrás Cinema, Secretaria
de Estado da Cultura de São Paulo
Os entrevistadores hospedaram-se no Hotel Caesar
Park Ipanema (Rio de Janeiro) a convite de Caesar Park Hotels & Resort
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CULT Você afirmou que a leitura
de Joaquim
Nabuco mudou a concepção de seu novo disco,
que veio a se chamar Noites do Norte, e que
originalmente você pensara em fazer experiências
com som. O que eram essas experiências e como
a leitura de um livro mudou um projeto musical?
CAETANO VELOSO A experiência do
que viria a ser, nós não podemos ter uma
idéia, porque não foi propriamente o que eu
terminei fazendo. Mas o que eu sonhava -
e do que tem alguma coisa que permaneceu
no disco que finalmente eu fiz - era uma
combinação de percussões com voz. Eu que-
ria usar a minha própria voz sem palavras,
uma coisa como eu já fiz um pouco no Araçá
azul e vez por outra faço. Eu tinha muita
vontade de pesquisar mais, e tenho ainda.
Alguma coisa ficou no disco, embora as
canções tivessem finalmente ganho seu
lugar. Porque outro dia falei: “Mas eu acho
que sou escravo das canções”. A forma
canção termina me dominando, me subju-
gando. Então eu não sei exatamente como
seriam esses sons, mas há indícios deles
naquela longa coda de “Cantiga de boi” e
em “Tempestades solares”. São alguns
indícios do que eu estava sonhando em fa-
zer predominar no disco.
Mas realmente a leitura de Joaquim Nabuco
chegou numa hora em que aquilo me causou
uma impressão tão grande que eu quase
desviei as minhas energias todas para tentar
musicar o trecho que elegi. Eu me apaixo-
nei pelo livro Minha
formação como um todo
e pelo autor em geral. Dali extraí aquele
trecho que eu musiquei e que me impressio-
nou muitíssimo. O fato de eu ter decidido
ou ter sido levado a musicá-lo fez com que
eu me dedicasse a composições fechadas. É
engraçado, porque é um gesto de grande
abertura - musicar um texto em prosa e re-
lativamente reflexivo, que aparentemente
seria hostil à música. Curiosamente, parecia
um desafio, mas não foi vivido tanto como
um desafio. Foi uma coisa que me arrebatou,
foi irresistível e terminei musicando.
CULT Esses termos verbais
afetaram a con-
cepção de percussão e voz?
CAETANO VELOSO Justamente, essa
forma é o contrário, porque eu queria
trabalhar com sons, com a materialidade dos
sons, sobretudo com timbres de voz e de
batuque, combinações várias desses
elementos, algumas brincadeiras nas própri-
as vozes, tanto de timbre quanto de altura,
quase que de microtons também. Isso era
um pouco o sonho... E eu não pensava em
palavras. As primeiras idéias que me vieram
para o disco eram todas nesse sentido que
eu acabei de descrever. Eu não pensava em
palavras. Mas nesta altura, eu ganhei de pre-
sente Minha formação e justamente foram as
palavras que me arrebataram e eu terminei
trabalhando com elas. Eu acho que o
Joaquim Nabuco é um grande escritor e
uma grande figura histórica no Brasil. Eu
fiquei maravilhado pelo contato com a
existência intelectual de Joaquim Nabuco.
CULT Você nos disse que “as
canções desse disco
novo têm letras muito modestas do ponto de vista
literário (embora “Zera a reza”, que abre o CD,
seja feita em anagramas, e “Cantiga de boi” te-
nha certa engenhosidade). Qual seria este disco?
CAETANO VELOSO Não sei. Mas sei
que tanto Livro quanto Caetano ou Jóia ou
Outras palavras ou Velô o são mais do que
Noites.
CULT Antes deste Noites do
norte, seu últi-
mo disco com músicas próprias e inéditas foi Li-
vro. É coincidência ou pode ser lido como uma
prova de que a literatura participa de seu proces-
so criativo o fato de seus mais recentes discos com
composições pessoais e novas serem tributários da
literatura?
CAETANO VELOSO É um fato. Eu
tinha acabado de escrever um livro quando
eu estava começando a fazer o disco anterior
a esse, então resolvi colocar o nome Livro.
Eu ia colocar o nome do disco Prenda mi-
nha, que veio a ser o disco tirado do show do
disco Livro. Mas o título que eu tinha ima-
ginado primeiro era Prenda minha, sem que
a canção “Prenda minha” estivesse presente.
Era uma piada muito enviesada com o ne-
gócio do Miles Davis e Gil Evans, que
tinham dado aquele tratamento à canção
“Prenda minha” e esse tipo de tratamento
era o que eu estava dando a muitas das can-
ções do disco, meio imitando, meio home-
nageando aquele estilo da colaboração entre
Gil Evans e Miles Davis. E como eu fazia
com freqüência, queria fazer e fiz isso no
disco, eu ia colocar o nome Prenda minha
sem grandes explicações. Mas a Paulinha
[Lavigne], minha mulher, disse: “Puxa, mas
fica muito hermético, ninguém vai saber
porque chama Prenda minha”. E eu: “Todo
mundo vai me perguntar e eu vou dizer.”
[ri]
Mas depois veio a idéia de colocar o nome
simplesmente Livro. Eu fiz uma canção
chamada “Livros”, por causa de eu ter
escrito um livro. O livro saiu mais ou menos
na mesma altura do disco, então dava uma
brincadeira. É uma brincadeira do mercado;
uma brincadeira de considerar as duas coisas
como produto para o mercado. E essa
brincadeira é curiosa, porque eu sou uma
pessoa sem nenhuma vocação para o
mercado, para o mundo dos negócios, ou
para a competitividade capitalista. Eu não
tenho vocação nem formação. Eu sou filho
de funcionário público que adorava ser
funcionário público, e meu pai era um
homem que eu adorava. Então, a minha
idéia do mundo era muito pautada por
valores humanistas e universais, do universo
do funcionário público honesto e que teve a
vida inteira orgulho de ser funcionario
público. Eu entrei na música popular sem
querer propriamente ser um profissional da
música popular, não que eu me sentisse
superior a ela, ao contrário, eu me sentia
pouco dotado para exercer a função de
músico popular. Ainda me sinto, mas acho
que dá para fazer uma porção de coisas in-
teressantes, que regeneram certas áreas da
atividade, vitalizam certas visões da realidade
da canção popular, apontam coisas, enfim
dá para fazer um negócio interessante, mas
eu mesmo assim não me sentia capaz para
isso. E, como competidor no mercado, eu
me sinto muito aristocrático, eu me sinto
muito fora dessa questão. Eu sempre me
senti. O próprio tropicalismo começou com
uma admissão consciente de que a gente es-
tava produzindo coisas para o mercado de
entretenimento. Era uma espécie de
autocrítica sem culpa, sem julgamento de
valor, era um reconhecimento neutro, uma
constatação dessa realidade.
CULT Mas essas canções críticas traziam
formas criativas que não eram incompatíveis com
a coisa do mercado, dentro daquela noção de
“produssumo” do Décio Pignatari...
CAETANO VELOSO Justamente. Eu
achava muito interessante essa idéia de
“produssumo”. Mas ela é, mesmo na época,
um pouco mais otimista do que
propriamente eu sentia que estava se
fazendo. Mas isso não é problemático. A
idéia é boa e na época exatamente isso estava
se dando com muita freqüência. O meu caso
individual não é o caso de Gil, que estava
trabalhando comigo. O Gil fazia jingles na
Bahia, estudou administração de empresas,
trabalhou na Gessy Lever. A idéia do
mercado, para ele, era uma coisa vivida. Ele
queria dizer aquilo. Eu vi aquilo, mas como
quem vê de muito fora, uma pessoa que
jamais se identificaria com aquilo, se
confundiria com aquilo. Esse sentimento eu
tenho até hoje. Quando eu faço essa
brincadeira de livro, disco, e chamo o disco
de Livro quando estou lançando um livro,
há uma certa manutenção espontânea dessa
distância. Há um reconhecimento, que eu
preciso externar, dessa distância. Essa brin-
cadeira expressa a distância. Há uma
brincadeira que vai em dois sentidos, porque
a palavra “libro” aponta - não neces-
sariamente é claro, mas na organização geral
das coisas - para uma região da alta cultura,
enquanto disco - não necessariamente - já
apontaria na direção da indústria cultural.
Embora, evidentemente, haja milhões de
livros que são produtos comerciais de baixís-
simo nível e que vendem milhões no mundo
inteiro. E há muitos discos de grande refina-
mento, e há discos que vieram justamente
da área mais comercial e que se tornaram
focos de informação importantes. Isso é um
problema que é complexo, é um negócio de
nosso tempo. É curioso, você ouve os discos
de Elvis Presley, lê aquela biografia dele,
muito bem feita e precisa, de Peter Guralnik,
e você fica pensando como um negócio desse
vem a ser informação e vem a ter conseqüên-
cias tão duradouras, tão complicadas, como
esse negócio de rock and roll.
O Chuck Berry
tem algumas obras-primas e um estilo pes-
soal admiravelmente econômico, seco, um
artista admirável que não faria nada que não
fosse por dinheiro...
CULT E daí veio o John Lennon, com suas
canções pop e escrevendo à la Joyce...
CAETANO VELOSO E gostava de
Lewis Carroll. Mas nessa época houve muita
confusão de alta e baixa cultura. Eu me lem-
bro que, àquela altura, a primeira coisa que
li de reação violenta a essa atração pela coisa
dos Beatles e pela coisa pop - por parte de
escritores, professores, estudiosos - foi o
texto do Anthony Burgess, autor de La-
ranja mecânica e daquele ótimo livro sobre
Joyce [Homem Comum Enfim]. Eu estava
acostumado a ver no Brasil uma reação pré-
compreensão daquilo, uma reação antiqua-
da de uma esquerda intelectual, de bom gos-
to e nacionalista, porque achavam que era
invasão da cultura do imperialismo, da cul-
tura de massas estrangeira. E uma reação ao
próprio rock, porque o rock era muito pri-
mário harmonicamente, comparado com o
jazz e a música erudita. Eu já conhecia esse
tipo de reação, mas um negócio como o do
Burgess eu não tinha visto. Foi uma reação
(posterior) à aprovação e ao reconhecimen-
to que muitos intelectuais estavam tendo
dessa onda de Beatles, Rolling
Stones. Ele
foi o primeiro a querer botar de novo cada
macaco no seu galho. Mais tarde, entre to-
dos os brasileiros de alta cultura que estive-
ram próximos disso, quem mais quis botar
cada macaco no seu galho de volta foi o Dé-
cio. Foi o que falou em “produssumo” nos
anos 60. Depois reclamou, dizendo que o
Torquato Neto era intelectualmente líder do
tropicalismo porque era sociólogo e não mú-
sico popular, queria fazer poesia e não mú-
sica popular, e colaborou com os músicos
populares, mas era de uma extração mais ele-
vada. Nessa interpretação que o Décio deu
não havia um bom argumento. Torquato era
um sujeito maravilhoso, mas ele não foi líder
do movimento tropicalista em nenhum
sentido, não é fato. Ele tinha estudado soci-
ologia na faculdade, eu estudei filosofia, mas
eu saí da faculdade, ele também saiu da fa-
culdade. O Gil se formou em administração
de empresas, e o Mick Jagger estudava na
London School of Economics;
uma pessoa
não entra na London School of
Economics
assim, ficou uns anos e depois saiu porque
queria fazer rock and roll,
mas estava bem lá.
Acho que o Décio estava querendo se livrar
desse negócio de música popular. Eu en-
tendo... Por exemplo, nos anos 70, quando
voltei de Londres, eu fiquei fascinado com a
televisão colorida, quando a televisão brasi-
leira começou a ficar colorida, e com as no-
velas novas brasileiras, que não eram más
como tinham sido antes, imitação das nove-
las cubanas, mexicanas e dos dramalhões
convencionais. Tinha dramalhão, mas mui-
ta novidade. E a novela brasileira na televi-
são inovou muito e criou um público de
massa muito mais sofisticado do que se es-
peraria. Aliás - já que nós estamos falando
de literatura e falamos em indústria cultural
-, a televisão brasileira precisaria conhecer
um fato histórico, da sua história. Pelo me-
nos desde que eu tenho consciência das coi-
sas, a televisão brasileira só teve sucessos
espetaculares e marcantes, em todos os sen-
tidos, inclusive comercialmente, quando ela
subiu de qualidade. Isso é um fato que as
pessoas hoje parecem ter esquecido, inclu-
sive as que fazem televisão. Isso foi fato quan-
do a Record dominava e também foi toda a
história da Globo. É uma coisa que a televi-
são brasileira precisa se lembrar, porque ela
está pensando que precisa fazer o contrário
para ver se funciona do outro jeito. Eu te-
nho impressão de que não é a vocação histó-
rica da televisão no Brasil. Ela tem de me-
lhorar para poder ter público grande. É cu-
rioso, aconteceu assim.
Eu sei que a configuração social hoje é ou-
tra, os fatores são outros, o número de tele-
visores nas casas é infinitamente maior, o
número de pessoas que não têm acesso à
educação formal e que têm televisão em casa
é muito maior do que era naquele tempo,
mas ainda assim são as novelas pretensiosas,
interessantes, inovadoras, que formaram o
público de massa da televisão brasileira. Era
o que as empregadas da minha casa viam,
eram as novelas que a mim também interes-
savam. Havia um apelo histórico e cultural
para mim de grande importância, então eu
via. Mas, depois de um tempo, parece que
aquilo deu o máximo que tinha que dar. E
eu - como tenho muita curiosidade intelec-
tual - não posso perder tempo continuando
a assistir a todas as novelas, que não estão
mais dando outros passos interessantes e nem
significam mais o que significavam naquela
época. É bem possível que, para uma pessoa
como Décio, seja assim: houve um período
que a música popular estava interessante
para o nosso momento histórico e para o
deles, mas agora não tem mais interesse para
nós. Pode ser.
CULT O disco Livro foi lançado simultanea-
mente ao livro Verdade tropical, em 1997.
Houve alguma intenção literária ou literal nesse
sincronismo? Como avalia hoje essa conjunção?
CAETANO VELOSO Foi casual, mas
como lhes disse, eu senti a ironia da coisa e
resolvi assumir e externar. E essa ironia se
torna possível porque eu me sinto muito
distante do ser de mercado; eu não sou nem
consumidor nem produtor com o olho no
mercado. Mas não tenho horror ao mercado,
eu acho que o mercado trouxe esse mundo
das liberdades individuais, trouxe a
sociedade moderna.
CULT Sobre fazer um outro filme você já nos
confidenciou, mas qual a possibilidade de você
escrever outro livro?
CAETANO VELOSO É mais fácil do
que fazer um outro filme. Do ponto de vista
logístico, é logo mais fácil. Basta eu sentar e
escrever.
CULT Tem algum projeto burilado?
CAETANO VELOSO Não há nenhum
projeto burilado nem nada. Acontece que eu
escrevo às vezes, mas para coisas pontuais.
E uma ou outra anotação que eu faço, para
meu governo, de coisas que eu pensei, que
eu observei, que eu quero dar tempo. Se
algum dia eu vou usar isso para alguma
coisa, eu não sei. Mas tenho vontade de
escrever, porque eu gostei de escrever e gos-
to do meu livro. Como também tenho vonta-
de de fazer outros filmes, porque eu gostei
de filmar e gosto do meu filme.
CULT Nos agradecimentos de Verdade tro-
pical, você fala que a assinatura da revista Se-
nhor feita por seu irmão Rodrigo Velloso e o livro
de Unamuno dado a você por Luís Tenório de
Oliveira Lima levaram-no “a amar os livros
com uma profundeza que supera a falta de inti-
midade que ainda hoje tenho com eles”. Fale de
sua formação literária.
CAETANO VELOSO Meu pai era
funcionário público, agente postal telegráfico
dos Correios e Telégrafos em Santo Amaro.
Ele evidentemente teve na juventude um
ambiente boêmio e literário, do qual
guardava alguns poemas de que gostava,
sendo que um deles ele adorava e sabia de
cor e de vez em quando dizia. Era um poema
do poeta baiano Artur de Sales, do
movimento simbolista, da geração mais velha
que meu pai...
CULT Contemporâneo de Pedro Kilkerry?
CAETANO VELOSO Pode ter sido
contemporâneo de Kilkerry. Meu pai
também se lembrava de Kilkerry. Os amigos
de juventude de meu pai continuavam sendo
amigos dele, mas meu pai morava em Santo
Amaro e essas pessoas moravam em Salva-
dor, e algumas até se mudaram para São
Paulo. Quando qualquer um deles aparecia,
eles falavam de literatura. Mas depois que
meu pai casou e deixou de ter aquela vida
mais boêmia de juventude, ele dedicou sua
vida ao casamento, à criação dos filhos e ao
trabalho. Minha casa não tinha uma biblio-
teca. Diante do casamento, ele não trouxe,
para dentro de casa e para a vida que ele
construiu para si mesmo, nada das aventuras
literárias e intelectuais da juventude. O que
é uma pena, eu acho uma coisa curiosa.
Um amigo de meu pai casou-se com uma
sobrinha dele (Lurdes), uma sobrinha mais
velha, da idade de minha mãe. Ele se chama-
va Antonio de Souza Castro. Era um desses
amigos de meu pai que mantinha esse gosto
pela literatura. Ele teve muitos filhos, a mai-
oria dos quais ainda está vivo, morando na
Bahia. Eram primos nossos, porque a mãe
deles era nossa prima carnal e o pai era ami-
go de meu pai, e também funcionário dos
Correios e Telégrafos, mas trabalhava em Sal-
vador. E ele - que a gente chamava de
Totonho - tinha em sua casa, em Salvador,
uma estante com muitos livros. Aquilo eu
achava bonito. Eles tiveram 13 filhos, a mai-
oria mais velhos do que eu, alguns da minha
idade, outros mais novos. Os filhos eram
pessoas com ambição intelectual, todos que-
riam ser escritores e eram versados em poe-
sia e literatura; uns vieram a ser professores
e um é escritor. Eu tinha ao mesmo tempo
um fascínio grande por esse pessoal e um
certo desalento porque eu achava que eu não
teria...
