domingo, 25 de febrero de 2024

2018 - ÍNDIA - 45 anos

 





Capa do disco Índia com detalhe do plástico exigido pela censura: polêmica impulsionou vendas - Rafael Arbex/Estadão - 17/7/2015



CULTURA

13/12/2018


Índia de pele morena, uma Gal fatal. No corpo e na voz

Disco sofreu dupla tentativa de censura e solidificou a cantora como símbolo sexual dos anos 1970. Lançamento faz 45 anos

 

JOÃO KER

em cena


A tanga vermelha, no centro do quadro. Acima, contas desenham colares. Abaixo, as franjas da saia escorregam pela pele morena. O close nos quadris de Gal Costa foi registrado pelo olhar atento de Antonio Guerreiro, em um intervalo do ensaio fotográfico para Índia, álbum lançado pela artista há 45 anos. O clique despretensioso virou a capa do disco, um dos seu trabalhos mais emblemáticos. Na contracapa, imagens dela com os seios à mostra. A ditadura militar tentou barrar as fotos e, depois de lançado o álbum, uma das músicas. Mas Gal driblou a censura e a caretice ao transformar seu corpo e sua voz em um instrumento político de protesto.

“A história original é que a gravadora queria a Gal na capa como uma índia. Nós, então, fomos para o Parque da Cidade, no Rio, e ela se vestiu com acessórios, cocares e adereços, mas completamente nua”, conta Guerreiro. O resultado da sessão foi então apresentado na sede da Polygram, em reunião do fotógrafo com o empresário Guilherme Araújo e os executivos da gravadora. “No meio da projeção, apareceu a foto e todo mundo ficou maravilhado com essa mistura de índia branca com calcinha, saia e tudo o que compunha a imagem. Ela foi escolhida para a capa por unanimidade”, lembra.


Capa do disco Índia, de Gal Costa, sem a capa de plástico - Reprodução


O ensaio fotográfico e a censura

Na floresta da Gávea, Gal se mostrou à vontade em meio à equipe de cabeleireiros, maquiadores, seguranças e assistentes de produção. “Ela não teve problema nenhum quanto a isso. Em uma das trocas de figurino, reparei nessa ‘brincadeira’ da tanga com a saia. Achei engraçada aquela contradição, porque índia não usa calcinha”, conta Guerreiro. “Fotografei esse detalhe, mas deixei a imagem em meio ao restante dos filmes, com uma porção de outras fotos.”

Na semana de estreia do disco, Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora, foi intimado a comparecer ao escritório de Solange Hernandez, agente da censura conhecida pelo punho firme ao classificar os lançamentos. Ela queria conversar sobre o novo LP de Gal. “Na época, a censura estava muito em cima de tudo o que fazíamos. Eu fui para o escritório dela meio encucado, porque não conseguia pensar em nenhuma letra do álbum que pudesse dar problema”, lembra Menescal.

Mas o problema, pelo menos a princípio, não eram as músicas, e sim as fotos. Além do close na pequena tanga vermelha, a contracapa ainda trazia a artista com miçangas no pescoço, um cocar na cabeça e o peito descoberto. “Ela disse que não aprovaria de jeito nenhum. ‘Pô, uma artista com os seios de fora?’, e eu respondi ‘Mas é uma índia! Você quer que a índia esteja de sutiã?’”





“Era uma época estranha de censura”, explica Guerreiro, que também fazia fotos para as extintas O Pasquim e Homem. “Até em revistas masculinas tínhamos umas limitações meio estúpidas, como mulher só poderia aparecer nua se fosse com um único seio à mostra.” 

Como o lançamento só aconteceria alguns dias depois, Menescal fechou com “dona Solange” um trato que marcaria a carreira de Gal e também significaria um feito inédito para a indústria fonográfica brasileira. “Eu disse: ‘E se fizéssemos uma capa de plástico sobre a capa original, que não deixasse a imagem aparecer?’.” Solange permitiu, mas impôs uma condição. “Você é responsável! Se sair alguma coisa que der para ver (os seios), eu vou te prender!” 

