viernes, 2 de diciembre de 2022

2022 - GAL, PARA SEMPRE LEGAL

 

2022
Revista piauí
Edição 195
Dezembro 2022


revista piauí

 

despedida


GAL, PARA SEMPRE LEGAL


Os últimos dias da cantora e o séquito de jovens em seu velório

 

29 de novembro de 2022

  

THALLYS BRAGA

 

Gal em 1979: Durante a pandemia, ela ficou emocionada ao ver tantos jovens escutando discos de músicos da sua época – fenômeno que identificou no Instagram. “Minha geração é foda, né?” - Crédito: Thereza Eugênia


Gal Costa tinha o costume de se deitar quando o dia estava prestes a nascer, perto das seis da manhã, e só despertava no meio da tarde. Por isso, mesmo que fizesse um show apenas em determinada cidade, sua estadia precisava durar no mínimo três dias: ela chegava na véspera para descansar com calma, acordava na tarde do dia da apresentação, e depois de soltar a voz por uma hora e meia voltava ao hotel para repousar antes de seguir viagem, no dia seguinte. Não era uma rotina mansa para uma mulher de 77 anos, e por vezes Gal confessava se sentir cansada. Ainda assim, na maior parte do tempo demonstrava entusiasmo para subir ao palco e vibrava ao saber que a plateia estava cheia de jovens.

No dia do último show de sua vida, em 17 de setembro passado, Gal descansou em sua própria casa, no bairro paulistano dos Jardins. Era sábado, ela acordou mais cedo que o habitual, ao meio-dia, e escreveu logo uma mensagem no WhatsApp para sua produtora e assistente pessoal: “Giovana, mudei de ideia, vou querer ir pronta para o show. Imagino que aí precisaremos sair [de casa] às 19h30.”

Giovana Chanley acatou a mudança de planos e chegou às cinco da tarde na casa de Gal. Encontrou-a sentada na mesa da cozinha, tomando uma xícara do café que ela mesma havia feito. Assim que o maquiador Everson Rocha chegou, Gal começou a se preparar para o show, enquanto conversava com ele sobre a personagem Juma Marruá e a atuação de Marcos Palmeira em Pantanal. Sempre que encontrava a assistente e o maquiador, Gal falava sobre a novela, da qual não perdia nenhum capítulo.

 

À noite, um motorista foi buscá-la. A cantora ainda estava no quarto, irritada porque não conseguia encaixar o brinco em uma das orelhas. Ela gostava de pentear o próprio cabelo, passar o batom e colocar sozinha os acessórios. “Quer saber, vou sem brinco mesmo”, disse, impaciente, à assistente pessoal. Chanley ofereceu ajuda e, pela primeira vez em sete anos de parceria, Gal aceitou. Às 19h30, a cantora entrou no carro e partiu rumo ao Coala Festival 2022, no Memorial da América Latina, a cerca de 25 minutos de sua casa.

Rubel e Tim Bernardes, artistas da nova geração de músicos brasileiros, foram convidados a participar da apresentação daquela noite. Gal, assim que chegou, foi ao camarim cumprimentá-los e fazer algumas fotos. O encontro não durou mais que dez minutos, e logo os dois músicos seguiram para o aquecimento do show. Gal ficou retocando o batom. Diante do espelho, ela curvou a cabeça para frente, de modo que pudesse olhar o próprio cabelo, e o penteou a partir da nuca em direção à ponta dos fios. Encarou seu reflexo e depois se dirigiu até o produtor técnico Lirinha Morini, que esperava na porta, com uma lanterna, para guiá-la até o palco.

Gal apareceu com os olhos destacados, uma sombra preta esfumada nas pálpebras, a boca pintada de um vermelho matador, os cabelos fartos emoldurando o rosto. Cumprimentou os instrumentistas com o ar divertido de sempre e dirigiu-se à ponta do palco. Abaixou para tocar o chão do tablado e ergueu-se de olhos fechados, sussurrando algumas palavras com as mãos estendidas para o céu.

 

Do outro lado da cortina, uma multidão formada em sua maioria por fãs de 20 e poucos anos a aguardava. Havia pelo menos cincos anos que Gal vinha atraindo as novas gerações para os shows. Sua presença era esperada nos principais festivais de música do país e, em 2022, ela participou de cinco eventos desse tipo, sempre cantando para plateias dominadas por jovens. O produtor Marcus Preto conta que Gal até se assustou quando, em janeiro de 2019, fez um show em Portugal para um público mais velho. “Eu olhava para a plateia e só tinha aquelas cabecinhas brancas. Achei hilário”, ela disse na ocasião, aos risos.

Gal abriu o show no Coala Festival às 20h30, cantando Fé Cega, Faca Amolada, de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento. No curso de uma hora e vinte minutos, passeou por clássicos de seu repertório, como Divino Maravilhoso, Tigresa e Baby. De vez em quando, afastava o microfone da boca e encarava o público, sorrindo, e então dizia coisas do tipo: “Tá lindo!”

