“…
Minha primeira apresentação pública, aos oito anos, deu-se num programa de
calouros da rádio de Santo Amaro em que eu, ao ouvir a introdução feita pela
orquestra da marchinha Toureiro de Madri, por mim mesmo escolhida, entrei cantando
em outro tom, o que me desclassificou imediatamente …”
“… Mi primera presentación pública, a los ocho años, se dió en un programa de nuevos talentos de la Radio de Santo Amaro; al oír la introducción por parte de la orquesta de la ‘marchinha’ Toureiro de Madri, elegida por mi, entré cantando en otro tono, lo cual me descalificó inmediatamente…” (Capítulo INTERMEZZO BAIANO, Página 92)
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 524 pág. 1ª reimpresión.
Ciertamente, Caetano ese día no pudo cantar a la valentía del torero y su amor por la bonita Manolita.
Pero tampoco eligió un clásico, como podía ser Touradas em Madrid: Pa ra ra ti bum bum bum / Pa ra ra ti bum bum / Eu fui as touradas em Madri, / Pa ra ra ti bum bum bum / pa ra ra ti bum bum de João de Barro [Braguinha] y Alberto Ribeiro, sino la menos conocida marcha Toureiro, de Haroldo Lobo y Milton de Oliveira, grabada en 1950 por Nelson Gonçalves, para ser suceso en el Carnaval de 1951:
A. TOUREIRO – Marcha (Haroldo Lobo/Milton de Oliveira)
NELSON GONÇALVES E TRIO DE OURO con Orquesta
B. DAMA, VALETE E REI – Samba (Bide/Sebastião Gomes) NELSON GONÇALVES con Regional
RCA Victor (78 rpm) nº 80-0727
Grabado: 9-10-1959
TOUREIRO
(Haroldo Lobo/Milton de Oliveira)
(Haroldo Lobo/Milton de Oliveira)
Toureiro
Sou toureiro de Madrid
Sou toureiro, sou valente
E nunca na arena
Pra um touro eu perdi
Mas, se eu sou um bom toureador
É porque Manolita bonita
Me deu o seu amor!
Sou toureiro de Madrid
Sou toureiro, sou valente
E nunca na arena
Pra um touro eu perdi
Mas, se eu sou um bom toureador
É porque Manolita bonita
Me deu o seu amor!
Toureiro
Sou toureiro de Madrid
Sou toureiro, sou valente
E nunca na arena
Pra um touro eu perdi
Mas, se eu sou um bom toureador
É porque Manolita bonita
Me deu o seu amor!
Se eu vou a qualquer
Parte da Espanha
Manolita me acompanha
Pra ela eu sou o maior toureador
E ela é o meu grande amor
Se eu vou a qualquer
Parte da Espanha
Manolita me acompanha
Pra ela eu sou o maior toureador
E ela é o meu grande amor
Toureiro
Sou toureiro de Madrid
Sou toureiro, sou valente
E nunca na arena
Pra um touro eu perdi
Mas, se eu sou um bom toureador
É porque Manolita bonita
Me deu o seu amor!
FOLHA DE S.PAULO
São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
Na
Santo Amaro de Caetano
LUIZ
ANTÔNIO RYFF
ENVIADO
ESPECIAL A SANTO AMARO
"Ave
Maria, nessa casa não se pode ter personalidade?", reclamou Caetano,
interrompendo os desenhos que fazia na sala, irritado com o irmão Roberto, que
ridicularizava seus rabiscos. Tinha quatro anos.
Para
reconstituir, com parentes e amigos personagens de "Verdade
Tropical", passos da infância e adolescência formadoras dessa
personalidade, a Folha foi a Santo Amaro da Purificação, cidade natal de
Caetano, a Salvador e ao Rio.
Caetano
cresceu em uma família que funcionava como um harém -descontado o caráter
sexual do termo. Seu Zeca, o pai, era a única figura masculina.
Além
da mãe, d. Canô, sobrinhas de seu Zeca, avós e tias ajudavam a criar a
filharada. Apesar disso, lembra Rodrigo, 61, um dos irmãos, a última palavra
era sempre do pai, um admirador fervoroso de Luiz Carlos Prestes que morreu há
15 anos, aos 82.
Uma
dessas mulheres de Caetano é Edith do Prato, 72, que aparece em "Araçá
Azul". Ela amamentou Caetano quando d. Canô caiu acamada. Outra dessas
mulheres é Lindaura, 86, uma das sobrinhas -chamada pela meninada de Minha
Daia. Era Lindaura quem levava Caetano para a escola. "Foi ela quem
primeiro falou sobre o existencialismo com a gente", diz Rodrigo.
Para
caber tanta gente, a casa tinha que ser grande. Ainda é. Tem dez quartos e
cinco banheiros. Mesmo assim, Caetano dividia o quarto com os irmãos Roberto e
Rodrigo. Era este que comprava os livros de Clarice Lispector que Caetano
aprendeu a gostar. Ele sempre viveu cercado pela família.