Ficava envergonhado porque minha casa era
intelectualmente muito modesta, embora
muito refinada. Todo mundo bem educado,
todo mundo posto na escola para estudar,
falava-se e escrevia-se um português muito
bom. Meu pai, minha mãe e Minha Ju (uma
irmã dele, nossa tia, que morava em casa
conosco) exigiam que assim fosse.
Mas não havia livros na minha casa. Aquela
frase na minha canção “Livros” é quase um
desabafo, um lamento autobiográfico. Não
havia livros na minha casa. Nossa casa era
imensa, um sobradão daqueles enormes,
antigos, do recôncavo da Bahia, apenas com
a frente sendo usada como agência postal
dos Correios e Telégrafos. Na verdade, um
sobrado de seis andares, com pátio suspenso,
um pátio embaixo, um quintal enorme,
muitos quartos, muitas salas e um piano
onde eu aprendi a tocar
Mas não tinha uma biblioteca. Nem sequer
uma estante com livros. Mas havia livros
em minha casa. Uns livros fugazes que es-
tavam sempre nas mãos de minha mãe - que
era a única pessoa que eu via dentro de casa
lendo. É a única pessoa de minha infância
de quem eu me lembro com um livro na mão
- quase sempre com um livro na mão. Mi-
nha mãe lia esses livros para moças, como
M. Delly, livros de divertimento para se-
nhoras - mas ela gostava da leitura, ficava
muitas horas lendo. A única figura que, na
minha cabeça, dentro de minha casa, estava
com um livro na mão é minha mãe. Mas
eram livros aos quais ela própria não dava
importância, porque sabia que meu pai não
dava, nem que ninguém dava. Ela compra-
va para ler como quem compra revista em
quadrinhos. E não sei o que fazia deles, não
sei se ela metia num baú lá no sótão, ou se
dava depois para outras pessoas de que gos-
tava ou que conhecia, ou se havia um sumi-
douro lá em casa, ou se jogava fora...
CULT Como aquele gesto desprendido de
Godard, com o qual você simpatiza...
CAETANO VELOSO Ou se jogava
pela janela... Havia muitas mulheres moran-
do em minha casa. Minha mãe casou e foi
morar na casa de meu pai, que era cheia de
mulheres. Meu pai era o filho mais moço de
uma família cujas irmãs, mais velhas do que
ele, tinham se casado. Uma irmã ficou viúva e
depois morreu e a outra ficou viúva e ficou lá
em casa morando com várias filhas. Essas
mulheres todas eram mais ou menos da idade
de minha mãe e moravam com ele, meu pai as
criava. Então, havia três filhas de uma das
irmãs, mais três filhas de outra das irmãs,
mais duas irmãs dele quando minha mãe se
mudou para casa de meu pai.
Vejam que coisa curiosa, meu pai tinha que
gerir esse negócio todo e deixou os livros para
lá. Ele gravou apenas na memória aquele
poema de Artur de Sales [recita]: “Lúcia che-
gou quando do inverno o tredo vento/ balan-
çava o coqueiral vetusto/ ainda a recordo pá-
lida de susto/ trêmula de medo (...)”. Mas
uma das filhas de uma dessas minhas tias,
que ainda é viva (não a tia, mas a filha) -
Minha Daia, que tem 80 e tantos anos - pen-
sava muito e também lia com uma certa
freqüência. E ela lia coisas mais sérias ou am-
biciosas do que minha mãe. Minha mãe lia
para se divertir, para se sentir feliz. Até hoje
minha mãe lê. Lê livro com histórias de
cowboy, desses livros que vendem em banca
de jornal...
CULT Pulp fiction...
CAETANO VELOSO É, pulp fiction.
Quando ela era jovem, minha mãe lia ro-
mances cor-de-rosa, hoje minha mãe lê pulp
fiction. Coisas leves, só de divertimento.
Mas lê, ela gosta de ler. Mas eu nunca vi
Minha Daia com um livro na mão, como
eu via minha mãe (minha mãe sentada len-
do, as tardes inteiras). Eu acho que Minha
Daia só lia no quarto dela. Ela tinha um
quarto sozinha, mas as conversas dela tra-
ziam... Eu me lembro de algumas coisas.
No meu livro Verdade tropical, eu relato o
fato de que ela, comentando comigo (eu
pequenininho), disse: “Meu filho, eu te-
nho vontade de sair daqui dessa terra e ir
morar em Paris, para viver com os filósofos
existencialistas.” Eu falei: “Minha Daia, o
que são existencialistas?” Ela falou: “Ah,
são os filósofos que só fazem o que que-
rem, que não têm essa falsidade dessa vida
tacanha de Santo Amaro.”
CULT A marchinha Chiquita Bacana...
CAETANO VELOSO A marchinha não
mencionava que eles eram filósofos. [canta]
“Existencialista/ com toda razão/ só faz o que
manda/ o seu coração.” A marchinha não jus-
tifica... Minha Daia lia coisas em revistas -
sabia que eram filósofos. Ela sabia mais do
que a marchinha dizia. E ela estava querendo
dizer que ela queria ter uma vida autêntica, o
que tem que ver realmente com os
existencialistas. Outra coisa nunca mais saiu
da minha cabeça - ela disse com tanto entusi-
asmo, conversando com outra pessoa adulta:
“O melhor livro que eu já li na minha vida foi
Minha vida de Isadora Duncan” [“Dúncan”,
pronuncia como se escreve]. E eu fiquei impres-
sionado, “O que será Minha vida de Isadora
Duncan?” Eu ficava conversando com meus
irmãos mais velhos, Rodrigo e Roberto, e di-
zia: “O que será isso que Minha Daia fa-
lou?” E Rodrigo, imitando-a, repetia: “Mi-
nha vida de Isadora Duncan!” Aquilo mar-
cou o ouvido da gente.
Por outro lado, ela falava muito em livros
esotéricos, espíritas e ocultistas. Ela era
funcionária do banco Rural e havia um
sujeito que também trabalhava lá, foi até meu
professor no ginásio, um autodidata incrível,
um homem muito pobre e que queria saber,
dominar o conhecimento, e se esforçou enor-
memente. Era um mulato, professor
Gustavo Viana. Ele se fez professor, não se
formou em nada, não teve oportunidade nem
uma educação formal. Mas ele estudou
sozinho e lia literatura inglesa em inglês,
francesa em francês, espanhola em espanhol,
lia latim, conhecia os autores. Tudo porque
estudou sozinho; era um homem
impressionante. E Minha Daia tinha muita
admiração por ele e ele gostava muito dela
porque a achava muito inteligente. Ele
próprio tinha muita tendência para
espiritismo, ocultismo. E, através dele, ela
tomou contato com livros dessa natureza,
que ela também lia. Mas nunca vi Minha
Daia com um livro na mão. Ouvi-a falar
dessas três coisas a que eu me referi aqui:
existencialistas, Isadora Duncan e ocultis-
mo. Ela é uma mulher muito interessante e
muito inteligente. Mas eu me sentia muito
tímido diante dos livros. Eu tinha inveja de
meus primos Souza Castro. Eu sonhava e
tinha vontade de, quando crescesse, ter uma
biblioteca em casa, como via em filmes ou na
casa de Totonho.
CULT Naquela época que você veio morar no
Rio, essa situação se manteve?
CAETANO VELOSO Quando eu mo-
rei um ano no Rio, em Guadalupe, entre os
13 e os 14 anos, havia um pessoal de Santo
Amaro que morava no Engenho de Dentro.
Às vezes, eu ia com Minha Inha passar o
fim de semana em Engenho de Dentro,
porque ela era amiga desse pessoal. Era uma
senhora, Dona Maria, sozinha com os
filhos. Ali, só escutavam a Rádio Ministério
da Educação, porque só se ouvia nessa casa
música clássica. Eu gostava disso, porque
na minha casa não se ouvia. Eu me lembro
que Nicinha - minha irmã mais velha, que
tem muito ouvido musical, tocava piano e
tem muito gosto para música - reclamava
quando tocava música clássica no rádio ou
em algum lugar: “Quem morreu?” Porque
música clássica só tocava no rádio que a
gente conhecia quando alguém tinha mor-
rido, era luto. Quando Getúlio morreu, a
rádio não tocava nem bolero nem samba, só
tocava música clássica. Então ficou vincula-
da à idéia de que aquilo parecia ser sério,
sisudo e triste. Quando não necessariamen-
te, mas havia a idéia de que, como música
clássica, aquilo era tristeza. O pessoal aqui
no Rio de Janeiro só ouvia música clássica.
Os discos que eles tinham em casa também
eram só de música clássica. Eu ficava fasci-
nado com isso. Queria ouvir tanto quanto
eles, mas achava muito artificial eu fazer
aquilo no meu ambiente, na minha casa. Eu
gostava de estar na casa deles porque aquilo
acontecia ali e eu aí tirava uma casquinha.
Mas igualmente a isso que eu estou lhes
descrevendo com relação à música, eu criei
com relação aos livros, durante muito tempo.
Eu tinha vontade de ter livros, de comprar e
organizar meus livros, mas aquilo eu achava
tão distante e pensava: “Todo mundo vai me
achar falso, vai ser estranho eu fazer isso”.
Não fiz, demorei muito. Só depois de casado,
já depois de estar trabalhando com música
popular, essa minha biblioteca foi se forman-
do, sem que eu me decidisse a escolher e a
comprar os livros que eu ia ter. Eu comecei a
ganhar livros de presente. Então comecei a
ter que colocá-los em algum lugar em minha
casa. Mas até hoje eu tenho uma certa timi-
dez para comprar livros. Eu preciso criar um
pouquinho de intimidade com uma livraria,
se não eu fico envergonhado. Eu não me sin-
to 100% à vontade. Eu não me sinto 100% à
vontade para comprar nem camisa nem meia,
não gosto. Mas livro, que eu gosto de com-
prar, eu fico... Hoje já está mais legal, mas eu
tenho 58 anos [ri].
CULT E como foi superada tal aparente bar-
reira nesse período?
CAETANO VELOSO Quando era
menino e jovem, eu não quis artificialmente
furar essa barreira. Eu tenho uma maneira
de viver que eu não sei se me faz bem ou
mal (ou se me faz mais bem do que mal),
mas eu acolho o que acontece. Se não
acontecer... Eu acho que se partir de uma
deliberação minha, é como se fosse falso,
como se fosse ser uma vida falsa. Eu tenho
que conduzir porque sou eu, mas tem que
me acontecer. Aquilo tem que ter sido natural
na minha vida. Eu não sou mais tanto as-
sim. Eu acho que me fez muito mal, me
limitou muito, mas também me deu algu-
mas coisas que as pessoas às vezes perdem
quando tomam a decisão de serem muito
deliberadas na condução de sua vida. Eu
ganhei algumas coisas com essa minha
desvantagem. Mas, talvez, predominante-
mente uma desvantagem. Eu não faria isso,
de violentamente dizer: “Agora vou comprar
livros, vou ser diferente de todos os meus
irmãos, de toda casa, ter um tom de intelec-
tual”. Mas gostava dos livros. Mesmo antes
de eu ter livros postos numa estante, como
vim a ter depois de casado, eu li livros.
Eu li livros. Às vezes me emprestavam no
ginásio, ou alguém da família ou os meninos
Souza Castro. Eu me lembro do pessoal em
minha casa dizer, às vezes sem saber que eu
estava ouvindo, que me achavam muito inte-
ligente. Mas nem isso os levou a pensar
assim: “Vamos comprar uns livros para ele”.
Eles não fizeram isso tampouco. Mas eu lia
uma coisa ou outra. Quando estava no Rio,
já com treze anos, eu li coisas de Monteiro
Lobato. Li mais intensamente porque eu
fiquei um ano sem ir para a escola e minha
prima (na casa de quem eu estava) tinha já,
ou comprou para mim, uns livros do Mon-
teiro Lobato. Eu mais ouvia rádio do que
tudo, mas eu lia os livros de Monteiro Loba-
to, ficava interessado, achava bonito, bem
escrito. Eu tinha uma noção quase que pré-
via do que era bem escrito ou não. Mas já
havia lido alguma coisa de Jorge Amado,
antes de sair de Salvador, com doze para
treze anos. Acho que já havia lido Mar morto.
Depois voltei, li de novo Mar morto, que é
um livro do qual eu gosto muito ainda hoje.
É um livro ao qual eu me sinto ligado, talvez
por ter sido um dos primeiros livros que eu
li. Mas também gostei muito de ler Capitães
da areia. E li também uns livros de Cassan-
dra Rios, como A lua escondida, que era a
história de uma adolescente com um profes-
sor, tinha muita coisa de sexo e também
alguma coisa de lesbianismo, que havia em
outros livros dela. No ginásio, a gente lia
escondido esses livros, porque eram de
sacanagem.
CULT Houve algum fato, ainda em Santo
Amaro, que prenunciou aquela revelação descrita
no pórtico do livro?
CAETANO VELOSO No meio disso,
antes da chegada da revista Senhor, houve
um episódio que me impressiona muito
ainda hoje, por diversas razões. Primeiro
porque, como eu disse, em minha casa não
havia livros. Havia umas revistas antigas,
com um livro ou outro ali no meio, dentro
de um baú. Daí havia num outro lugar um
outro baú. Aquelas casas velhas... Sabe
quando você cresce numa casa que você acha
que ainda tem pedaços que ainda não
conhece? Depois a gente mudou para uma
outra casa, onde minha mãe ainda hoje mora
em Santo Amaro, que é muito grande tam-
bém, com oito quartos e um quintal imenso.
E, nessa casa, um dia, eu me deparei com
um livro que se chamava O jovem audaz no
trapézio volante. Eu não sei a quem atribuir
a presença daquele livro em minha casa. Tal-
vez os primos Souza Castro tivessem deixa-
do na mão de uma das minhas irmãs (mais
velhas que eu). Quando adolescentes,
minhas irmãs foram fazer o secundário em
Salvador, embora houvesse ginásio em Santo
Amaro. Eu fiquei fazendo ginásio em Santo
Amaro. Os homens faziam o ginásio em
Santo Amaro, mas as meninas todas foram
fazer o ginásio em Salvador, inclusive Bethâ-
nia. O dinheiro não dava para todo mundo,
meu pai e minha mãe tiveram mais carinho
com as meninas, mais cuidado. O fato é que
elas talvez tivessem trazido o livro de Salva-
dor, nas férias, tivessem deixado ali, não sei.
O fato é que eu me deparei com um livro,
que se chamava O jovem audaz no trapézio
volante, de um escritor americano de origem
armênia chamado William Saroyan. Havia
esse conto, “O jovem audaz no trapézio
volante”, e alguns outros, como “Setenta mil
armênios”. E eu fiquei maravilhado com
esses textos, por uma razão que você vai
gostar muito, Carlos Adriano - era a ousadia
formal, para mim, a transgressão das con-
venções da narrativa. Saroyan abria comen-
tários como se estivesse falando com o leitor,
contava a história aos pedaços, tomava
liberdades na estruturação da narrativa,
coisas que me impressionaram muito. Mas
me impressionaram, e isso me impressiona
até hoje, de uma maneira tão profunda, como
se eu já conhecesse, pelo fato de ter lido uma
coisa ou outra... Não sei o que eu já tinha
lido nessa altura, porque acho que foi antes
de eu vir para o Rio, antes de ter esses treze
anos. Não sei, ou foi logo depois. Mas eu
não tinha lido muito. Mas quando eu li
aquilo, eu tinha uma noção precisa, pensava
na época mesmo, parecia que eu já tinha lido
muito da literatura tradicional, parecia que
eu conhecia muito bem todas as variações
de possibilidades da narrativa convencional,
que eu tinha uma tradição de leitura de anos
e que entendia perfeitamente quais eram as
novidades, o que havia de moderno e de
revolucionário nos contos de William
Saroyan. Isso é impressionante.
Isso me marcou enormemente e vou lhes
dizer aqui: isso me deu uma idéia do moder-
no que me serviu para sempre... Para sem-
pre. O Augusto [de Campos] sabe disso.
Quando contei, ele ficou muito contente
porque disse que os contos de William
Saroyan também o impressionaram. Depois,
quando se discutia esse negócio de arte
moderna - porque arte moderna é uma coisa
sobre a qual até o citado Monteiro Lobato
fez aquelas piadas e escreveu contra - ainda
no final dos anos 40, início dos anos 50, em
Santo Amaro, a desconfiança com relação a
ela era tão grande quanto quando apareceu.
E vou lhes dizer, essa desconfiança nunca
desapareceu de todo no imaginário coletivo,
e eu não sei direito se nos imaginários indivi-
duais de cada um, por mais cultos e radicais
que sejam os sujeitos. Essa questão da arte
moderna ainda continua. Tanto que há esses
grandes intelectuais conservadores que es-
crevem contra a arte moderna. Há vários,
como o próprio Lévi-Strauss, que foi um
militante cubista quando jovem e é hoje um
verdadeiro cruzado contra a arte moderna
em toda linha. Hoje, para ele, tudo o que
aconteceu nos modernismos, nas vanguar-
das, foi um desastre. Ele começou reagindo
contra a música contemporânea, contra a
música atonal, dodecafônica, concreta, ele-
trônica, numa defesa brilhante da música
tonal, na abertura de O cru e o cozido, e depois
seguiu e, nos últimos anos, vem nitidamente
argumentando contra a arte moderna na pin-
tura, na literatura, em toda parte. Ele acha
que até o impressionismo dava para
agüentar...