Menescal correu para organizar a produção do tal plástico azul na fábrica de discos. Paralelamente, soltou para a imprensa que o próximo LP de Gal havia sido censurado pela ditadura militar e, por isso, sua capa estaria coberta nas lojas de todo o Brasil. “Isso foi tudo o que a gente precisava”, conta o músico, rindo do episódio. “Todo mundo queria saber como era a capa.”



Capa de plástico do disco Índia, de 1973



Diretor de Marketing e Publicidade da Polygram naquela época, Armando Pittigliani lembra que a curiosidade ajudou muito na divulgação e nas vendas. “Foi a primeira vez em que um disco saiu com a embalagem lacrada. Aí que todo mundo queria mesmo comprar para ver o que tinha de tão polêmico. Foi uma verdadeira corrida às lojas, demos até disco de ouro e de platina para a Gal”, recorda Armando. “Se tivéssemos de dar porcentagem de lucros daquele álbum para alguém, seria para a censura.” 

Como ele mesmo explica, o feeling do time de divulgação apontava para uma resposta positiva do público desde o início. E muito disso pelo momento que a cantora vivia em sua carreira. Recém-saída do show Fa-Tal, Gal a Todo Vapor, que tinha casa lotada no novíssimo Teatro Tereza Rachel (hoje Theatro Net Rio, em Copacabana), a baiana estava com 28 anos, no auge de sua forma física e de sua potência vocal e criativa.

 

Gal Costa durante show realizado no Teatro TUCA, em São Paulo, abril de 1980

Foto: Paulo Leite/Estadão



O espetáculo solidificou seu nome como a musa hippie da Tropicália, glorificada pela atitude ora lânguida ora agressiva em suas apresentações, apoiada por um repertório que ia da bossa ao rock. Sua faceta tímida já tinha ficado para trás em 1968 com Divino Maravilhoso, mas a sensualidade performática dava os primeiros sinais: com uma flor nos cachos esvoaçantes, a boca vermelha cuidadosamente desenhada e a barriga de fora, Gal era o símbolo sexual definitivo da década de 1970, sem pudores ao cantar com um violão no colo e as pernas abertas no palco. 


Gal Costa toca violão e canta descalça durante show 

em março de 1973 — Foto: Estadão Conteúdo/Arquivo


Havia ainda o misticismo em torno das Dunas da Gal, o ponto efervescente da Praia de Ipanema, onde até 1975 ela era quase diariamente vista com outros artistas, intelectuais e frequentadores ligados à revolução comportamental que acontecia no País. Foi ali que nasceu Vapor Barato, um hino repetido incansavelmente pelas rodinhas de violão presentes, e o hábito hippie de aplaudir o pôr do sol no Morro Dois Irmãos. Não era raro ver Gal por ali, com as mesmas roupas que mais tarde usaria para subir ao palco.



Gal Costa na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro

Foto: Mário Luiz Thompson /Divulgação



“Acho que o disco iria bem de qualquer forma, mas a censura acabou acelerando o processo. Tanto que nem precisamos divulgar tanto, já estava todo mundo na loja comprando”, explica Menescal. Pittigliani também define o sucesso do álbum como inevitável: “Além de tudo, o disco é muito bom. O repertório foi um achado.” 

Em 2018, Gal se metamorfoseou mais uma vez com A Pele do Futuro, seu 40º disco, no qual usa mais uma vez seu talento camaleônico para se aventurar pela disco music e incluir até o sertanejo nesse caldeirão dos anos 1970. Mas, no início daquela década, ela já passava pelo mesmo processo ao reunir toda sua versatilidade em Índia, que mesclou seus melhores elementos até então. 

A música-título do LP já foi um risco e tanto para a sua persona pública. Índia teve sua primeira gravação em português pela dupla sertaneja Cascata e Inhana, em 1952, e colocava em jogo o status vanguardista e alternativo que Gal sustentava até ali (levantando os mesmos tipos de sobrancelha que se ergueram quando, neste ano, ela anunciou uma parceria com Marília Mendonça). 

Mas o arranjo produzido por Gil tornou instantaneamente a canção em um clássico, navegando pela sua interpretação gilbertiana aos gritos de Janis Joplin em uma única faixa. A aceitação foi grande e, em 1979, Índia reapareceu no álbum Tropical, dessa vez em nova roupagem. Em sua turnê europeia de 1986, a artista teve de incluir a música no repertório a pedido do público português. 