Caetano
nasceu em casa, às 22h50, em 7 de agosto de 1942. Na época, a família morava
nos Correios. Seu Zeca trabalhava de telegrafista e era praxe o agente de
Correios morar no trabalho.
Ajudada
por sua mãe, Júlia, d. Canô deu à luz a uma criança mirrada, com menos de 3 kg.
Caetano seria o sexto de oito irmãos (a mais velha, Nicinha, e a mais nova,
Irene, foram adotadas). Em família, ganhou apelidos carinhosos, como Catito e
Cae. Rodrigo conta que Caetano odiava quando, mais tarde, algumas pessoas
começaram a chamá-lo de Caê.
"Eu
era tímido e espalhafatoso", escreve Caetano, que se definia como
"introspectivo". A família acrescenta mais características. "Era
mansinho e preguiçoso", diz Rodrigo. "Era meio lerdo,
desligado", diz Lindaura.
"Estava
sempre no mundo da lua. Quando eu fazia um ditado, a cada duas palavras tinha
que gritar para que ele escrevesse", lembra a professora Zilda Paim, 78,
que ajudou a alfabetizar Caetano. "Ele não era um menino dinâmico, mas era
muito inteligente."
Talvez
por isso tenha sido escolhido para saudar o então candidato Juscelino
Kubitschek quando ele passou por Santo Amaro, em 55, na campanha pela
Presidência.
Caetano
não era um menino esportivo. "Não era de brincar ou conversar muito. Se
falavam com ele, Caetano dava aquela risada gostosa e voltava a voar. Para
onde, eu não sei...", diz Zilda.
Odiava
fazer educação física. Não só. O pai, seu Zeca, tinha uma grande paixão na
vida: futebol. Torcia para o Botafogo, time de Santo Amaro. Para desgosto do
patriarca, a meninada não herdou o mesmo interesse pelo esporte.
"Os
meninos não gostavam. Só quem jogava futebol era Bethânia, que jogava bola na
rua com os moleques", conta Lindaura. No livro, Caetano desmente a versão
de que a irmã fosse ponta-esquerda num time de futebol local.
Para
os familiares, a maior influência de Caetano foi a mãe. Era d. Canô quem
entoava valsas antigas, fados portugueses ou músicas regionais, como as de
Catulo da Paixão Cearense, para ele dormir. "Ele gostava de ficar no meu
colo ouvindo rádio", conta d. Canô.
Para
os santa-amarenses, ela é mais importante que os filhos ilustres. Sua fama de
caridosa ajuda. "Ela é uma irmã Dulce de Santo Amaro. O corredor da casa
dela fica cheio de gente pedindo dinheiro e favor", diz Edith do Prato.
Em
seu 90º aniversário, em setembro deste ano, d. Canô conseguiu a proeza de
reunir em torno da mesma mesa o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL) e o ex-governador
Waldir Pires (PT), inimigos políticos na Bahia de Todos os Santos.
A
matriarca dos Veloso virou atração. Vem gente de longe vê-la, transformando a
frente da casa em estacionamento de ônibus. Os projetos importantes em Santo
Amaro passam antes pelo aval de d. Canô -como o do teatro que será construído e
não terá o nome Caetano Veloso. D. Canô vetou.
O príncipe e João Gilberto
DO ENVIADO ESPECIAL
A pouco mais de 80 km de Salvador,
a poeirenta e mal ventilada cidade de 56 mil habitantes já conheceu seus dias
de glória. O declínio de Santo Amaro começou bem antes de Caetano deixar a
cidade, aos 17 anos. Ela coincide com o fim da importância do principal
ganha-pão da cidade: a cana-de-açúcar. No século passado, havia 129 engenhos
nos arredores. Hoje, a cultura principal é o bambu, usado em fábricas de papel
na região.
"Santo Amaro está muito
decadente, mas já foi muito rica no século passado. Era lá que moravam os
barões de cana-de-açúcar do recôncavo baiano", diz o artista plástico
Emanoel Araújo, 57, outro santa-amarense ilustre.
Um lampejo desse declínio se
reflete na vida cultural da cidade. Na década de 50, a cidade oferecia três
cinemas. Época em que filmes franceses, italianos e até mexicanos, como lembra
Caetano, eram exibidos regularmente. Foram neles que a juventude santa-amarense
conheceu Fellini e Godard. Hoje, é impossível assistir até mesmo a um filme de
Spielberg. Não sobrou um cinema na cidade.
Foi em um desses cinemas, o Cine
Teatro Subaé -hoje demolido-, que Caetano subiu no palco pela primeira vez.
"Ele tinha uns 10 anos. Fiz uma montagem de 'A Gata Borralheira'. Caetano
era o príncipe e a Bethânia era a Gata Borralheira. No final, eles cantavam e
dançavam juntos", conta a professora Zilda Paim.