CULT Para quem falou em bricolagem pri-
mitiva...
CAETANO VELOSO Não, ele não
gosta, não quer saber nada disso. Ele
justamente não quer ser confundido com
isso. Ele quer ser, do ponto de vista estético,
profundamente conservador. Essa idéia da
arte moderna não está estabelecida, não está
resolvida. Queria completar dizendo que a
leitura do William Saroyan me
fez intuir o
que era o mundo de possibilidades dessa
idéia das rupturas do modernismo. Eu era
muito garoto, mas aquilo me engajou, eu me
engajei com aquilo, eu me tornei um torce-
dor daquela atitude, me tornei um moder-
nista [ri], de imediato, ao ler William
Saroyan. E fiquei na minha, com aquele
acaso, com aquilo na cabeça. Passou a ser
uma referência que mudou minha perspec-
tiva, mas nem por isso fui atrás, não tive
aquele desembaraço de procurar uma pessoa
culta e dizer: “Quem é William Saroyan?
Quais são os outros escritores? Como era a
literatura?” Eu ficava pensando sozinho, não
tinha com quem dialogar, e talvez teria, mas
não tinha desembaraço para fazer, eu me sen-
tia tímido.
Com 17 anos, aconteceu um negócio que
me deixou à vontade, porque era numa área
que eu dominava o tempo todo, com a qual
eu convivia, que era na área de música po-
pular: eu ouvi o João Gilberto. E é incrível,
porque era em 1959. Neste mesmo ano, ain-
da morando em Santo Amaro, eu ouvi o João
Gilberto e achei tudo aquilo que eu falei so-
bre o que eu senti com o texto do William
Saroyan. O João Gilberto bateu como um
sol. Era uma ruptura numa área que estava
ali à minha mão, sobre a qual eu podia falar
sem parecer pedante, sem parecer artificial.
Com João Gilberto, eu me via na condição
de entender e comentar, porque todo mun-
do ouvia. Mas a experiência com William
Saroyan foi seminal para que isso fosse pos-
sível. Algo em mim pedia que aquelas coisas
viessem daquele jeito, senão eu teria lido
William Saroyan e não teria acontecido nada
comigo [ri]. E muito menos a audição de
João Gilberto depois, que veio a ser uma
coisa que me deu uma espécie de norte, por-
que o João Gilberto foi um encontro com a
minha capacidade de acompanhar com toda
a minha mente o que estava se passando
naquela revolução.
E nesse mesmo ano, apareceu em Santo
Amaro um vendedor com algumas revistas
- era a revista Senhor. Ele falou com meu
irmão Rodrigo, que é mais velho do que eu
(dois irmãos acima de mim) e muito queri-
do, e Rodrigo me chamou: “Cate, venha cá,
esse moço está querendo vender essa revis-
ta”. Eu fui olhar, achei aquilo tudo tão bo-
nito e tão moderno, a capa e os desenhos.
Eu pintava e desenhava - casas, rostos, fi-
guras humanas, casarios, com tinta óleo e
guache, porém ainda figurativo. Mas co-
mecei a querer fazer uma coisa moderna, já
quis fazer uma pintura abstrata. E fiquei
interessado na revista por causa dessas coi-
sas. Como Rodrigo já trabalhava, ele me fez
a assinatura e foi uma verdadeira maravilha
para mim. Logo tomei contato, no primeiro
número que eu tive na mão, com um conto
lindíssimo da Clarice Lispector, “A imitação
da rosa”. Pensei: “Isso é mais bonito que o
William Saroyan, e é uma mulher, no Bra-
sil”, eu não acreditava. E havia uns textos
curtos, muito perspicazes e modernos e
irônicos e bem-feitos do Paulo Francis, que
me encantavam. O Paulo Francis tinha uma
sofisticação e uma informação sobre as coi-
sas que aconteciam no mundo de Nova York
que eu achava espetacular, e de fato era. E,
finalmente, meses mais tarde, um conto do
Guimarães Rosa (talvez tenha sido Meu tio,
o Iauaretê), e eu fiquei maravilhado. No ano
seguinte (1960), eu me mudei para Salva-
dor, com esse acervo imenso para mim na
verdade, embora eu não tivesse uma infân-
cia num ambiente literário.
CULT Qual foi o livro de Unamuno que Luís
Tenório lhe deu e por que “mudou sua relação
com as palabras”?
CAETANO VELOSO Na verdade,
vocês estão tocando num ponto engraçado
aí... Eu sou muito veraz. Todo tempo, mi-
nha tendência é ser muito verdadeiro. Eu já
tinha incluído o nome de Tenório nessa de-
dicatória porque ele me deu de presente,
quando eu voltei de Londres, Em busca do
tempo perdido, de Proust, pelo qual ele estava
apaixonado. E eu não tinha planos, nem
antes, na minha vida, de ler Proust. Eu ou-
via falar como uma coisa tão superior, tão
genial, pensava que não ia ler. Eu não gosta-
va muito de romance. Na verdade, depois,
desenvolvi um pouco mais de discernimento
das coisas, sempre tateando, sempre meio
tímido diante de meus amigos que tinham
livros e que liam com mais freqüência. Daí
eu li O
grande Gatsby, e achei maravilhoso; é
um livro ao qual eu também me sinto muito
ligado, já reli umas três ou quatro vezes ao
longo da vida. Tanto que eu li Hemingway
e nunca consegui gostar de Hemingway
tanto quanto eu gosto de Fitzgerald, o que
é uma coisa que deve estar, do ponto de vista
crítico, não correta... Mas é verdade. Nesse
período, eu li um livro de Faulkner (The Old
Man), aquele da enchente, que saiu no Bra-
sil com o nome de O velho e o rio, para poder
parecer com O velho e o mar de Hemingway,
que eu tinha lido e achado muito bonito,
com aquelas frases curtas e tal...
CULT O som e a fúria, Enquanto ago-
nizo...
CAETANO VELOSO Não, eu não sou
muito de Faulkner, por não ter lido muito.
Eu gostava do Guimarães Rosa, da Clarice
Lispector. Nesse meio tempo, encontrei o
pessoal do Teatro dos Novos em Salvador.
Era uma turma de teatro que tinha ido a
Santo Amaro se apresentar em 1959
também e, quando nós nos mudamos em
1960 para Salvador, eles conviviam muito
conosco. Por isso terminamos indo cantar
no Teatro Vila Velha, que é o teatro que eles
construíram. Tanto os atores quanto o
diretor ficaram amigos nossos e eles nos
mostravam, ou emprestavam ou davam livros
e discos, como Billie Holiday e Chet Baker,
que eu não conhecia. Eles falavam muito em
Lorca, porque tinham feito, quando ainda na
escola de teatro, A casa de Bernarda Alba, e se
lembravam e comentavam muito. E eles que-
riam fazer Yerma. Então falavam muito em
Lorca. Écchio Reis, que é um dos atores, me
deu o Romanceiro cigano, traduzido em por-
tuguês, dizendo que Lorca era o poeta mais
maravilhoso. Li algumas vezes... Bom, a gente
tem que contar as coisas com um mínimo de
cronologia, se não as coisas não são entendi-
das, né? A essa altura, todo pessoal que co-
nhecia, em Salvador, todos os amigos que fiz
já liam Bandeira, Drummond, Cecília
Meireles, Vinícius de Moraes...
CULT E João Cabral?
CAETANO VELOSO O João Cabral
veio logo em seguida. E um pouco Fernando
Pessoa também. João Cabral terminou sendo
para mim a presença, do ponto de vista da
poesia, mais forte. Mas antes de eu conhecer
a poesia de João Cabral, e já tendo lido muito
Vinícius, Drummond, Cecília e Bandeira,
como todos amigos... Aliás, esse é um hábi-
to que eu não vejo hoje em dia no pessoal
jovem - ler poesia na quantidade e com a
freqüência que a gente lia. Quando éramos
novos, todo mundo que eu conhecia lia
poesia. O fato de saber dois ou três poemas
de Vinícius inteiros de cor, quatro de Drum-
mond de cor, um de Cecília Meireles de cor...
Meu irmão Rodrigo, por exemplo, tem de
cor, até hoje, poesias lindas e longas da Ce-
cília Meireles, aquela do punhal de prata,
que ele sabe dizer toda, lindamente, de cor.
Curiosamente, a gente tinha o hábito de
comentar, quase como se comenta hoje os
discos que saíram, as poesias de que gostava
mais. A gente lia esses poetas brasileiros e
um pouco de Fernando Pessoa, sobretudo
Álvaro de Campos (mas não era ainda uma
entrada forte no Fernando Pessoa).
O Écchio me deu o livro do Lorca e eu, que
já conhecia esses poetas brasileiros, quando
li aquele do Romanceiro cigano, não achei
nada: “Meu Deus, como dizem que é um
grande poeta, o maior poeta que existe? Eu
leio e é uma coisa tão simplória, não vejo
nada, é quase nada, qualquer um faz”. Não
senti, não sei por quê. Vocês vejam o que é a
poesia... A poesia é uma coisa muito
misteriosa, muito mais estranha... Um dia,
lendo e relendo um dos poemas, uma outra
vez, tentando ver o que era, já sem esperança
de que aquele Lorca tivesse graça alguma ou
que eu fosse entender que graça é que as pes-
soas achavam naquele Lorca.... De repente...
Eu vi o que era a graça que tinha naquilo!
Num momento assim, tudo se iluminou. Eu
vi que aquilo era lindo, eu vi por que aquilo
era lindo, mas por um tudo ou nada eu podia
não ter percebido aquilo. Mas eu fiquei todo
arrepiado! Porque até os poemas que eu já
tinha lido e relido, e dos quais eu pensava que
não iria nunca mais me lembrar, porque não
me tinham parecido nada, ganharam,
retroativamente, uma dimensão - uma luz -
que eu não imaginava e que eu descobri num
relance, no meio de uma releitura de um da-
queles poemas. Eu vi o que era, peguei a cha-
ve, de repente. Aí eu fui reler tudo apaixona-
damente.
CULT E qual era sua gazua?
CAETANO VELOSO Eu não sei, é tão
impalpável. Não é que eu pudesse lhes dizer
assim: foi aquele verso ou tal aspecto. O que
eu senti está em todos os poemas o tempo
todo, poderia ser em qualquer lugarzinho.
Não é que houvesse uma característica que
se destacasse, que eu pudesse dizer qual foi.
É a chave de tudo aquilo. De repente eu vi,
num momento, que poderia ser qualquer
outro. E eu entendi isso na mesma hora. Eu
vi que simplesmente tudo aquilo era assim.
Eu posso mais ou menos lhes descrever o
que era... Mais ou menos, porque é muito
difícil... O que era a descoberta, mas, na ver-
dade, era a descoberta do encanto, que
encanto tinha aquilo, que eu não estava
percebendo. Entendia todas as palavras, via
que tinha aquelas rimas, que não são rimas
perfeitas, mas que dava para ver que eram
rimas, achava muito simplório e acabava sem
dizer nada. Diferentemente das poesias de
Drummond, Vinícius, ou mesmo de Manuel
Bandeira, que às vezes tinham aquele
“simples”... Mas o simples do Manuel Ban-
deira era um over-simples, um simples que é
simples demais. A graça está nisso, você sabe
onde está a graça, onde está o deslocamento.
No Lorca, eu não achava suficientemente es-
tranho nem suficientemente bem-feito...
CULT Não era um claro enigma...
CAETANO VELOSO Não era, mas
depois eu vi que era muito isso. Fiquei um
tempo apaixonado por aquilo. É como se a
alma do poeta que tinha escrito aquilo
estivesse o tempo todo numa outra instância.
Como se houvesse uma visão quase dolorosa
mas também prazerosa, externa ao poema.
Não era o que era dito no poema, mas era
como se fosse visto. Você entrar nesse lugar
dava toda a graça. É como se os poemas
fossem ingênuos, mas não excessivamente
ingênuos, é como se eles fossem exemplos
de algo que não era o que aquele poeta
sobriamente faria, mas algo que ele via que
se dava e que ele sabia anotar e transmitir.
Era como se fosse alguém que capta o tom
de uma produção anônima ou de uma
produção folclórica e que vê o encanto
daquilo, mas como que meio de fora. Esse
lugar acima dava àquelas imagens a força
que elas têm e dava à própria atmosfera po-
pular dos poemas um excedente de graça.
Aí eu vi a imensidão da beleza daquelas
coisas, e aí começou tudo a ficar lindo.
Aquela coisa [recita]: “Suas pernas escapa-
vam como peixes surpreendidos/ metade
feitas de lume/ metade feitas de frio”.
Quando você não sabe que isso é deslum-
brante, você não vê e não sabe nada disso. E
ainda traduzido em português; depois eu vim
a ler em espanhol, que ainda é mais bonito
[recita]: “Sus muslos se me escapaban/ como
peces sorprendidos”. Esses “muslos” que são
as “coxas”, “suas coxas me escapavam”... Mas
“coxas” não é bonito como “muslos”. [recita]
“Sus muslos se me escapaban/ como peces
sorprendidos/ la mitad llenos de lumbre / la
mitad llenos de frío”... O ritmo era como se
fosse uma coisa que ele ouvia e ele sentia e se
entregava ao sentimento de prazer e dor de
ouvir aquele ritmo. E como as idéias que vi-
nham eram as necessárias para aquele ritmo...
Enfim, a poesia. E eu fiquei maravilhado e
comecei a entender melhor. E tanta coisa que
Vinícius fez, que era imitação até desse poe-
ma aqui. Isso foi um acontecimento muito
importante também.
Nesse período, quando comecei a distinguir
as coisas, eu já tinha lido poesia, e, por esse
encontro importante com Lorca (por ter se
dado essa virada), eu entrei numas de que
me agradava mais ler ensaios e poesia do que
literatura de ficção (romance, conto etc.).
Quando se tratava de Clarice Lispector ou
Guimarães Rosa, eu gostava, porque é prosa
mas é poesia, é tão bom quanto poesia.
CULT Faltou concluir por que o livro de
Unamuno “mudou sua relação com as pala-
vras”...
CAETANO VELOSO A história que
vocês mencionaram me levou a essa grande
digressão. Faço uma retrospectiva: eu sou
muito veraz, mas o que vocês citaram, esse
trecho da dedicatória, é um momento não
muito verdadeiro. Na dedicatória, a
primeira coisa que eu tinha posto foi o fato
de Tenório ter me dado de presente Em
busca do tempo perdido, quando eu voltei de
Londres. Essa digressão se deu porque eu
nem pensava que ia ler Em busca do tempo
perdido. Primeiro, porque era muito ele-
vado; e segundo, porque era literatura de
ficção. Eu já estava decidido que não gos-
tava de ler romance. Eu gostava de ler en-
saio. Antes de ir para Londres, eu lia Lévi-
Strauss e adorava ler Sartre, gostava da
inteligência daqueles argumentos bri-
lhantes.
Eu gosto até hoje de ler filósofos e ensaístas.
Gostava de ensaio e poesia de preferência a
romance e ficção. Então eu não tinha planos
de ler Em busca do tempo perdido. Mas o
Glauber [Rocha] me tinha dito em Londres:
“Você tem que ler Proust. Antigamente eu
também reagia contra.” E eu falei para ele:
“Acho que não vou ler, é romance, são oito
volumes.” Ele disse: “É, todo mundo falava
Proust, Proust, grande literatura, eu pensava
que era opressão cultural. Mas eu fui ler, ra-
paz... Você tem que ler, é maravilhoso, aquilo
é maravilhoso mesmo. ”O Glauber falou, eu
fiquei com uma pulga atrás da orelha, mas
nem por isso saí para comprar o livro de
Proust. Quando eu voltei ao Brasil, o Luís
Tenório estava apaixonado por Proust e, fa-
lando nisso, eu contei: “O Glauber me disse
que era uma maravilha, que realmente ele
pensava que era opressão cultural, mas que
não, que é beleza pura”. Tenório ficou calado
e quando chegou meu aniversário (agosto de
1972), ele me deu de presente Em busca do
tempo perdido, toda a coleção. E eu pensei:
“Bom, vou começar a ler.” E li todo.
Eu terminei colocando Unamuno porque o
Tenório também me apresentou o livro de
Unamuno, Viagem por terras de Espanha e
Portugal, em 1976 ou 1978. E ali há algumas
reflexões sobre a língua portuguesa que são
maravilhosas. Ele apresenta uma seleção de
palavras que são realmente encantadoras.
Tem um negócio sobre a palavra “luar”, que
ele diz que é uma palavra intraduzível, que
só tem em português. E de fato, porque você
tem luz de la luna e moonlight e clair de lune e
chiaro de luna, mas “luar” só em português.
Mais especificamente do que “saudade”,
“luar” é uma palavra unicamente da língua
portuguesa. Não há, nas outras línguas
ocidentais, um caso de uma palavra inven-
tada só para isso. “Luar” é uma palavra
maravilhosa, é a luz da lua. Mas ele fala “luar”
e “noivado” e “nevoeiro”. Ele chama de
intraduzíveis não porque não se encontrem
equivalentes nas outras línguas, mas por cau-
sa do som, a combinação da semântica com o
som, que é uma coisa do gosto da língua por-
tuguesa. Isso me impressionou muito no li-
vro de Unamuno. E eu tinha muito que agra-
decer isso ao Tenório também. Mas quando
eu escrevi a dedicatória, pensei: “Pô, a pessoa
vê essa dedicatória pequeninha, está antes do
livro, esse livro grandão, de memórias, eu falo
de Em busca
do tempo perdido logo no início...