Mas Índia não foi nem de longe a única transgressão musical daquele disco. O LP também trouxe o folclore português de Milho Verde (José Afonso) para as batidas africanas da Bahia, ao mesmo tempo em que Passarinho (Tuzé de Abreu) é embebida em vocais delicados e lentidão caipira, cuidadosamente arranjados. Há também o mergulho até então inédito que Gal faz na bossa-nova de Tom Jobim e Newton Mendonça (Desafinado) e no repertório de Lupicínio Rodrigues com Volta, que integra hoje a setlist do seu show.

 

A música que a ditadura tentou barrar 

Para além dos ineditismos, Gal deu continuação à bem-sucedida parceria com Luiz Melodia (de quem havia gravado no ano anterior Pérola Negra), com Presente Cotidiano. Foi essa composição de Melodia que renderia o segundo problema de Índia com a censura, graças a versos como “Quem quer comprar banana?” e “O corpo é natural da cama”. Esse, menos impactante do que a capa feita por Guerreiro, acabou sendo resolvido nos bastidores por Guilherme Araújo. 

Enquanto isso, Da Maior Importância foi uma composição e declaração de Caetano a Gal, com quem ele havia brevemente trocado a amizade por romance naquele período. Há ainda a ousadia sutil de Pontos de Luz, escrita por Jards Macalé e Waly Salomão, este último também responsável pela direção do espetáculo Índia, que rodou 15 capitais brasileiras. 

“A música é toda quebrada, muito positiva e muito especial. Acho interessante a Gal ter gravado. Ela estava sempre por perto, procurando saber o que tínhamos de novo e querendo gravar”, relembra Macalé. Ele enxerga nos versos “Me sinto contente/ Ouso dizer completamente contente” uma atitude de transgressão e desafio frente à tensão política da ditadura militar. 

Em 2016, a faixa foi usada como base pelo produtor canadense de música eletrônica Kaytranada para um de seus singles de maior sucesso, Lite Spots (tradução literal de Pontos de Luz, no inglês). No Youtube, essa nova versão já beira as 4,5 milhões de visualizações, apresentando a obra de Gal para uma nova geração de pessoas antenadas, em muitos aspectos similar àquela que conheceu sua gravação original. 

Se (Pontos de Luz) fizer o mesmo sucesso que Vapor Barato e ficar voltando, acho um barato”, comenta Macalé, referenciando seu outro trabalho com Gal, regravado em 1996 pelo O Rappa. Ele não sabe, mas no mesmo ano de Lite Spots, Frank Ocean, um dos artistas mais transgressores, experimentais e aclamados dessa nova galera, reutilizou os gritos da versão ao vivo de Vapor Barato em seu segundo álbum, Endless. Já no Brasil, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, criada em 2011, não nega o tanto que a arte e as fases de Gal influenciam o processo criativo, estético e sonoro do grupo.

“É inevitável, quando você escuta um artista da envergadura de Gal, que você não seja influenciado por alguma coisa, mesmo que só tenha ouvido um disco dela”, observa Assucena Assucena, acrescentando que a produção realizada por Gal em 1970 foi a primeira parte da obra da artista que ressoou para ela. 

Para Raquel, assistir à liberdade sexual de Gal nos palcos gerou uma espécie de epifania durante uma das fases mais difíceis de sua vida. “Nós passamos a pesquisar o trabalho dela de uma forma meio sagrada”, conta. “Eu vivia um momento de muita depressão, em um período muito conturbado da minha transição de gênero, quando encontrei um vídeo dela cantando Da Maior Importância. Aquilo me deu um choque tão grande que eu comecei a gritar pela casa.”

Assim, despretensiosamente, Gal fez seu desbunde viajar no tempo e invadir as pistas de dança da Europa, os fones de ouvido dos millenials e as plataformas de streaming mais de 40 anos depois. Índia apresentou ao mundo uma artista rebelde, versátil e dona de si, que militava as tensões políticas de seu tempo através do corpo e da voz inigualável. Com a ousadia desse trabalho, ela driblou a censura, tornou-se referência e se firmou no tempo, trocando uma de suas muitas peles que manteriam-se intocáveis no futuro que estava por vir.






Foto: Nilton Ricardo

















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