Mas sua primeira apresentação
pública, lembra Caetano em "Verdade Tropical", foi um pouco antes,
aos 8 anos. "Se deu em um programa de calouros da Rádio Santo Amaro em que
eu, ao ouvir a introdução feita pela orquestra da marchinha 'Toureiro de
Madri', por mim mesmo escolhida, entrei cantando em outro tom, o que me
desclassificou imediatamente."
Essa opção pela música não era
algo tão definido na época. E a desafinação em "Toureiro de Madri"
tem pouco a ver com isso.
Na infância e adolescência,
Caetano era uma antena que recebia influências de diversas áreas da cultura e não
aparentava maior inclinação para nenhuma delas. Poderia ter sido pintor, ator,
diretor de cinema, jornalista ou até mesmo músico.
Caetano teve um pendor para o jornalismo. Ou para a crítica de cinema -gosto que o fez dirigir "O Cinema Falado" (1986).
No início da década de 60, quando
já morava em Salvador, ele começou a colaborar em um recém-fundado jornal de
Santo Amaro, o "Archote", criado por três professores locais.
Um deles, colega de sala de
Caetano no ginásio Teodoro Sampaio, era quem levava a coluna do futuro cantor
até o jornal na cidade natal.
"Ele sempre foi uma expressão
cultural da terra", elogia o ex-deputado Genebaldo Corrêa, 56, o tal
portador e que mais tarde ganharia notoriedade como um dos envolvidos no
escândalo da CPI do Orçamento.
Mas o primeiro dote de Caetano a
se revelar foi a pintura -ele fez as capas de alguns discos, como
"Jóia". Na sala de aula, passava mais tempo rabiscando desenhos do
que a encarar o quadro-negro.
Suas pinturas estão penduradas nas
paredes dos familiares. Quase todos têm um quadro pintado por Caetano.
Fora do círculo familiar, a
primeira vez em que Caetano mostrou seus quadros foi em uma exposição conjunta
com um amigo no ginásio de Santo Amaro, em 59.
"Caetano fazia umas pinturas
a óleo de paisagens de Santo Amaro. Depois, ele ficou impressionado com uma
mostra de Manabu Mabe, que ele viu em Salvador, e passou a fazer algumas
abstrações", lembra Emanoel Araújo, o amigo com quem Caetano dividiu a
primeira exposição e que, hoje, dirige a Pinacoteca do Estado em São Paulo.
Para Emanoel, apesar do interesse
de Caetano, o amigo dificilmente se tornaria um artista plástico. Mas não só
por sua pintura ser um pouco acadêmica demais. "Sempre achei que ele seria
músico. Ele sentava ao piano e tirava as coisas de ouvido. E gostava de tudo
que era novo. Cultuávamos Maysa e ninguém sabia quem era."
Esse culto ao novo era um dos traços marcantes de Caetano. Uma característica que apenas se acentuou após sua estada no Rio, no início de adolescência, onde ele foi operar as amígdalas. Acabou ficando um ano na casa onde morava Mariinha, uma das primas que cuidou de Caetano na infância.
Minha Inha, como Caetano costuma
chamá-la, tem hoje 86 anos e ainda mora na mesma casa -"no fim do
mundo", como diz a irmã, Lindaura.
No Rio, esse fim do mundo é
conhecido como Guadalupe, um subúrbio pobre na zona norte, a 35 km do centro do
Rio e a alguns quilômetros a mais das praias da zona sul carioca.
Na infância em Santo Amaro, era
Mariinha quem dava almoço para Caetano. Era ela também que o garoto acordava no
meio da noite para brincar. No Rio, Mariinha costumava levar o garoto para os
estúdios das rádios Nacional e Mayrink Veiga -que tinham uma influência no
público semelhante à da Rede Globo atualmente. Como em Santo Amaro, Caetano
passava horas ao pé do rádio ouvindo música.
"Ele era chato para comer,
não gostava de se pentear e, para tomar banho, era uma corre-corre",
lembra ela, que diz que uma das principais características de Caetano era ser
"muito perguntador".
Com um ano de aula perdido,
Caetano voltou a Santo Amaro -estava ainda mais interessado pelas novidades.
Uma dessas novidades cultuadas por Caetano Veloso -a maior delas- era João
Gilberto.
"Estávamos passando em frente
ao bar do Bubu (que hoje é uma barbearia) quando o Caetano chamou nossa atenção
para a música que estava tocando no bar. Era 'Chega de Saudade'. O Bubu tinha
duas cópias do disco e não se desfazia de nenhuma delas", lembra Chico
Motta, 57, um dos amigos que costumava ouvir João Gilberto com Caetano.
Como ele lembra em "Verdade
Tropical", "na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito
poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da
era do rock'n'roll". Na Santo Amaro daquele tempo, o quente mesmo era a
bossa nova.
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