Mas eu não quero deixar de agradecer ao
Tenório [ri], tem também o negócio de
Unamuno.” Aí eu peguei e substituí o Proust
pelo Unamuno. Eu quis manter um agrade-
cimento ao Tenório por esse livro, mas na ver-
dade eu primeiro tinha pensado em agrade-
cer a Tenório o presente que foi Em busca do
tempo perdido. Então isso não é muito verda-
deiro, nada é mentira, mas não é veraz o sufi-
ciente como eu gosto de ser.
CULT E você se reconciliou com os romances?
CAETANO VELOSO Antes do Tenó-
rio me dar o Proust - e por isso o Proust foi
lido como deveria ser e me apaixonou como
me apaixonou -, eu tinha feito uma aposta.
A Dedé, que era minha mulher e é a mãe de
Moreno, gosta de ler romances. É engraça-
do, porque já minha mãe lia romances... E
Dedé dizia: “Puxa, Caetano, tem romances
que são bonitos e você fica com esse negócio
de que não gosta de ler romance. Você vai
ler.” E me fez ler O vermelho e o negro [de
Stendhal]. Ela comprou dois exemplares,
para ela ler e eu ler também ao mesmo
tempo. Ela lê mais rápido do que eu e fez
uma aposta que ela leria mais rápido. Eu
disse: “Claro que você vai ler mais rápido,
mas eu vou me virar aqui para ver se agüento
esse negócio -´quando a condessa abriu a
porta’...”Eu acho sempre isso chato – “fula-
na abriu a janela e viu a ...” Eu pensava que
isso ia ser sempre chato. Não gostava, pensa-
va que não gostava. Mas eu li O vermelho e o
negro e eu vou lhes dizer: esse é o romance de
que eu mais gosto de todos os romances que
eu já li. Eu acho aquilo lindo. O jeito que é
escrito, o tamanho das frases, fiquei apaixo-
nado pelo romance. Já li umas duas ou três
vezes em português e reli em francês. Então,
quando Tenório me deu Em busca do tempo
perdido, eu já não estava tão de mal com a
prosa de ficção como antes.
Mas tem uma ressalva que devo fazer
também, de caráter cronológico, e é impor-
tante. Por causa do contato com Augusto
de Campos, Haroldo de Campos, Décio
Pignatari, sobretudo com Augusto (eu
conheci os outros através dele), eu li a poesia
e os manifestos de Oswald de Andrade. E
fiquei maravilhado, porque eu já tinha feito
o meu disco tropicalista todo; então me senti
reafirmado, reassegurado, confirmado nas
minhas intenções, e aquilo me deu um gran-
de estímulo. E o Augusto também foi me
dando umas coisas outras - Sousândrade,
Kilkerry, os artigos deles, a poesia deles, e
daí os romances do Oswald de Andrade. Eu
fiquei maravilhado. E uma tradução de
trechos do Joyce, do Finnegans wake, que me
maravilharam. Aquele Panaroma do
Finnegans wake eu acho uma das coisas mais
lindas que já foram publicadas no Brasil.
Aquilo é uma coisa maravilhosa. Eu termi-
nei o Finnegans wake na casa de Cabrera In-
fante em Londres. Ele tinha uma edição
muito bonita e eu lia muitos trechos em
inglês, diretamente no original. É bom por-
que é um livro que é prosa mas é poesia
mesmo. Precisava ter uma erudição para
saber todas as referências, mas sem todas as
referências já é muito bonito também.
Eu tinha escrito um texto chamado
Acrilírico, sem conhecer a prosa de Joyce, co-
nhecia alguma coisa do Panaroma, eu acho. E
o Augusto ficou muito impressionado com o
texto de Acrilírico.
De uma certa forma, era
um caminho um pouco gozado, um pouco
fácil, porque eu, com naturalidade, se me de-
dicasse a fazer muito daquilo, eu ia enveredar
por aquele caminho. Curiosamente, há algu-
ma coisa em mim que responde àquela ade-
são entusiástica, que está viva até hoje, que
começou quando li William
Saroyan. É uma
necessidade, talvez por minha própria igno-
rância, de eu entrar em contato com as con-
venções da narrativa clássica. Eu não quis fi-
car fazendo aquele negócio só assim para
aquele lado, eu não sei o que é... Sinceramen-
te, não sei o que é... Mas me parecia mais fácil
ficar fazendo coisas assim mais para aquele
lado, experimental. Mas esse “mais fácil” já
significaria que eu não faria talvez coisas pro-
priamente boas. Eu acho que Acrilírico é bom,
mas porque foi feito assim despretensiosa-
mente. Há um texto meu, mais ou menos
dessa mesma natureza, que eu escrevi mais
tarde para a Navilouca,
que eu acho bacana
também. Mas eu não sei... Por alguma razão
que eu não sei explicar muito bem, eu achava
que era uma certa facilidade.
CULT No livro você fala algo assim...
CAETANO VELOSO Como no caso
do Araçá azul.
No meu texto em Verdade Tro-
pical sobre Araçá
azul, eu digo muito do que
é essa sensação, mas ali havia vários outros
fatores que não seriam o caso da literatura.
Ali havia o negócio de eu me sentir mimado -
“volta de Londres, pode fazer tudo, e tam-
bém fazer aqueles discos experimentais, de
vanguarda só” - aquilo não sei... E eu tenho
horror a quem é cético com relação a essa
coisa das vanguardas. Eu sou entusiasta.
Como já disse a vocês, certa vez: eu sinto
muita atração por esse ambiente mental do
experimental, que é uma espécie de radicali-
zação da condição da modernidade na arte do
século XX. Eu sempre tenho uma relação
muito desconfiada, e antipática mesmo, dian-
te das pessoas que gostariam de se livrar des-
sas experiências radicais, de voltar atrás e de
apagá-las, fingindo que não aconteceram e
não querendo assumir as conseqüências que
possam ter vindo delas ou que possam delas
advir. Eu tenho uma certa ojeriza a quem é
reacionário quanto a isso. É curioso, porque
ao mesmo tempo eu faço música para as mas-
sas. Mas eu próprio não quero fazer disso
uma facilidade para mim. Acho que não te-
nho o direito! Prefiro enfrentar todas dificul-
dades, de diálogo ou crítica, mas eu tenho... É
uma questão de honestidade comigo mesmo.
Para mim, eu temo uma facilidade, uma facili-
tação, é estranho.
Eu li Ulisses
nesse meio tempo, por causa da
influência dos concretos, antes de ir para
Londres. Depois comprei em Londres, li
muitos trechos em inglês. É um livro muito
interessante e fascinante. Mas é curioso, há
um aspecto do Ulisses que na verdade eu não
acho no Finnegans
wake - sempre muito bem
escrito e dá muito show de bola em várias
direções, é muito estranho e muito interes-
sante, mas tem alguma coisa de chato. O
Finnegans wake nunca é chato, porque nunca
dá a impressão de que você precisa realmente
ler tudo [ri]. Você lê qualquer pedacinho, é
um relâmpago de beleza, de luz literária.
Ulisses é bonito, mas como é narrativo... É
muito estranho que apareça essa contradição.
Curiosamente, eu me ressinto, me agasta que
o Joyce não seja ficcionista. É curioso, eu
acho que ele é escritor, mas não é ficcionista.
E eu justamente não gostava de que os
escritores fossem ficcionistas, mas quando
eu encontro um que de fato não é... Porque
o Guimarães Rosa é um grande poeta mas é
um ficcionista, mas o Joyce não é. Ele nunca
escreveu nada que não fosse sobre ele mesmo
em Dublin, é o tempo todo aquilo. Ele não
imaginava alguém que fez isso ou aquilo, ele
simplesmente só sabia aquele negocinho da
vida dele em Dublin. Naturalmente, ele vê
que, dali, ele vai mexer com toda a literatura
do mundo, vai botar os professores para es-
tudar, ele que enchia a cara... Eu adoro aque-
la biografia dele, dá uma visão muito diferen-
te do que a gente pensava, um sujeito
desbundado, bêbado, muito desorganizado,
com a vida familiar desorganizadíssima, vai
ficando cego, mas muito quente sexualmen-
te, com uma mulher ignorante, e um pouco
depravado, e um pouco perverso. Mas mui-
to sexo e muito álcool.
CULT E cuja arte formalmente, estrutural-
mente...
CAETANO VELOSO Espetacular. E
é engraçado que tem aquele encontro dele
com Proust, fugaz, em Paris. Aquilo é
incrível. E um não gostava da literatura do
outro. Ele tinha lido alguma coisa de Proust
e não tinha achado nada, achou que não
tinha nada. E depois Proust leu alguma coisa
dele e também achou que não valia nada.
CULT Qual a atração do barroco e o que você
acha de Gregório de Matos e do Padre António
Vieira?
CAETANO VELOSO O que atrai no
barroco é que ele resulta ser uma arte mais
do código do que da mensagem. Muita gen-
te acha incoerente que os enxutos poetas
concretos saúdem o barroco. Mas é com ele
que eles têm mais profunda identificação.
Não é a enxutez do clássico que orienta o
critério deles: a economia equilibrada, o bom
senso, o horror ao horrível, ao exagerado,
ao extremo e ao insensato. É claro que
Augusto é mais clássico do que Haroldo e
Décio; Décio é mais romântico do que
Augusto e Haroldo; e Haroldo é mais
barroco do que os outros dois juntos. Mas
o grupo é do código e não da mensagem, e
mesmo Augusto não se deixa enganar por
medidas elegantes ou meras boas maneiras
literárias. “Todos os sons”, ele diz, e admira o
mais extremo de Nelson Rodrigues assim
como o mais extremo de João Gilberto. A
própria escolha que ele fez, em música popu-
lar, preferindo os tropicalistas a Chico, vem
do mesmo impulso que o leva a eleger
Lupicínio e desprezar Caymmi. Eu, que pre-
firo Caymmi, valho-me mais da ignorância
do que da modéstia para admitir que minha
visão põe a obra do Chico acima da minha.
Essas reviravoltas que faço aqui são, no en-
tanto, barrocas, o que me leva de novo para
perto deles. Adoro o Seqüestro do barroco de
Haroldo. É um texto de grande força. Quan-
to ao Imperador da Língua Portuguesa e ao
Boca do Inferno, são um deslumbramento.
CULT O que você acha de Machado de Assis?
CAETANO VELOSO Que posso di-
zer? É um dos melhores escritores que já li.
Ele é como João Gilberto. Tão grande e tão
concentrado (e tão “clásico” sem ter aberto
mão do escândalo estético) que dá a
impressão de estar sozinho.
CULT E Oswald de Andrade?
CAETANO VELOSO Oswald é, como
se diz na gíria de hoje, “tudo”. Oswald foi o
ponto que uniu todos os envolvidos direta
ou indiretamente nas atividades que
cercaram o tropicalismo. Tanto os Campos
quanto Zé Celso, Oiticica como Zé
Agrippino, Antônio Cícero e Zé Almino,
Duprat, Rogério Duarte, Torquato, Waly,
todos concordavam a seu respeito. O
patriarca do matriarcado de Pindorama, o
antropófago indigesto, o modernista mais
conseqüente porque mais irresponsável. Só
Glauber tomava uma certa distância. Não o
negava ou contradizia. Apenas contava que
nunca tinha se aproximado muito e não ia
fazê-lo agora que todos estavam falando nele.
CULT Numa certa época, muitos poetas e
compositores acreditaram, quase como um de-
sejo utópico, na música popular brasileira
como um meio efetivo de comunicação de mas-
sa para a poesia. Como você lê isso, já que
você foi, para certos escritores e quase toda
uma geração de poetas, um depositário desse
“princípio esperança”?
CAETANO VELOSO [ri] Eu não sa-
bia que isso se chamava “princípio espe-
rança”.
CULT Nós pegamos uma frase do ensaio pós-
utópico de Haroldo...
CAETANO VELOSO Ah bom, eu me
lembro desse artigo, mas está tão longe desta
questão da música popular que eu não liguei
uma coisa à outra. Eu entendo... No final
dos anos 60, houve muitas movimentações
assim, misturaram-se pessoas e áreas
diferentes. Nós já falamos na palavra
“produssumo” que o Décio cunhou. Mas
essa própria palavra, hoje, já oscila, treme,
por causa de vários fatores que a atingem
com a experiência que nós temos do
pensamento crítico como se desenvolveu
daquela época para cá. Por exemplo, se você
chama - como eu chamei, e chamei de pro-
pósito, repetidas vezes, nessa entrevista que
dei para o lançamento do Noites do norte -
aquilo que você apresenta para julgamento,
para fruição pública de produto, isso causa
um mal-estar em todas as pessoas envolvidas.
Eu acho que não houve nenhum crítico que
não mencionasse com certa ironia que eu
estava quase que desavisadamente usando a
palavra “produto” e por isso me traindo,
traindo uma postura de mero mercador,
quando queria me dizer artista livre. Fala-
se em produção e consumo... Mas quando
o Décio falava isso naquela época, ele estava
falando em nome dos artistas que mais
livremente queriam atuar. Justamente essas
palavras, hoje, só ressoam conformismo e
dão a impressão de que você merece tudo o
que Adorno falou sobre a indústria cultural
[ri]. Talvez nós mereçamos mesmo tudo
aquilo... Acho que nós merecemos tudo aqui-
lo. Porém, merecer tudo aquilo não significa
o que Adorno pensava que significa. E talvez
signifique ou talvez venha a ser outra coisa.
Naquela época, essa colaboração de gente da
alta cultura com a cultura de massas e a in-
dústria cultural era uma mostra de inde-
pendência e coragem, como na arte pop e no
cinema de Godard. E também no caminho
inverso, saindo do popular para o erudito,
como nas experiências dos Beatles e dos
tropicalistas. Mas evidentemente as coisas
não são assim fáceis e lineares. Mais tarde,
houve uma necessidade e um refluxo da
idéia de volta aos cânones mais tradicionais
e um cuidado com a idéia de alta cultura e
baixa cultura. Nos Estados Unidos, mistu-
raram muito e depois houve muita reação,
“high”, “low”... Mas me lembro de que,
quando era menino, eu ouvia os High Lows,
aquele grupo vocal adorado pelo Carlos
Coquejo, que era juiz do trabalho, também
fez algumas canções populares e era amigo
de João Gilberto. Mas o meu caso pessoal
terminou pondo o João Gilberto no centro
da resolução das perspectivas estéticas,
críticas, criativas e receptivas.
CULT Queríamos partir de João Gilberto e
chegar a João Cabral, que parecem ter sido
referências centrais para você num dado
momento, citando um trecho do texto De música
popular e poesia, do Antônio Medina
Rodrigues: “O canto a palo seco seria uma
espécie de arkhé de todo canto, filosofia vocal ou
experiência do canto antes do próprio canto. Com
muita distância, a voz de João Gilberto faz algo
parecido, mas o faz mais por sua semelhança
natural com uma das vertentes da poesia de João
Cabral de Melo Neto, dada a maneira com que
tanto o poeta quanto o cantor parecem mastigar e
remastigar as mesmas palavras, levando-as a
uma lisura espectral, a uma quase-neblina geo-
métrica. Ambos estão na corrente que busca idéias
puras, um depuramento do concreto que, no fim e
ao cabo, acaba dando um certo pitagorismo esté-
tico”.
CAETANO VELOSO Eu tenho im-
pressão de que esses dois artistas podem ter
me atraído, em grande parte, por caracterís-
ticas semelhantes a essas escritas pelo Medina.
Mas o fato é que são dois artistas que me
interessaram muito. E nós não falamos mes-
mo de João Cabral de Melo Neto, que é o
mais importante, porque foi no âmbito da
poesia; por um momento ele representou para
mim uma verdadeira monomania. Ele pare-
ceu centralizar tudo e resolver todos os pro-
blemas. Houve um momento em que ele me
pareceu ser o maior poeta vivo do mundo.
João Gilberto adora poesia. No texto “João
Gilberto e os jovens baianos” (Balanço da
bossa), Augusto conta seu encontro com João
em 1968 em Nova Jersey. Ele relata a
conversa com João, que falou: “Para mim, é
Caetano e Drummond”. E aí o Augusto
disse: “O Caetano fala que, para ele, é João
e João”. [ri] Porque, para mim, era João
Cabral e João Gilberto. Nessa época, quando
Augusto me conheceu, em 1967, eu dizia
isso todo o tempo: para mim, o negócio era
João Gilberto e João Cabral.
Mas mais do que procurei - ao fazer O
cinema falado - não apresentar sotaques
godardianos no ritmo ou na feitura ou no
que quer que fosse, eu procurava - na minha
lírica [ri] e nas minha letras de música -
fugir o mais que pudesse dos cabralismos.
Eu me lembro de que, quando ainda estava
no secundário em Salvador, no final do curso
clássico, eu fazia uns negócios de
brincadeira, escrevendo - imitava a Clarice
Lispector, imitava o Guimarães Rosa e imita-
va o João Cabral. Certa vez, eu fui ver umas
meninas lutarem capoeira com aqueles velhos
capoeiristas da Bahia. Eram amigas minhas,
que estavam na escola de dança e entraram na
escola de capoeira. Achei aquilo maravilhoso:
elas jogando com os caras e depois entre si.
Eu descrevi a cena primeiro como se fosse o
Guimarães Rosa, depois como se fosse a
Clarice Lispector e depois como se fosse um
poema do Cabral, com aquelas rimas toantes,
aquele ritmo que é uma métrica às vezes um
pouco quebrada, mas uma métrica de versos
de oito sílabas, sem as cesuras nos lugares
confortáveis, que o Cabral procurava na edu-
cação dele pela pedra... Se bem que na Educa-
ção pela pedra já não são versos de oito sílabas,
e sim versos mais longos. Eu fiz um negócio
assim, imitando. Mas eu perdi isso, eu fiz só
para brincar e mostrar a elas. Então, nas mi-
nhas letras de música, eu procurava não me
deixar, de forma nenhuma, parecer com aquilo
nem por nada, nem na forma nem nas idéias.