O show chegou ao ápice quando luzes vermelhas foram acesas e Tim Bernardes dedilhou a guitarra, fazendo soar os primeiros acordes de Vapor Barato. Gal se pôs a desafiar a potência do instrumento eletrônico com as cordas vocais, da mesma maneira que fazia aos 26 anos. Na metade da canção, os músicos se entreolharam, eufóricos, aumentando a frequência dos acordes. Gal acompanhou, entoando cada vez mais alto o verso Oh minha honey baby. Ela estava em seu melhor estado. A plateia foi ao delírio. Quando a música chegou ao fim, Gal disse, como se não tivesse ela mesma dado um espetáculo: “Bonita a guitarra do Tim, né?”

 

As pessoas nos bastidores ficaram com a impressão de que Gal estava em êxtase. Ela saiu do palco de braços abertos em direção a Preto e Chanley, que se lembram de ter chorado muito durante o show. Quando os alcançou, a cantora comemorou o bom desempenho das cordas vocais: “Cantei pra caralho! Acho que é porque estou cuidando do meu pulmão.” Os músicos da banda correram para o camarim e brindaram com um vinho, o que não era de costume. Eles também sentiram uma emoção diferente naquela noite. “Foi um show inspirado”, diz Tim Bernardes. “Saiu todo mundo impactado.”

Cerca de uma hora depois, Gal voltou de carro para casa. Chegando lá, subiu para o quarto, no segundo andar, para vestir uma camisola e calçar os chinelos. O filho, Gabriel, estava dormindo. Ela se sentou no sofá da sala ao lado de Wilma Teodoro Petrillo, sua companheira e sócia, e começou a contar como aquela noite fora divertida, enquanto degustava um sashimi de salmão e uma taça de suco de uva.

 

Quatro dias antes, na terça-feira, 13 de setembro, Gal tinha se internado no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, para retirar um nódulo da fossa nasal direita, que havia algum tempo lhe causava um pequeno incômodo, semelhante ao de uma espinha. A cirurgia, porém, não aconteceu, porque os médicos identificaram que a saturação da cantora estava baixa. Ela ficou internada por três dias, recebendo tratamentos para melhorar o funcionamento do pulmão.

Durante esse período, sua equipe ficou sem saber se ela faria o show no festival Coala. Um grupo restrito, de menos de dez pessoas, sabia o que estava acontecendo com Gal, que era muito reservada com certos assuntos pessoais. 

Enquanto isso, os músicos realizaram dois ensaios: um na quinta-feira, dia 15, em um estúdio, e outro na manhã de sexta-feira, no palco do próprio Coala. Rubel e Tim Bernardes estiveram nas duas ocasiões. Os dois ficaram receosos quando souberam que Gal não poderia ensaiar porque estava no hospital. “Deu uma coisa meio estranha na gente, do tipo: ‘Caramba, será que tem alguma coisa séria?’”, lembra Bernardes. “Parece que bateu a confirmação de que a Gal estava mais velha, uma preocupação com a saúde dela. Mas o show foi quase a confirmação do contrário: Gal estava ótima.”

Os músicos só receberam a notícia de que haveria o show na sexta-feira à noite, faltando 24 horas para subirem ao palco. Como Gal teria que esperar algumas semanas para retirar o nódulo do nariz, ela confirmou a apresentação. “Se Gal decidiu sair de casa para fazer um show, é porque sabia que o que tinha não era grave”, diz Marcus Preto, que a acompanhou nos últimos nove anos. “Ela jamais subiria num palco se soubesse que algum problema de saúde ameaçava a sua vida.”

 

Gal retornou ao hospital na quarta-feira, dia 21 de setembro. O tratamento para o pulmão dera certo, e ela pôde realizar a cirurgia. Conforme a cantora relatou à empresária Kati de Almeida Braga, sua amiga, o procedimento foi surpreendentemente tranquilo. A equipe médica, contudo, recomendou que ela ficasse longe dos palcos por um tempo, para ajudar na recuperação. Toda agenda de shows foi suspensa até o fim do ano. Pelo WhatsApp, Gal começou a fabular com Almeida Braga uma data para retomar a turnê antes do Réveillon – “para recomeçar logo, colocar a bola em campo”, diz a empresária. “Gal tinha absoluta convicção de que voltaria em breve.”

A cantora era conhecida entre os mais íntimos como a pessoa que respondia mais rápido às mensagens de WhatsApp. Vivia com o celular na mão, conversando com amigos e respondendo os comentários dos fãs no Instagram. Depois da cirurgia, ela diminuiu a frequência das conversas com Marcus Preto. Como era reservada com assuntos mais particulares, Preto não chegou a estranhar o distanciamento. Na noite de 30 de outubro, Gal comemorou com ele a vitória de Lula, enviando a mensagem: “Chupa Sergio Moro!!!!!” Minutos depois, Preto mandou um recado avisando que a notícia que circulava pela internet sobre a morte de Erasmo Carlos era falsa. Gal respondeu: “Graças a Deus ele está aqui conosco!” Foi sua última mensagem para o produtor. Erasmo Carlos morreu duas semanas depois de Gal, em 22 de novembro. 