No Cinema
falado tem um pastiche... Isso eu
disse ao João Cabral e ele ficou impassível,
olhando para mim, com os olhos duros, co-
mo quem diz: “Não vou lhe perguntar nada
sobre isso, não quero nem saber.” Eu falei
para ele: “João, eu fiz um filme, e no filme
eu escrevi um falso poema, um pastiche de
poema seu sobre você, sobre a sua poesia.”
No início do filme, na hora que alguém as-
sobia O
cinema falado, aparece o Luiz
Zerbini, sentado, na festa, e diz: “João Cabral
de Melo Neto/ tentando limpar a poesia/ de
toda rosa/ toda merda/ e fazendo-a ainda
mais ridícula/ mas, não poetizar o poema /
sim, mas e quanto a poetizá-lo?/ seu fado de
magia e música o acossa de todos os lados”.
É metacrítico, é Cabral e é uma coisa que
põe em dúvida a decisão do Cabral, e de uma
certa forma critica a crítica que ele faz... Mas
é besteira, porque isso também já está incluí-
do na poesia dele - uma resposta crítica à pró-
pria crítica a ele feita. É que o meu é feito de
fora, o meu é pastiche, como disse a ele.
Ele era muito firme, muito engraçado, um
homem fascinante. Eu o vi numa das cenas
que eu tenho na cabeça como uma das mais
deslumbrantes desse mundo, e tão parecida
com os poemas dele! Foi em Dacar, quando
ele era embaixador. Eu e Gil estávamos sain-
do de sua casa, que tinha um jardim grande
com um gramado bonito. Estávamos con-
versando, e ele muito afável, atencioso, sim-
pático, direto. Então ele mostrou dois grous
coroados. Aquela ave alta, e ele baixinho. E
João disse assim: “É, são muito bonitos. Um
é macho e a outra é fêmea. Mas são absoluta-
mente iguais. Sabe como a gente sabe qual é
o macho e qual é a fêmea? Se você se aproxi-
mar, o macho ataca, e a fêmea não ataca. Ou é
ao contrário, não sei... Talvez seja a fêmea que
ataca e o macho não ataca. Mas é assim que se
descobre qual dos dois é o macho e qual dos
dois é a fêmea.” Então ele disse: “Vocês que-
rem ver?” E andou diretamente para o gra-
mado, reto assim. E um dos grous atacou, e o
outro saiu timidamente de perto dele. Ele pa-
recia um toureiro, porque ele ficou 100% con-
centrado nos movimentos do grou e se apro-
ximava até o máximo de risco e logo voltava.
E o grou desarmava, e ele de novo, umas três
vezes. Parecia a cena de uma tourada... Es-
tranho, o pássaro quase da altura dele. E daí
ele voltou, reto, como quem não tivesse feito
nada. E continuou a conversa: “Viu? É as-
sim. Ou é o macho ou é a fêmea, é um dos
dois. Mas é assim que se sabe.” E mudou
de assunto e falou de outras coisas [ri].
CULT É espantoso mesmo, dá outra dimen-
são àquele fascínio que você nutria por ele, quan-
do jovem...
CAETANO VELOSO A gente gosta-
va das poesias de Drummond, e eu fiquei
apaixonado depois por Cabral, e mais tarde
(devido a Mensagem),
por Fernando Pessoa,
que eu já conhecia. Mas quando li Mensa-
gem, eu fiquei muito impressionado, e achei
que aquilo era superior a tudo o que havia
em língua portuguesa, mas sempre com o
Cabral ali me segurando...
CULT O guardião do museu de tudo...
CAETANO VELOSO O guardião do
museu de tudo. Porque o Cabral, para mim,
era o maior poeta... Mas eu procurava não
colocar nada nas letras das músicas que fosse
diretamente disso. Embora, às vezes, eu pu-
desse pegar uma coisa ou outra - mas, em
geral, mais de prosa erudita - e citar assim
diretamente. Como “nada no bolso ou nas
mãos”, que é de Sartre, e está em “Alegria,
alegría”. Há várias coisas assim. “Desejo teu
desejo” é Hegel, que eu estava lendo com
Cícero, a partir de umas aulas de Kojève; eram
interpretações bonitas sobre a dialética do
senhor e do escravo, “a realidade é uma su-
cessão de desejos desejados e você deseja o
desejo...”. Essa forma de desejar o desejo fi-
cou na minha cabeça e terminou saindo na
letra do “Menino do rio”, que é uma coisa
assim amena, que não tem nada a ver...
CULT Esse procedimento é muito comum em
suas canções. Cite outros exemplos.
CAETANO VELOSO “Peter Gast”: a
canção inteira é já um caso absurdo. Eu me
envergonhava muito dela. Mas não pude
evitar de fazê-la. Além do tema geral, há
frases lembradas do livro de Daniel Alévy
sobre Nietzsche (“voa, tem as fibras
tensas”...). Só deixei de me envergonhar dela
depois de ouvi-la pela cantora argentina
Silvina Garré. Esta é a razão por que
dediquei Verdade
tropical também a ela.
Lembro da citação de uma frase do conto
“Um homem célebre” de Machado de Assis
na contracapa de Circuladô (“Mas as polcas
não quiseram ir mais fundo”), que é justa-
mente sobre um autor de canções populares
de sucesso que anseia pela criação de peças
“sérias”. A “raposa bêbada” de “Ele me deu
um beijo na boca” repete uma imagem de
Sousândrade, embora aqui eu tenha seguido
uma idéia popular de que raposas e guarás
chupam cana e se embriagam. Mas eu já co-
nhecia o poema e Augusto me alertou. Deve
haver outras de que não me lembro.
Mas uma ligação mais direta da feitura de
CULT Podre é um anagrama de poder...
CULT Você poderia comentar algumas das
CULT Entronizado no cotidiano...
CULT Mais em relação aos termos da in-
poesia brasileira com... Eu vivencio como se
fosse em outra instância, para não haver um
tipo de confusão... É estranho, porque ao
mesmo tempo que eu não respeito essa idéia
de (tal como me foi oferecida) alta cultura e
baixa cultura, eu não acho que seja saudável
uma confusão desse tipo que eu evitei - de
valorizar por uma parecença exterior ou de
dicção com a poesia respeitável... A canção
popular tem uma dialética interna própria e
uma história própria, tem um fazer consigo
mesma e esses elementos poderão entrar de
uma forma ou de outra, mas não podem
nortear. Não se pode confundir as perspecti-
vas críticas que olham o que está se passando
na música popular com as que olham o que
está se passando nos livros de poesia.
CULT Você colaborou em publicações margi-
nais, como Verbo Encantado, Ta-ta-ta, Flor
do Mal, Pólem, Navilouca. Você tinha alguma
atração especial por esses trabalhos?
CAETANO VELOSO Eu tenho mui-
to apreço por isso, mas dependeu de convites
que me apareceram. E à medida que os
convites apareceram, pediam que eu cola-
borasse, porque seria bom para a publicação
e também estavam reconhecendo que eu,
sendo um compositor de música popular,
podia participar daquelas publicações de
poesia ou literatura. O que também me hon-
rava, mas também o meu prestígio e a minha
fama poderiam ajudar as revistas. Eu aceitava
de bom grado e fiz esses textos com muita
facilidade e rapidez em geral. É uma rapidez
de quem no fundo parece que está sempre
trabalhando com aquilo porque, na hora que
precisa fazer, já vem muita coisa... Porque eu
trabalho o resto do tempo com aquilo, jogan-
do fora sem usar nem transformar em obra
para ser apreciada pelos outros. Mas é as-
sim... Eu não sei... Eu não tenho vocação
para... Eu poderia me calar mais para poder
concentrar a atenção sobre coisas que eu fi-
zesse e que fossem mais bonitas. Mas eu não
tenho esse temperamento e eu sou um pouco
cético em relação ao que eu faço. Eu não que-
ro levar... Eu não acho que seja tão sério as-
sim fazer essas coisas... Eu acho que a gente
faz justamente porque é uma coisa que você
pode fazer.
CULT Alegria, alegria, coletânea de textos
dispersos e publicados entre 1966 e 1976,
organizada por Waly Salomão, contém muitos
desses textos experimentais...
CAETANO VELOSO Waly quis fa-
zer esse livro. Eu gosto. Há meu artigo de
1965 para a revista Ângulos, há algumas coi-
sas bonitas escritas para o Pasquim, há aquela
entrevista dada ao Carlos Acuio para a
Manchete. E não há nada de que eu me
envergonhe muito.
CULT Nesse livro, há textos como “Boleros e
Sifilização”, “De noite...”, “deus, brotas”, “Não
verás um Paris como este”. São textos experi-
mentais, repletos de paronomásias, escritos entre
1969 e 1972, cujos ecos encontramos em muitas
canções, como “Outras palabras”. Você acha que
esses textos guardam relações com sua música?
CAETANO VELOSO Sobretudo com
“Outras palabras”, mas com muitas outras
canções também. “Jeito de corpo”, algumas
canções de Velô. “Podres poderes” tem
muitas coisas assim: “tons e tins e bens e tais
e tons e tins”. O próprio nome “Podres po-
deres”... Essas coisas são curiosas, porque às
vezes dá a impressão de que essas descober-
tas formais têm um caráter de descoberta
mesmo. É como se não fosse alguém, não
necessariamente... Termina sendo que é mes-
mo alguém dizendo alguma coisa que não
poderia dizer de outro jeito, a não ser fazen-
do aqueles jogos formais. Mas as próprias
descobertas de coincidências, de espelha-
mentos etc. às vezes parecem meras desco-
bertas de coisas que estão aí, na língua, e que,
uma vez descobertas, não instituem necessa-
riamente uma autoria. É quase como se o au-
tor pudesse patentear aquilo, mais como um
inventor do que como um autor. Inventor
mesmo. A palavra que o Pound escolheu é
muito adequada, mas eu não a estou toman-
do com o mesmo valor semântico que ele to-
mou. Eu acho que às vezes parece mesmo
uma invenção, no sentido de que aquilo pas-
sa a ser universalmente utilizado. Você des-
cobre que...
OS POETAS CONCRETOS
TÊM A
CORAGEM DE CRIAR
ELABORAÇÕES
INTELECTUALMENTE MUITO
AMBICIOSAS.
TENHO MUITO AMOR PORAQUELA
PRODUÇÃO DE POESIA E
TENHO
UMA VERDADEIRA FASCINAÇÃO
PELA RADICALIDADE E PELA
COERÊNCIA DO
AUGUSTO.
CULT Podre é um anagrama de poder...
CAETANO VELOSO Podre é um
anagrama de poder. É como alguém lembrar
de que uma palavra tal rima com outra, mas a
rima propriamente não pode ser... De uma
rima, ninguém pode alegar autoria, “fulano é
autor da rima de janela com estrela”, não se
vive isso... Essa ênfase na descoberta de jo-
gos formais e estruturais se parece um pouco
com isso. É como se tivesse tomando algo,
por exemplo, uma rima, como se fosse uma
criação, quando a rima está ali, poderia estar
em outro poema... Mas acontece que de fato...
Aí vem: uma rima, naquele poema, dizendo
aquelas coisas, naquele lugar, passa a ser uma
coisa que só aquele poema pode dizer, com
aquela rima, que dá aquele resultado e pro-
duz aquela sensação no leitor. Assim tam-
bém, um poema que tira partido do aspecto
visual de uma tal palavra com o significado
dela, com o valor semântico, e joga com isso,
termina que - quando são bons e verdadei-
ros poemas - eles não são meramente uma
descoberta de um negócio que está aí, mas é
alguém dizendo algo que não foi dito, de um
jeito que se apresenta como necessário.
Tem horas que é uma coisa incrível, que é
uma coisa divina mesmo... Você vê um poe-
ma como “Pulsar” [de Augusto de Campos],
com aquela página preta, aquelas estrelas,
aquilo como as estrelas vão... Aquela estrela
que vai ficando longe, e a própria página já
como um todo, estrelada, e com aquelas luas
que crescem, e a estrela que nos esquece e
some. E no “eco oco” o “o”, a lua fica oca
porque tem um buraco que é uma estrela,
que é o “e” em negativo, tem o “o” e o “e”.
Aí já é uma elaboração, são tantas coisas... O
negócio dos poetas concretos vem de uma
grande coragem de criar elaborações inte-
lectualmente muito ambiciosas com esse
material que era um material... Aquela defe-
sa do Manuel Bandeira, no lançamento da
poesia concreta, dizendo: “Podem dizer que
é trocadilho, que o trocadilho é a coisa mais
fraca”, não sei o quê, “ou que é escrita de
criança, mas justamente às vezes é no troca-
dilho que dá o negócio”. Eu me lembro de
ter lido faz anos um texto dele assim simpá-
tico, um pouco leve. Eu tenho muito amor
por aquela produção de poesia e tenho uma
verdadeira fascinação pela radicalidade e pela
coerência do Augusto.
CULT Em 1966, o Augusto leu o depoimento
dado por você à Revista Civilização Brasileira
e publicou o artigo “Boa palavra sobre a música
popular”. Daí, ele procurou um contato pessoal,
fixando um longo diálogo de afinidades. Comente
essa relação entre vocês.
CAETANO VELOSO No livro Verda-
de tropical saiu bem-feito tanto o retrato dele
quanto a idéia do que representa para mim o
encontro com ele. Mas eu tenho de lhes dizer
o que está no livro e o que permanece até hoje.
É uma coisa de grande amor, de grande afini-
dade, numa área muito rarefeita das persona-
lidades. Mas é muito estranho, coloquialmente
também nos damos bem, há uma certa doçu-
ra no trato, pois somos duas pessoas afáveis,
delicadas e discretas; eu sou mais falastrão,
mas não quando estou com ele. Ele é muito
diferente de mim. Eu vejo como fascinante
essa capacidade do Augusto de concentração
e de manutenção de uma coerência. Mas ele
se lançou como um bólido naquela direção e
não há nada que possa mexer, e é muito bom
que seja assim.
CULT Quais foram suas primeiras impres-
sões com a leitura dos poemas concretos? E qual
sua leitura posterior da poesia de Augusto, Décio,
Haroldo?
CAETANO VELOSO Creio que con-
tei sucintamente isso em Verdade tropical. Não
digo que tudo me pareceu imediatamente
maravilhoso. As conversas com Augusto
mais as revistas e os livros que ele me deu
faziam, com os poemas, um conjunto
complexo, coerente e fascinante. Sobretudo
as traduções de trechos de Joyce (Finnegans
wake) me mostravam o brilhantismo dos
irmãos Campos no campo da palavra. E
havia o texto-manifesto escrito por Décio.
Os poemas apareciam nesse contexto e as-
sim o risco de eles parecerem simplistas era
evitado. Porque quando temos um re-
pertório limitado, certas coisas complexas
nos parecem obviedades triviais. Luxo/Lixo,
aquele do Haroldo que diz “nascemorre”,
certos poemas me impressionavam mais que
outros. Eu adorava (adoro) os poemas de
E. E. Cummings. Às vezes achava que algo
que havia nele faltava aos concretos de
Sampa. Depois entendi melhor. De todo
modo, gosto mais de “Viva vaia”, de “Pós-
tudo”, do “Pulsar”, de “ão”, daquele retrato
de Décio feito por Augusto, em suma, dos
poemas que foram escritos depois da época
em que os conheci do que dos anteriores.
Sou apaixonado por um poema chamado
“Não” que Augusto mandou pelo correio e
que é xerocado. No momento estou assom-
brado com a nova máquina do mundo de
Haroldo [A máquina do mundo repensada].
Eu já amava muito esse tema nos Lusíadas e
em Drummond (só topo com Dante
casual-
mente e via outros: é tudo sempre perfeito e
lindíssimo, mas eu tenho a impressão de que
ainda não mereço ler, sinto demasiada reve-
rência).
CULT Você escreveu que a expressão “arco
teso”, do manifesto do Décio, publicado na revista
Invenção n. 5 (1966/67), além de citada numa
canção, “foi uma presença difusa por sob as pala-
vras de muitas das minhas composições e decla-
rações esses anos todos”. Como é esse seu
interesse,
simpatia e até compromisso pelas coisas e causas
da vanguarda?
CAETANO VELOSO Eu adoro aque-
le manifesto do Décio. É esse meu entusias-
mo de que falei. A idéia de manter o arco
teso, eu sempre tenho comigo. O que não
quer dizer que, necessariamente, eu identi-
fique com a idéia de rigor as escolhas estéti-
cas que foram feitas por Augusto, Décio e
Haroldo. Isso nunca aconteceu comigo. Eu
encontrei muita identidade, muitos
ensinamentos e reconheço também uma
grande superioridade cultural e intelectual
dessas pessoas sobre mim, pela própria for-
mação e pelo quanto eles continuam estu-
dando e trabalhando. Mas isso não quer
dizer que quando eu digo “arco teso”, mes-
mo tendo aprendido com eles, deva parti-
lhar necessariamente de todas as opiniões e
de todas as perspectivas críticas. Justamen-
te manter o arco teso, para mim, é não deixar
afrouxar, é não deixar tampouco simplificar
as coisas para mim com uma adesão ao que
eles já trazem como programa. Isso não im-
plica necessariamente discordâncias. Sim-
plesmente eu tenho que ser fiel à minha pró-
pria experiência.
Se, em vez de fazer discos com canções
(como lhes confessei no início de nossa
conversa) - das quais sou escravo -, eu
tivesse feito, depois do Araçá azul, discos
cada vez mais experimentais e sem canções,
com pesquisas de som... Se eu tivesse vislum-
brado uma pesquisa de som que ao mesmo
tempo me apaixonasse em si mesma e me
parecesse muito importante para a cultura
sonora de todos os homens, ninguém me
O BRASIL É UM POUCO
O AVESSO DO MUNDO
E SÃO PAULO É O AVESSO
DO BRASIL, MAS TAMBÉM
NÃO É O MUNDO,
É UM OUTRO LADO,
É UM OUTRO LADO
DO OUTRO LADO
|
arredaria do meu caminho nessa direção. Mas
isso não se deu comigo. Deu-se achar que a
pesquisa de som e a liberdade em relação à
canção convencional e a coragem de experi-
mentar são coisas importantes e eu agi como
quem considera essas coisas importantes. E,
por outro lado, seria uma facilitação para mim.
Mas o Augusto pode dizer: “É, o Caetano
fala isso, mas se ele tivesse feito discos daque-
la natureza, os discos não venderiam, ele não
seria a celebridade que é, o tempo todo, não
seria um sujeito fácil assim como ele é, não
teria discos vendidos.” Meus discos não ven-
dem muito. Um, por um acaso dessas coisas
do mercado que nem Adorno sabia explicar,
vendeu muito, que foi esse Prenda minha. Mas
antes dele nenhum outro e depois dele
tampouco. Eu nunca vendo muito. Mas ven-
do. Meus shows fazem sucesso, o pessoal vai
ver. Têm caráter também experimental, de
aparência experimental, mas são shows de uma
pessoa da música popular que faz canções e
as apresenta.
CULT Lê-se em
Verdade tropical: “Eu
nunca tinha, até então, ousado pensar em ser po-
eta. (...) a palavra poeta encerrava tal grandeza
como nenhuma outra poderia, e, mesmo que um
tanto secretamente, eu a acolhi em meu coração e
procurei aplicá-la ao que eu fazia e faria - embo-
ra não fosse poesia.- Você vê diferenças entre es-
crever poesia, letra de música, ensaio?
CAETANO VELOSO Todas as vezes
que eu fiz poesia foi só de brincadeira, como
esse pastiche para o filme e a imitação de
Cabral. Eu acho que o Acrilírico não é poesia;
para mim é prosa, é um texto, nunca conside-
rei um poema. Aquele outro que saiu no Flo-
res do mal – “meu primeiro amor foi a primei-
ra nota musical/ e eu odiei para sempre a
música/ eu sou um caranguejo de duas
bocas:/ uma inimiga da outra” - parece mais
como um poema chato, mas não acho que
seja um poema. Eu agora já estou velho
acho que não me vai acontecer, mas se algum
dia eu tivesse que chegar a fazer poemas mes-
mo, eu ia entrar numa outra, num outro
registro de exigências, de discussões inter-
nas, que não são as que eu utilizo para fazer o
que eu faço.
CULT Em “Sampa”,
são tecidas várias ci-
tações e associações literárias. Você identifica a cida-
de de São Paulo à literatura (a poesia concreta, os
beats)?
CAETANO VELOSO Eu estava pen-
sando nisso... Certa vez, mencionei que o fato
de Jorge Mautner e José Agrippino de Paula
serem autores paulistas era um aspecto
determinante do tipo de literatura que eles
fizeram e que, de todo modo, eu precisava de
São Paulo como uma espécie de antídoto con-
tra um suave veneno [ri]. E que a Poesia
Concreta, a USP e a literatura beat (como no
caso de Zé Agrippino e Mautner) eram, fo-
ram e continuavam sendo necessárias para eu
seguir em frente. Eu acho que São Paulo é
uma situação especial dentro no Brasil. Por
isso que “Sampa” - eu citando Décio
Pignatari, que já estava citando Oswald de
Andrade - fala do “avesso do
avesso do aves-
So”. Porque o Brasil é um pouco o avesso do
mundo e São Paulo é o avesso do Brasil, mas
também não é o mundo, é um outro lado, é
um outro lado do outro lado. Isso é muito
importante. Eu gosto muito de, naquela opor-
tunidade, rapidamente, ter posto na canção
aquelas referências a Mautner, à Poesia Con-
creta, ao Décio (em particular, pela citação e
essa brincadeira com o avesso de Oswald), a
PanAmérica de Zé Agrippino.
CULT Daria para
falar um pouco de suas
relações com as pessoas e as obras de Waly
Salomão e José Miguel Wisnik?
CAETANO VELOSO São amigos
meus. E muito diferentes entre si para que
eu fale dos dois no mesmo momento. Tam-
bém não me sinto qualificado para falar do
trabalho deles: os dois são mais cultos e mais
responsáveis intelectualmente do que eu. O
que vou dizer aqui sobre os dois deve ser
ouvido levando-se em conta esses pressupos-
tos. Conheço Waly desde 1962. Zé Miguel
veio à minha casa no Rio já pelo fim dos anos
1970, creio. Waly é exuberante: há uma
energia mental que transborda dele e que
levou anos para ele conseguir domar a fim
de organizar objetos limitados, acabados.
Suas letras, sua antinovela, seus poemas
espalham-se para fora de si mesmos, mal se
contêm na forma que buscam. Zé Miguel é
um observador fino, um escritor cuidadoso
e delicado - e isso aparece tanto em seus
trabalhos teóricos ou críticos quanto em suas
canções. Ele tem uma sensibilidade muito
bem destilada. Adoro o livro dele sobre a
música. E tenho muita vontade de cantar É
sobre-humano amar.
CULT Num texto do
livro Alegria, alegria,
há a frase: “Eu sou um escritor cujo estilo é uma
tentativa de realizar o irrealizável.” Seria uma
confissão ou auto-revelação também válida para
a música?
CAETANO VELOSO Sem dúvida, mas
eu também acho que qualquer um diria isso,
né?
O POETA PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA
A IDÉIA DA
SUPERIORIDADE
DA PROSA SOBRE A
POESIA
ESTÁ NO FERNANDO
PESSOA
DO LIVRO DO
DESASSOSSEGO,
MAS EM “LÍNGUA” ESSA IDÉIA TOMA
UM SENTIDO MAIS
IRÔNICO E DUVIDOSO
|
CULT Você poderia comentar algumas das
composições ou releituras musicais que você fez de
poemas? Lembramos de “Cobra Coral” (Waly
Salomão), “Circuladô” (Haroldo de Campos),
Escapulário”
(Oswald de Andrade), “Gil en-
gendra”
(Sousândrade), “Pulsar” e “Dias dias
días” (Augusto de
Campos)... Faltou algum?
CAETANO VELOSO Eu tinha es-
quecido, quando vocês foram falando, eu fui
rindo e me lembrando. Não tem nenhum
deles de que eu não goste. Mas eu tenho um
carinho especial pelo “Pulsar”. Que é um ne-
gócio que eu quase não fiz nada e no entanto
o resultado para mim é de uma beleza... Eu já
fiz várias versões dele, em vários shows, já
gravei umas três vezes, de três maneiras dife-
rentes. De vez em quando, penso em fazer
uma nova versão, de gravação ou ao vivo. É
curioso, eu acho aquilo lindo mesmo. E eu
não fiz esforço nenhum. Eu tive uma idéia
muito simples e apliquei a idéia na hora, como
uma solução quase fácil demais, mas eu sabia
que não era. Foi fácil de aparecer e de execu-
tar o primeiro esboço, que foi o que eu apre-
sentei no disco incluído no livro de Augusto
[Caixa preta e, depois, Viva vaia]. Mas sabia
que, embora parecesse fácil, mesmo para mim,
eu sabia que era rico. Com o passar do tem-
po, eu fui achando mais e mais ainda rico. É o
que eu mais gosto.
CULT Suas
composições “Acrilírico” e “De
palavra em palabra” têm raízes mais próximas
da récita do que da canção. Estariam mais
próximas das leituras posteriores que você fez de
poemas como “Dias dias días” e “Pulsar”?
CAETANO VELOSO Eu nunca pen-
sei nisso. Mas o “Acrilírico” eu tinha vonta-
de de regravar. Porque não está muito claro
ali - e o texto é bonito; o Rogério Duprat
naquela altura temeu que a gente fizesse
uma gravação levando a sério o texto e eu
fiquei intimidado para não ficar declamado,
e distribuímos as vozes e fizemos inter-
ferências para quebrar mais ainda. Mas eu
tenho pena, acho que aquele texto poderia
aparecer mais claramente. E no final tinha
“putrificação”, que o Rogério Duarte me
pediu que tirasse. Depois ele me contou que
foi o André Midani que pediu a ele que
me pedisse e ele concordou com o Midani.
Mas eu acho que o Rogério tem uma
tendência mais religiosa, é ligado à idéia de
religião, então ele ficou mais impressionado.
Embora estivesse muito angustiado na
época, porque tinha saído da cadeia, estava
com a cabeça muito ruim, mesmo assim eu
não estava com medo de dizer aquilo, eu ia
seguir o texto como era, mas ele falou tanto,
que me convenceu.
CULT É como o “lave
maria, cheia de gra-
Xa”, do Finnegans wake...
CAETANO VELOSO É, parece, pare-
ce. Gozado, eu estou mais distante do assun-
to... Para mim, hoje em dia, eu já acho mais
difícil dizer aquele “putrificação”. Porque o
que o Rogério me disse naquela altura, eu
achei que não tinha problema, mas hoje eu já
sinto diferente. Se eu fosse regravar, por res-
peito ao texto, eu iria fazê-lo com essa palavra
no final. Mas eu tenho atualmente mais pre-
ocupação com relação a isso, porque a
figura de Nossa Senhora da Purificação hoje
tem mais sentido para mim. Tem até mais
do que aquilo que o Rogério falou: “É o
nome da santa padroeira de sua cidade, é do
seu povo, você vai dizer uma coisa dessa,
pode ser muito baixo astral.” Hoje em dia
eu não sei se eu teria tanta vontade de dizer
aquilo, mas se eu fosse reabordar o texto, eu
respeitaria o original e diria.
CULT Na canção “Língua”,
você diz, meio
citando a provocação de Nietzsche e a reação de
Proust: “A poesia está para a prosa/ assim como o
amor está para a amizade/ e quem há de negar que
esta lhe é superior.” Fale um pouco dessa composição.
CAETANO VELOSO Acabo de reto-
mar essa canção no meu novo show. Gosto
muito dela. Acho que é a primeira a falar em
rap no Brasil. É do início dos anos 80. Essa
idéia da superioridade da prosa sobre a poe-
sia está no Fernando Pessoa do Livro do de-
sassossego (onde também se lê “minha pátria é
a língua portuguesa”), mas aqui ela toma um
sentido mais irônico ainda do que o fato de lá
ela estar sendo defendida por um superpoeta:
comparada à superioridade da amizade sobre
o amor (uma opinião de Nietzsche que enoja
Proust), a superioridade da prosa sobre a
poesia se mostra inquietantemente duvidosa.
Proust não fala por si só quando comenta
Nietzsche nesse particular: ele fala por todos
nós e por como vivemos. “A poesía”, diz Pes-
soa, “tem algo de infantil e feminino”. Assim
também o amor, podemos dizer. Mas a
confiabilidade sóbria e viril da prosa e da
amizade sobre a intensificação de tudo gera-
da pelo amor e pela poesia não representa uma
superioridade real. No filme O cinema falado
escrevi para que um ator dissesse (eu mesmo
disse): “A superioridade da prosa sobre a
poesia é da mesma natureza da superioridade
que ostentam dois velhos inteligentes que
vêem uma grande bailarina dançar”, ou algo
assim.
“Língua” nasceu da vontade de usar os
procedimentos do rap como veículo. Eu
planejava então explorar um novo filão
de textos declamados sobre base rítmica
(mas uma base inventada por mim e meus
amigos músicos, não uma reprodução do
que faziam os americanos): seria um
modo de ter mais liberdade para a poesia
na música. E o tema de gostar de falar
apareceu logo, o que me levou a celebrar
a língua portuguesa, sugerindo reflexões
sobre ela. Gosto muito de que sejamos
América portuguesa e não espanhola,
holandesa, francesa ou inglesa. É uma
desvantagem que tomo como uma bên-
ção. Seja como for, eu não explorei o filão
(sempre penso em fazer algo assim e
nunca faço: termino apresentando uma
tentativa que serve de exemplo ou su-
gestão e abandono o assunto, voltando-
me para outro, ou voltando a outros já
visitados). Só vim retomar as formas do
rap
anos depois, em “Haiti”.
CULT E “Outras palabras”?
CAETANO VELOSO A canção? É
boa. Mas não é um texto bonito como
“Acrilírico”.
CULT “Cajuína” (“Existirmos - a que será que
se destina?”) é letra de complexa simplicidade filosófi-
ca. O cinema falado traz densas discussões. A leitura
de filosofia é algo que lhe interessa, não? Como ela se
integra ao seu trabalho? E a leitura da psicanálise?
CAETANO VELOSO Como leitura,
a filosofia me interessa mais do que a psica-
nálise. Leitura de psicanálise, eu acho que é
melhor ler Freud, porque escreve bem e cla-
ro. É um sujeito muito importante e inte-
ressante. Às vezes parece um reducio-
nismo... Mas os filósofos... Alguns dão
muito prazer literário, outros não tanto.
Sartre é uma experiência do fim da minha
adolescência, dos meus 18, 19 anos, e eu acha-
va aquilo uma coisa maravilhosa. Depois eu
li O ser e o nada, que é um livro
lindissimamente bem escrito, como prosa re-
flexiva, é de uma beleza estupenda. Dá pra-
zer de ler. Até mais do que seus livros de
ficção, onde ele possivelmente gostaria de
estar fazendo mais literatura. E que não é
má literatura, mas a literatura de O ser e o
nada é mais bonita.
CULT E o
Frederico?
CAETANO VELOSO Qual dos Frede-
ricos? Esse é maravilhoso, é espetacular. Eu
entrei na Faculdade de Filosofia por escolha
minha. Sem saber o que ia fazer depois... “Eu
estudo o que eu quero aprender, agora o que
eu vou trabalhar na vida eu não sei, eu pinto,
pode ser que eu escreva, pode ser que eu ve-
nha a ser professor de filosofía”...
CULT Assim como
você pensou em ser cineas-
ta ou pintor, antes de cogitar ser músico, em algum
momento pensou em ser escritor?
CAETANO VELOSO Um pouquinho,
mas eu pensava mais em ser cineasta. Eu que-
ria fazer cinema.
CULT Mas algo
ligado à ficção ou à reflexão,
um escritor-cineasta?
CAETANO VELOSO Ficção não.
Mesmo como cineasta, eu tinha preguiça de
escrever o aspecto ficção do roteiro. Eu ti-
nha vontade de anotar as imagens que eu
queria filmar. Eu estudei filosofia na facul-
dade. Mas tinha que estudar tomismo, um
padre era professor de filosofia geral e
metafísica e era diretor do departamento de
filosofia da Faculdade da Bahia. O curso não
era muito bom. Havia um professor de His-
tória da Filosofia que era engraçado, Auto
de Castro, eram umas aulas mais animadas.
Havia um professor de ética e estética, Rui
Simões, que era o que mais faltava à aula
[ri]. Eu não lia, não estudei direito, não me
animava. O que eles queriam que eu lesse,
eu não lia tanto. O que eu gostava de ler...
Eu lia Sartre, mas eles na Faculdade de Filo-
sofia ensinavam São Tomás de Aquino,
Aristóteles via São Tomás de Aquino. Eu
fiquei confuso, não sabia por onde come-
çar... E todo mundo era marxista, mas nin-
guém lia Marx. “Mas meu Deus, será que
eu devo mesmo começar estudando esse
negócio de São Tomás de Aquino?”
Em 1964, eu abandonei a faculdade. De-
pois, por causa do tropicalismo - sempre
gente de cinema me deu muitas coisas..., Ter-
ra em transe inspirou muita coisa no
tropicalismo..., o nome Tropicália foi dado
por Luiz Carlos Barreto... -, o Leon
Hirszman roubou na casa de alguém o livro
Tristes trópicos e me deu de presente. Eu
nun-
ca tinha lido e li e fiquei maravilhado. Li
Tristes trópicos em 1968. Não é engraçado
isso? Fiquei maravilhado e também intriga-
do, porque achei o livro de uma grande be-
leza e de uma grande clareza. Ao mesmo tem-
po, tinha uma visão pessimista da possibili-
dade da vida intelectual no Brasil. Ele abria
aquela esperança para as pessoas que estu-
davam com ele; ele era um pouco condes-
cendente, mas esperançoso. Ele tinha uma
visão muito pessimista do ambiente dos mo-
dernistas de São Paulo, embora respeitasse
e se desse bem com Mário de Andrade. Ele
não menciona Oswald, mas parece que é jus-
tamente Oswald o tipo de cara que ele não
entenderia, não entendeu. Parece que é dele
que está falando mal no livro. Mas tem muita
coisa linda no livro.
Depois da prisão, quando cheguei a Lon-
dres, na casa que nós alugamos, havia uma
biblioteca, onde tinham deixado alguns li-
vros. E havia, em inglês, O pensamento sel-
vagem. E eu li em inglês, achei muito inte-
ressante e inteligente. Mas nunca me ori-
entei muito para ler... Li o 18 de brumário,
porque me disseram: “Se você quer ler
Marx, começa com 18 de brumário, que é o
melhor.” Mas eu não gostei, eu achei um
livro chato. Descobri que, na verdade, até
O capital é muito mais animado que o 18 de
Brumário.
Em Londres, o Jorge Mautner veio com esse
negócio de Nietzsche. Eu conhecia o Mautner
só de nome, mas ficamos amigos, ele nos visi-
tava muito e mostrou aquelas músicas dele.
Eu fiquei maravilhado e as conversas eram
fantásticas...
CULT E mostrou
livros?
CAETANO VELOSO Os livros dele?
Não... Pô, mas o Jorge Mautner não tinha
nenhum exemplar de livro dele! [ri] Depois
achei, li Vigarista Jorge, Kaos, mas primeiro li
Deus da chuva e da morte, que é espetacular. E
ele falava muito em Nietzsche. Ele mesmo
arranjou um livro, chamado Vontade de poder,
que era uma tradução brasileira dos últimos
escritos de Nietzsche. É um livro de frag-
mentos de um livro que ele nunca veio a es-
crever ou de outros livros que ele não escre-
veu. Eu fiquei maravilhado com aqueles
aforismos e com aqueles fragmentos. Fiquei
impressionado com a reviravolta que aquilo
dava. E depois li O nascimento da tragédia e aí
me apaixonei, porque é um livro lindo, que
dá aquela idéia do dionisíaco e do apolíneo.
Ele põe como equilíbrio, mas o livro termina
tendo para nós aquela valorização do
dionisíaco, de uma certa forma. É uma virada
de muitas coisas, que, para mim, confirma-
vam coisas que eu já defendia no tropicalismo,
uma idéia da afirmação, um horror ao ressen-
timento.
CAETANO VELOSO Depois eu li Além
do bem e do mal, gosto muito, e Genealogia da
moral, que é um livro mais duro, às vezes é
insuportável, realmente tem muitas coisas
que são prefiguração do nazismo e a reação
mais profunda contra as idéias democráticas.
Aquilo entra em conflito com minha
natureza. Mas, ao mesmo tempo, o primeiro
movimento foi de grande entusiasmo com
aquele desmascaramento desses conteúdos
e aquela descoberta da doença por trás da
moral e da religião. Eu gosto muito dessa
temática de Nietzsche e do estilo, que é de
uma grande viveza. Daí eu fiquei vendo
filosofia como um diletante, eu nunca mais
deixei de ler filosofia. Conheci Antônio
Cícero, que é filósofo também, em Londres,
na mesma época em que conheci o Mautner.
Mas Cícero com interesses completamente
diferentes. Nessa época, ele era althusseriano,
marxista-althusseriano, mas já um pouco sa-
indo disso, estudando filosofia na Inglaterra
com aqueles lógicos. Eu gosto muito de con-
versar com Cícero, somos muito amigos até
hoje, e também gosto muito de conversar com
Mautner, somos muito amigos até hoje. E
são pessoas diferentes. E havia o Rogério
Duarte, a quem eu me refiro muito no livro, e
o José Agrippino de Paula, um escritor muito
interessante e radical.
CULT O que você
acha da filosofia de Deleuze
e dos escritos dele sobre cinema?
CAETANO VELOSO Deleuze é muito
simpático. Li, com muito interesse, o primei-
ro livro dele sobre cinema. Adoro logo aque-
las respostas a Bergson, em defesa do cine-
ma: é o momento mais filosófico do livro. Mas
me impressiona a vasta erudição cinemato-
gráfica que ele exibe. Adoro a observação so-
bre Sansão e
Dalila. A idéia de que o cinema
francês do passado era impressionista (com
os cinzas predominando no preto-e-branco)
assim como o alemão (de altos contrastes) era
expressionista traduz uma visão que a gente
já tinha vagamente e já considerava vagamen-
te simplista. Não sei o que seria “a filosofia de
Deleuze”. Li um livro de Roberto Machado
em que ele tenta sistematizar um pouco o
pensamento belo, generoso e escorregadio de
Deleuze. Li O
anti-Édipo com certa irritação.
O(s) livro(s) sobre Nietzsche é (são)
espetacular(es). Proust e Os signos também é
deslumbrantemente rico. O que é a filosofia
me excitou e me fez rir: tem muitas tiradas
fascinantes e a idéia do filósofo-surfista as-
senta muito bem nele. Ele não estabelece de
antemão que sentido os termos terão ao lon-
go do texto. Dizer que a filosofia é criação de
conceitos, dando à palavra “criação” a aura
que a cerca quando falamos de arte, é bonito,
mas é pouco mais do que isso. E as observa-
ções sobre a ciência soam um tanto absurdas.
CULT E você deve gostar de Cioran e
Wittgenstein, pelo estilo aforismático e digressivo,
não?
CAETANO VELOSO Eu gosto, acho
muito bonito. Mas eu li um livro de Cioran.
Uma vez, em sua casa, o Tenório me mostrou
e eu li uns aforismos maravilhosos. Eu li mais
tarde aqueles Exercícios de admiração e achei
lindo aquele livro. Achei espetacular o artigo
sobre Joseph de Maistre, o pensamento
reacionário. Há um texto sobre Borges, muito
curto, mas muito bom, muito engraçado. É
muito bom aquele tom do Cioran, ele encon-
trou um tom que o resolve, que resolve a vida
dele.
CULT E a nossa...
CAETANO VELOSO É, e para gente
aquilo é bom. Ele mesmo diz algo assim:
“Pode se aproximar dele”, de um fulano, “ele
é um misantropo, é sempre boa a companhia
dos misantropos, não é perigosa para
ninguém”. Há um certo bom humor
naquele pessimismo, que é muito bom.
Aquele desencanto com a humanidade,
aquele desprezo do humanismo tal como o
conhecemos. E muito bem escrito. Às vezes
leio Hegel, mas são complicadíssimos esses
filósofos alemães...
CULT “Está provado
que só é possível filoso-
far em alemão”?
CAETANO VELOSO Isso é Hei-
degger, que eu li também. É Heidegger
quem diz isso; eu citei esta frase na can-
ção “Língua” para ironizar o Heidegger.
Aliás, eu acho que a Adélia Prado pensou
que era eu mesmo quem dizia isso. Ela
ainda me respondeu, reclamando num li-
vro que eu li, outro dia, me chamando de
pedante, não sei quê... Mas não sou, eu
coloquei a citação naquela música para ti-
rar um sarro com a cara de Heidegger,
que eu acho uma coisa hilária. Heidegger
é um sujeito ao mesmo tempo genial e ri-
dículo. Combina muito bem com ele quan-
do a gente ouve contar que, não tendo
gostado de O ser e o nada, o livro francês
que mais encantou Heidegger naquela
época foi O pequeno príncipe [ri].
Heidegger é um personagem
engraçado.
Eu imagino-o dizendo “Heil Hitler” e
entrando na Universidade, levantando o
braço, aquela braçadeira com uma suástica
e escrevendo aquelas coisas incríveis, mui-
to densas e desnorteantes, com gosto filo-
sófico de uma pessoa que realmente leu
muito e profundamente filosofia.
CAETANO VELOSO Aquele livro
Tractatus logico-philosophicus é muito bo-
nito, parece um poema. E às vezes a gen-
te não entende, e fica bonito porque a
gente não entende. E ele de uma certa
forma deixa assim. São as duas grandes
estrelas da filosofia do século 20,
Heidegger e Wittgenstein. Quer
dizer,
Sartre é pop.
CULT Mas
Nietzsche tornou-se um cult...
CAETANO VELOSO Nietzsche é o
autor filosófico que mais vendeu livros. Logo
no início não, foi um desastre, um fracasso.
Mas depois, só bate com ele Platão. Eu gosto
daquela biografia de Nietzsche, escrita por
Daniel Alévy, seu primeiro biógrafo na
França. Ele diz: “Nietzsche veio a ser o
filósofo cuja obra mais se vende. Só Platão
também vende assim. Porque filosofia não
vende muito.” É um tipo de livro que não se
compra, só especialistas em filosofia,
filósofos, estudiosos, pessoas da faculdade de
filosofia compram o livro de filosofia, e
acabou. Mas Nietzsche vende, as outras
pessoas em geral compram seus
livros. Po-
rém, é engraçado, ele pergunta: “Mas será
que Nietzsche é mesmo um filósofo?”
Eu, que tinha ficado apaixonado por
Nietzsche com A origem da tragédia e Von-
tade de poder, quando li o Zaratustra, ain-
da em Londres, não gostei. Hoje já estou
achando uma coisa espetacular, mas eu não
achava. Achava aquilo chato, subliterário,
porque parece um longo poema profun-
do, de conteúdo. Mas era o livro dele que
ele mais adorava, dizia que era o maior
livro da humanidade. Outro dia, fui ler
um trecho traduzido em inglês, achei mais
bonito, acho que em português não fica
muito bem. Mas só o Zaratustra, pois as
outras coisas ficam muito bem.
As tradu-
ções do Paulo César de Souza são lindas
Além do bem e do mal, Genealogia da moral,
ficam lindos em português. O que eu li
depois, de tanto ouvir Nietzsche falar pri-
meiro e depois brigar com, foi o Scho-
penhauer. E achei muito interessante e
agradável, porque são filósofos alemães
que dá para ler.
Não são assim como Hegel, Heidegger e
muito menos como Kant. Kant praticamen-
te não dá para ler, é muito complicada a
linguagem, Hegel também é assim
complicado. Mas dá, eu leio, acho bonito,
tem coisas que me agradam muito. Mas tem
hora que fica um pouco duro e muito
embolado, empolado. Eu li alguma coisa de
Platão e achei os Diálogos muito bonitos.
Mas, de Aristóteles, estou terminado de ler
A política. Eu estava lendo e parei, porque
fui ler umas coisas que não têm nada a ver
com isso. Eu ganhei uns livros
do Boris
Schnaiderman: um livro dele sobre a
situação da Rússia e dois livros de
Dostoiévski, traduzidos por ele. Eu leio
muita coisa variada...
CULT Ao mesmo tempo?
CAETANO VELOSO Ao mesmo tem-
po. Eu fui ler A política de Aristóteles por
causa de Hannah Arendt. Eu li A condição
humana e A origem do totalitarismo faz tempo.
Mas voltei para dar uma sacada porque saiu
um livrinho, O que é a política, que são
fragmentos de um livro sobre política que ela
ia escrever e terminou não escrevendo por-
que foi escrever sobre Eichmann. Ela cita
muito o livro de Aristóteles, então eu com-
prei A política para ler diretamente. Li os li-
vros de Hannah Arendt e de Aristóteles e
achei maravilhosos. A tradução em portugu-
ês de A política não está muito boa, tem algu-
mas coisas que a gente fica desconfiado. Mas
a tradução não é deselegante. Mesmo assim,
você vê a clareza e a beleza do texto. Eu tinha
lido, em francês, aquele texto de Aristóteles,
da metafísica, sobre o tempo. E fiquei muito
impressionado, porque é um texto muito
denso e muito complexo, mas de muita clare-
za. É um pensamento mesmo, é filósofo
mesmo. Ele esgota o pensamento sobre o
assunto.
Mesmo Heidegger, já no Ser e tempo, e
durante a vida toda, considera aquele tex-
to sobre tempo de Aristóteles como difícil
de ultrapassar; mas ele tenta ultrapassar.
É um texto muito difícil, mas é de uma
clareza científica. Platão é diferente, são
diálogos, tem mais imagens. O Aristóteles
é o filósofo dos filósofos. Estou terminan-
do de ler A política e reencontro essa clare-
za e uma coisa muito minuciosa nas des-
crições e nas observações, não deixa de
ver todos os ângulos... Mas dá uma sen-
sação de claridade... grega, parece que
aquele cara que escreveu e pensou aquilo
estava num lugar claro! Sob todos os pon-
tos de vista, parece que bate o sol, que o
lugar é bonito e que ao mesmo tempo ele
está pensando mesmo aquilo tudo.
Em suma, minhas leituras são muito
desorganizadas. Eu interrompi também
essa leitura que começou com Hannah
Arendt e terminou com Aristóteles por-
que ganhei um livro chamado Meu casaco
de general (por causa da canção de Macalé
e Waly), do Luiz Eduardo Soares, sobre a
questão de segurança do Rio de Janeiro, o
problema do poder, da polícia, dos mor-
ros e do tráfico. Eu interrompi para ler
isso e agora voltei à Política. Termina fa-
zendo algum sentido, teve o Dostoiévski
no meio... Memórias do subsolo faz senti-
do; mas é fogo, porque são os argumen-
tos antiiluministas mais fortes que há -
são os argumentos de Dostoiévski. E que
figura espetacular! E que textos, que lou-
cura, não tem uma letra morta ali.
você diz que o pretexto e o propósito de aten-
der o editor americano e escrever o livro
“era um convite para eu realizar o sonho
de me aproximar dos livros, diante dos
quais sempre me senti intimidado”. Que
prazeres e conhecimentos o exercício da lei-
tura lhe dá?
CAETANO VELOSO Sobre estar in-
timidado diante dos livros, acho que já falei
na nossa conversa de outro dia, por causa
de não ter dentro de casa o hábito da bibli-
oteca etc. Mas a leitura propriamente pode
me dar muito prazer, muito interesse, muito
excitação, às vezes medo também, depende
do que está sendo dito, do que aparece.
Daquele dia para cá, por exemplo, eu li um
livro... Quer dizer, estou lendo outras coi-
sas, continuei lendo A política de Aristóteles,
que tem de ser lida devagarinho, porque
tem muita coisa precisa, você tem que pen-
sar, também parece que são anotações de
aula, ao mesmo tempo os detalhes são pre-
cisos demais e às vezes o plano geral parece
contraditório e não deve ser; então você tem
que pensar e voltar atrás e reler uma mes-
ma frase várias vezes, embora seja muito
simples, muito calmo, muito claro, como
descrevi no outro dia. Eu continuo lendo
esse livro, mas interrompi de novo para ler
O futuro de uma ilusão, de Freud. E
outra
vez me deparei com uma coisa que em
Freud eu acho chatíssima, que é aquela
mania dele imaginar um opositor, a quem
ele dá voz. Aquilo é chato. Há também nos
outros livros dele, no Mal-estar na civili-
zação e em outros ensaios. Mas como esse
eu li anteontem, está bem na minha mente
que tal aspecto me desagrada muito. Mas
há muita clareza, ele escreve muito bem, é
muito bonito, diferentemente de Jung, que
é uma confusão danada, a gente não enten-
de direito.
E é um belo livro sobre o ateísmo. Na ver-
dade, é um belo livro sobre a decisão anti-
religiosa. E, quanto a isso, na verdade, não
superado propriamente, embora queira se
dizer que sim, eu acho que não. Essa pala-
vra “ateísmo” aparece no final de meu li-
vro Verdade
tropical de uma maneira que
parece absurda, é provocativa, provocado-
ra, ou pretende ser uma provocação tam-
bém. Mas é também um modo de eu me
sentir livre para usar a palavra assim por-
que parece que as pessoas têm vergonha
de dizer uma palavra como essa. Mas no
contexto, achei que ela pode ser de uma
maneira muito engraçada, assim como se
fosse uma obstinação, e uma não-aceitação
da confusão que se faz hoje em dia a res-
peito dessas coisas. Mas sobretudo por-
que eu próprio não posso dizer de mim
que sou ateu, porque a questão religiosa é
uma questão muito difícil mesmo. Mas os
argumentos anti-religiosos são muito po-
tentes - e que continuam não transpostos,
continuam. Você vê todo o charme de
Heidegger e o drible dado por Witt-
genstein, e depois as conversas confusas
dos que seguiram ou tentaram segui-los,
mas o fato é que aqueles argumentos anti-
religiosos como você vê no Freud de O fu-
turo de uma ilusão não estão facilmente su-
perados, são interessantes, não estão nada
superados. Mas o que repercutiu muito
bem dentro de mim foi um momento em
que ele quase parece dizer - para lhes res-
ponder o que a leitura pode provocar em
mim, estou lhes dando um exemplo de an-
teontem - que muitos autores conserva-
dores dizem que a superstição é como se
fosse uma forma degradada da religiosida-
de e que ela aparece quando a pessoa não se
liga a uma religião. A pessoa não quer ter
religião e termina ficando supersticiosa. A
necessidade religiosa é inerente ao homem.
Aliás, parece um esquema freudiano, dito
por não freudianos, parece que é o retorno
do reprimido, o retorno do recalcado, o eter-
no retorno do recalcado, ou o retorno do
eterno recalcado, ou o retorno do eterno
que tinha sido recalcado.
Mas o Freud tem um momento em que só
falta dizer o seguinte: numa certa forma,
como a religião aparece para ele como uma
neurose compartilhada e organizada em
termos civilizacionais e culturais e coletivos,
muitas pessoas por vezes não apresentam
neuroses individuais porque partilham
dessa neurose coletivamente organizada.
Então isso quer dizer, no fim das contas,
que a superstição era melhor... Superstição
é ruim, mas é melhor do que a religião.
Mas eu gostei de ler isso. Naturalmente,
eu não sou ligado de maneira orgânica a
nenhuma religião, tive educação religiosa e
depois me liguei ao candomblé, porque me
interessa e o acaso também me pôs perto.
Interessa-me por vários aspectos; primei-
ro, por ser a expressão cultural do ambien-
te onde eu nasci e cresci; e depois, porque
eu estava interessado - por causa de
Nietzsche - na idéia do politeísmo. Acom-
panhar a vivência de uma comunidade
politeísta... Hoje em dia em Salvador, há
no Dique do Tororó, aquelas estátuas imen-
sas dos Orixás, que ficam iluminadas du-
rante a noite com jato de água. Eu adoro
aquilo, porque você sente que o negócio da
Bahia, do Brasil, está ali de uma certa for-
ma já estabelecido socialmente...
O FUTURO DE UMA ILUSÃO
É UM BELO LIVRO SOBRE O ATEÍSMO, SOBRE A DECISÃO
ANTIRELIGIOSA. EU
PRÓPRIO NÃO POSSO DIZER QUE SOU ATEU. MAS OS ARGUMENTOS
ANTI-RELIGIOSOS SÃO
MUITO POTENTES. O QUE REPERCUTIU MUITO DENTRO DE MIM FOI UM MOMENTO EM QUE
FREUD PARECE DIZER QUE A SUPERSTIÇÃO É UMA FORMA DEGRADADA DA RELIGIOSIDADE E
QUE ELA APARECE QUANDO A PESSOA NÃO SE LIGA A UMA RELIGIÃO.
A NECESSIDADE
RELIGIOSA É INERENTE AO HOMEM. PARECE QUE É O RETORNO DO REPRIMIDO, O RETORNO
DO RECALCADO, O ETERNO RETORNO DO RECALCADO, OU O RETORNO DO ETERNO RECALCADO,
OU O RETORNO DO ETERNO QUE TINHA SIDO RECALCADO
CULT Entronizado no cotidiano...
CAETANO VELOSO Entronizado no
cotidiano e reconhecido coletivamente. Você
sente que há uma certa vivência politeísta. É
engraçado, eu me lembro de Deleuze falando
sobre Nietzsche: “O politeísmo, que é o úni-
co ateísmo real, o ateísmo verdadeiro, que é o
verdadeiro ateísmo”, uma coisa assim. Eu
estava interessado no candomblé por causa
dessas coisas todas, então me aproximei. Mas
eu sinceramente não tenho vínculo pessoal
com nenhum religião organizada. Eu não
deixei de ter vínculos com a religião católica
por causa da minha família, as festas da mi-
nha mãe e das pessoas da minha família são
todas ligadas aos rituais católicos e eu partici-
po como membro daquela sociedade, mas não
quer dizer que eu pessoalmente me sinta ca-
tólico, ligado à igreja católica, achando que
devo obedecer ao papa ou aos princípios, aos
dogmas. Então, não posso dizer que sou
católico nem que sou ligado a alguma reli-
gião, mas tenho muitas superstições que não
são organizadas. Eu tendo a ser místico, um
pouco.
CULT Você costuma
escrever os releases de
seus próprios discos. Por quê?
CAETANO VELOSO Não todos, mas
escrevi muitos. Porque eu gosto de escrever;
era um pretexto. Eu dava umas explicações
interessantes, mas nunca foram muito
utilizadas. Quando eu mais escrevia, era o
período da Outra
Banda da Terra. Eu
produzia meus discos, ou seja, ninguém
produzia os meus discos; a gente ia para o
estúdio, tocava, gravava e ficava pronto. Era
tudo “malfeito”, mas era uma delícia. Mas
nessa época, a imprensa, com relação aos
meus discos, era muito pouco receptiva -
para dizer o mínimo. Então os releases não
adiantavam nada. Para os críticos, aqueles
releases pareciam uma coisa pretensiosa e os
discos pareciam “uma coisa do fundo do
quintal da casa dele”.
CULT O cinema falado é fortemente im-
pregnado de literatura(s), por meio de leitu-
ras, citações etc. Como foi o processo da escritu-
ra do roteiro do filme? A estruturação das
seqüências, dos blocos, você decidiu na monta-
gem ou no roteiro?
CAETANO VELOSO No roteiro. Eu
escrevi o roteiro, filmei o roteiro e montei o
roteiro ipsis
litteris. Inclusive o que eu achei
que não ficou bem, eu deixei no filme do
jeito que estava no roteiro. A ordem tam-
bém. Eu até às vezes, quando vejo hoje e
que gosto, fico com pena dos espectadores
que não são eu e que não têm que suportar
isso. Fico com pena de - para facilitar a
fruição do filme para eles - eu não ter tido a
vontade, quando fiz, de - na montagem -
mudar e fazer do filme algo mais atraente
desde o início. Digo, “mais facilmente atra-
ente”. Mas sabe que eu não me arrependo
disso, eu sinto na hora um pouco de pena de
não ter feito, mas de fato não me arrependo.
Porque fazer isso seria aproximar um
pouquinho do godardianismo que eu pro-
curei evitar e que está radicalmente evitado
no filme. Nesse sentido, o filme é muito ri-
goroso e exigente contra concessão de qual-
quer natureza. E eu mantive assim.
CULT Em muitos
filmes do chamado cinema
de autor, o personagem do escritor é fundamental
para o cineasta colocar suas questões (Antonioni,
Godard, Resnais, Glauber). Como você vê essa
apropriação da figura do escritor pelo cinema
moderno?
CAETANO VELOSO Eu acho sim-
plesmente natural, num momento em que
tentaram enfatizar o papel do diretor do fil-
me como um autor, que o escritor apareces-
se com freqüência como protagonista dos
filmes. Eu acho que é bem coerente com o
espírito daquela época e o que se queria fa-
zer com o cinema daquele período. Hoje a
gente vê uma batalha dos roteiristas norte-
americanos, já chegando mesmo ao nível da
greve, para que eles venham a ser reconhe-
cidos mais como autores do que eram até
então e para que se relativize mais o papel
autoral do diretor. Isso é uma coisa bem de
Hollywood, é um problema de Hollywood.
Mas o fato de ter chegado a esse extremo em
Hollywood é curioso. Eu acho que eles têm
razão de pleitear o que pleiteiam porque so-
bretudo o cinema de Hollywood, tradicio-
nalmente, via o diretor como um contratado
de posição privilegiada dentro de uma pro-
dução. Há uma produção de um filme e a
posição do diretor é a do sujeito que vai diri-
gir os trabalhos de feitura daquele filme.
Dirigir os trabalhos, o que não quer dizer
que aquele filme seja uma obra dele. Mas
com a influência da nouvelle vague francesa
até os americanos passaram a adotar... “a
Steven Spielberg film”... Os roteiristas de
Hollywood
estão pleitando proibir esse um
filme de” e o nome do diretor. Mas já houve
muitos escritores, em geral americanos, en-
tre eles Gore Vidal, que levantaram a voz
para dizer isso. Eu tenho a impressão de
que Gore Vidal é um dos mais notáveis a tê-
lo feito. Os escritores americanos denunci-
am essa falácia de que o diretor é o autor do
filme; mas justamente por serem america-
nos, onde em Hollywood a freqüência mai-
or é a de que o diretor seja um contratado e
que poderia ser qualquer outro.
CULT A Europa tem
forte tradição da idéia
de autor-artista, desde a vanguarda dos anos 20.
Mas não podemos esquecer de que no início dos
anos 40, antes do neo-realismo (que pode ser visto
como um avanço autoral em relação ao estilo
hollywoodiano), quem retomou a noção de cinema
pessoal (num âmbito poético e experimental) foi a
Maya Deren, nos Estados Unidos...
CAETANO VELOSO Eu ia dar o
exemplo da Maya Deren como sendo uma
espécie de contra-exemplo, porque ela é ame-
ricana e é uma das mais radicais
experimentalistas do cinema. Eu fiquei mui-
to impressionado com os filmes dela. Mas o
neo-realismo não tem muitas dessas caracte-
rísticas dos filmes de vanguarda. O neo-rea-
lismo terminou sendo uma vanguarda de uma
outra natureza...
CULT Mais em relação aos termos da in-
dústria (modos de produção, sair dos estúdi-
os)...
CAETANO VELOSO Em relação à
indústria, uma coisa mais despojada, pro-
dução pobre, atores não profissionais, a lo-
cação nas ruas. Mas o esquema narrativo,
o sentimentalismo, uma série de coisas do
cinema de Hollywood... Vi os filmes da
Maya Deren por acaso, num canal de tele-
visão a cabo nos Estados Unidos, fiquei
impressionado e fui comprar numa loja de
Nova York uma série de filmes dela. É cu-
rioso, muita coisa me lembrou o cinema de
Julinho Bressane: a coisa de filmar o chão,
as escadas, os espelhos, sobretudo o negó-
cio da câmera subir escadas. Aquilo me lem-
brou o Julinho e quando você falou agora
do neo-realismo como um fato importante
na modernização do cinema (o que sem
dúvida é) e você frisou o fato de a Maya
Deren ser anterior ao neo-realismo, eu me
lembrei do Julinho Bressane
dizendo as-
sim: “O neo-realismo italiano é a mesma
coisa que essa poesia de mimeógrafo que se
faz no Brasil (isso nos anos 80, 70). É a
poesia que nem as outras poesias... não inova
na linguagem. Mas é feita num papel po-
bre, o cara distribui no Baixo Leblon, nos
bares da Gávea, mas não muda a lingua-
gem da poesia, ninguém mexe nas estru-
turas formais.” E eu achei curioso porque
a Maya Deren mexia nisso e o neo-realis-
mo não. Embora eu seja um fã confesso do
neo-realismo.
CULT Maya Deren (que nasceu na Ucrânia,
como Clarice Lispector, e se fixou na América
em 1922) detonou a vanguarda que surgiu nos
Estados Unidos, entre os anos 50 e 70, numa
ampla gama que vai do trance film ao structural
film...
CAETANO VELOSO Mas o cinema
underground dos anos 60, da turma de Andy
Warhol, não tem esse caráter
formalista, é um
caráter mais beat. Embora haja coisas muito
radicais, feitas pelo próprio Warhol, como
Sleep, oito horas só o cara dormindo, eu nun-
ca vi, mas só de ouvir falar você já sabe que...
Chelsea girls tem três telas, passando três coi-
sas diferentes.
CULT No gênero
estrutural, há Michael
Snow e Hollis Frampton, que trabalharam de
modo radical a escritura do cinema (inclusive
filmando palavras), e num outro pólo há o Stan
Brakhage, também de radical escritura, que fez
poesia visual no cinema, pintando na película e
inspirado em escritores americanos, como
Gertrude Stein e James Joyce...
CAETANO VELOSO Essas coisas a
gente não conhece. Eu não conheço esses
filmes que você está falando, isso é uma coi-
sa para especialista, para pesquisador. Em
geral, são mais ligados a Nova York do que
à Califórnia, não é? Todo o cinema indepen-
dente americano, como Shadows, de John
Cassavetes, e O
homem tem três metros de altu-
ra, de Martin Ritt, são filmes de Nova York.
É de onde vem o Woody Allen, o negócio de
ele ser anti-Hollywood e ser Nova York. Ele
fez um filme chamado Interiores, que era
como se fosse um seguimento daquela onda
de Shadows.
Eu não gosto do filme, mas ele
conquistou uma liberdade enorme.
CULT Já falaram
que Godard faz um ci-
nema filosófico e literário. O cinema falado é
“um filme de ensaios de ensaios”. Você queria
ser cineasta, mas disse que este seu primeiro
filme seria mais um “experimento” que servi-
ria para outros filmes, mais narrativos que
este, mas talvez não tão convencionais como a
norma. Você acha que o cinema é um bom veí-
culo para a digressão de idéias? O cinema pode
ser poesia?
CAETANO VELOSO Os filmes de
Godard são em geral mais narrativos do que
O cinema falado. Lembro do Paulo Francis
sempre repetindo que não sei que escritora
americana (acho que foi Mary McCarthy)
tinha dito ser o cinema incapaz de pensamento
(Deleuze acha exatamente o contrário). O
cinema pode estimular, inibir, expressar, em-
botar, criar pensamentos. A música e a pin-
tura também podem tudo isso. O cinema é
muito capaz de poesia. Pasolini vivia falando
num cinema de poesia, mas Godard é um
cineasta mais poeta do que Pasolini. Eu pró-
prio, que tenho um desgosto dos enredos,
tenderia a fazer um cinema mais próximo da
poesia. Os “clips” de poemas no meu filme
são um namoro do cinema com a poesia dos
poetas. Mas há seqüências de Godard, cor-
tes de Eisenstein, cenas de Chaplin, planos
de Antonioni, ritmos de Bergman que são
densa poesia produzida pela imagem em
movimento.
CULT Quando
Antonioni coloca o escritor no
filme, como em A noite, você pensa que isso seria
uma tentativa de legitimar o cinema num plano
intelectual e artístico mais ambicioso? Pois, como
você falou, o cinema teve um certo começo vincu-
lado à diversão...
CAETANO VELOSO Muitas vezes
penso. Mas Hollywood também fez filmes
sobre escritores, com personagens escrito-
res. Mas não é o aspecto mais estimulante
desses filmes para mim. Eu acho mais agra-
dável pensar que seja natural que a figura
do escritor apareça no momento em que o
diretor de cinema estava sendo posto no
lugar do autor do filme. Eu acho natural,
mas tem um lado um pouco kitsch, de
legitimação, por meio do uso do persona-
CAETANO FOTOGRAFADO POR BERNARDO VOROBOW
DURANTE ENTREVISTA À CULT
|
gem escritor como protagonista, que sem-
pre me parece evidente. Há algo como se
fosse uma tentativa de fazer um cinema
mais sério, e no fim das contas não fica tão
sério assim, não o suficiente para subver-
ter esse modo de expressão da essência do
cinema que tem sido predominante. Mui-
tas coisas sempre me pareceram assim bas-
tante confusas nesse sentido, porque às
vezes o diretor põe o personagem como um
escritor, ou como alguém que está tentan-
do ser escritor... La notte ou mesmo I
vitteloni, onde o garoto quer deixar a cida-
de do interior e pensa em escrever, e aí vai
para Roma sozinho... Mas a própria esco-
lha dos atores para esses papéis... Como
em Terra em transe... A cara de galã de todos
os atores de todos esses filmes era um des-
mentido gritante dessa ambição. Mas ao
mesmo tempo, dá uma certa aura de inge-
nuidade, que dá um encanto... A gente fica
enternecido pelo cineasta, de ver que o su-
jeito é cineasta, porque ele está ali queren-
do ser totalmente diferente de Hollywood,
mas ele pega e bota um cara bonito e idea-
lizado, como Jardel Filho, Mastroianni,
Delon. De certa forma, eu sempre senti
uma espécie de contradição. Quando eu vi
Deus e o diabo na terra do sol, a primeira vez,
em Salvador, eu pensei: “Pô, é impressio-
nante, mas ao mesmo tempo o Geraldo del
Rey é tão bonito, tem tanta cara de galã de
cinema.” Ele não é um pau-de-arara, não é
um camponês nordestino, anônimo, opri-
mido, ele é antes de tudo um galã de cine-
ma, e a gente fica encantado com ele como
galã de cinema. Eu acho saudável, acho que
é bonito, que é certo, porque aquilo é uma
intuição afirmativa da criação de uma mi-
tologia nacional na área do audiovisual.
Aquilo já é uma premonição de toda a car-
reira da TV Globo, todos os estrelatos e os
galãs da TV Globo se esgotam logo na cara
do Geraldo Del Rey, na primeira imagem
de Deus e o diabo na terra do sol. Isso é mar-
ca do gênio do Glauber. Mas não posso
deixar de dizer que, na época que eu vi, eu
senti que havia uma espécie de contradição
nisso. E no caso dos protagonistas escrito-
res, isso se repete em quase todos os filmes
que a gente conhece, que apelaram para essa
estratégia de colocar o escritor como per-
sonagem central do filme.
Tem uma coisa que, para mim, de repente,
resolve tudo e trata isso no tom que me
pareceu perfeitamente condizente com a re-
alidade disso e afirmou a poesia do cinema:
é o tom assumido por Godard, que é um
cineasta que eu idolatro, como estilo e ta-
lento. E sem jogar fora esse problema da
ansiedade de legitimação, mas tratando de
uma maneira boa. Combinando coisas que
ele faz no cinema com coisas que ele dizia
em entrevistas, ele termina trazendo uma
idéia sobre isso que me deixava bem, e ao
mesmo tempo deixa a gente vivo diante da
produção de imagens cinematográficas
como uma coisa viva.
CULT Godard
sempre disse que não via
diferença entre filmar e escrever, que ao fazer
crítica de cinema já era uma forma de fazer
filme, e que um filme era a melhor crítica de um
outro filme...
CAETANO VELOSO Por exemplo,
em Pierrot le fou, ele põe o Belmondo escre-
vendo, e aparece em super close a caneta no
papel, como um diário daquela fuga para o
sul da França, que lembra um pouco o fil-
me de Bergman, Mônica e o desejo. Só os
dois, naquele lugar paradisíaco, aquele cara
desgarrado, à margem da sociedade, ele está
fora da lei e está ali com ela, aquele lance
entre eles e o papagaio e umas ondas do
mar e ele escrevendo, escrevendo. Isso dá
uma idéia mais forte da presença e da sen-
sação do autor.
CULT E a letra é
a letra em ação do Godard,
que instaurou um método digressivo, a voice-over
em primeira pessoa...
CAETANO VELOSO É. Eu acho es-
sas soluções mais interessantes do que a mera
escolha do personagem do escritor como pro-
tagonista. Mas acho que há grandes filmes
que têm justamente o escritor como protago-
nista. Esses a que nós nos referimos são gran-
des filmes. E como vocês sabem, Terra em tran-
se foi para mim um filme de formação, um
filme importante para a minha vida,
diretamente, com conseqüências palpáveis.
Quando começa Pierrot le fou com duas mo-
ças jogando tênis e uma luz interessante,
entra uma voz que fala sobre Velázquez.
Mais ou menos na mesma altura, Godard
deu uma entrevista dizendo: "Eu quero
entrar no mundo das letras com a luz de
Velázquez". "Eu quero entrar no mundo
das letras com a luz de Velázquez!" Para
mim, a combinação daquelas imagens com
essa declaração é algo que está além dessas
tentativas de legitimação e dessas coisas de
que nós acabamos de falar. Você vê real-
mente que ele sentiu a onda e soube dar
uma resposta à altura. O movimento que
ele fez dentro dele termina dando uma res-
posta poética que de fato resolve, ainda que
provisoriamente, mas satisfatoriamente, o
assunto. [pausa] "Eu quero entrar
no
mundo das letras com a luz de Velázquez!"
O cineasta que fala assim e faz algo que
tem a ver com isso em seus filmes e você
sente que isso está acontecendo de uma cer-
ta forma - é uma beleza.
CARLOS ADRIANO E
BERNARDO VOROBOW
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