Giovana Chanley fez aniversário no dia 1º de novembro e Gal foi a primeira pessoa a parabenizá-la. Pelo WhatsApp, escreveu, às 2h04: “Parabéns!!! Muita saúde e paz pra você!!! Tudo de bom!!! Beijos pelo seu dia.” Na sequência, enviou uma caricatura de Lula abraçando um mapa do Brasil. De manhã, Chanley respondeu, agradecendo, e as duas não voltaram a se falar.

Com Almeida Braga, Gal conversou pela última vez na noite de 8 de novembro. Contou que mais cedo havia feito a radioterapia prescrita por seu médico para inibir o nascimento de células que pudessem resultar em outro nódulo. Disse que o procedimento não durara dez minutos e que ela nem precisara tomar o remédio para enjoo. Confessou estar louca para voltar a trabalhar e se disse feliz por ter comprado outra casa em São Paulo, que passava por reformas.

Por volta das seis da manhã do dia 9, quarta-feira, Maria da Graça Penna Burgos Costa teve um mal súbito e morreu em casa. Um médico que a acompanhava e foi até lá atendê-la disse que ela pode ter sofrido uma embolia pulmonar ou um infarto. Wilma Petrillo decidiu não realizar a autópsia do corpo. Embora tenha vivido com Gal por 24 anos, a viúva não é bem relacionada com os amigos, a família e os funcionários da cantora. Alguns parentes reclamaram que o sepultamento tenha sido em São Paulo e não no Rio, onde ela comprou um jazigo em 1995. A Piauí procurou Petrillo, mas ela preferiu não se manifestar. Gal deixou um filho, Gabriel Costa Penna Burgos, de 17 anos, de quem dizia ter muito orgulho.

 

No início da tarde daquela quarta-feira, a estudante universitária Sofia Gianfelice Mendes, de 20 anos, saiu para comprar um maço de cigarros e deixou o celular em casa. Ao retornar, encontrou ligações perdidas e um amontoado de mensagens de familiares e amigos. Todos repetiam a notícia que fez Mendes desmoronar: Gal Costa, a sua cantora favorita, tinha morrido.

Mendes ficou encarando as paredes da cozinha de sua casa em Niterói. Depois, correu até o quintal e gritou para uma amiga que mora ao lado: “Nana, a Gal morreu.” A vizinha tomava banho, mas desligou o chuveiro: “O quê?” Mendes repetiu: “A Gal morreu.” Ao se ouvir pronunciar essas palavras pela segunda vez, ela começou a chorar – e continuou chorando durante horas.

Na madrugada da sexta-feira, dia 11, a estudante embarcou sozinha num ônibus de Niterói a São Paulo para acompanhar o velório da cantora. A cerimônia aberta ao público aconteceu no mesmo dia, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Mendes chegou lá às nove da manhã. Um pequeno grupo aguardava os portões serem abertos. Os fãs mais velhos levavam discos de vinis e cartazes, e a todo instante trocavam abraços de consolação. Outro segmento de fãs, mais comedido, era formado por jovens da faixa etária de Mendes. Alguns deles tinham os olhos avermelhados e a ponta do nariz rosada de tanto chorar. 

Gal não ficaria surpresa se soubesse que tantos jovens largaram as aulas da faculdade, o trabalho ou o estágio para comparecer ao velório. Marcus Preto conta que certa vez a cantora lhe disse, em tom satisfeito: “Eu olho para a plateia e só tem aqueles rostinhos, eles ficam chorando… Gente, essas pessoas nem eram nascidas quando eu lancei essas músicas.” Seja por causa da colaboração com novos artistas, seja pela imagem de moça despreocupadamente corajosa e subversiva, Gal desperta na juventude de hoje um interesse equivalente ao que desencadeou na dos anos 1960 e 1970 – um feito excepcional entre os veteranos da MPB.

“Me aproximei dela acho que na adolescência, lá pelos 15 anos, quando desenvolvi uma loucura pelo disco Fa-Tal”, conta Mendes. De olhos castanhos e sobrancelhas muito pretas, a moça tem o cabelo cortado nos moldes que Gal usava na década de 1970. “A aparência de imposição da Gal foi o que me pegou. O cabelo dela é muita coisa. Ela é muita coisa. Sem falar na voz.”

A Alesp abriu os portões para o velório às 9h19. Os fãs caminharam lentamente em direção ao salão onde estava o corpo da cantora. Uma vez lá dentro, eles se aproximaram um a um do caixão, sussurraram algumas preces e foram embora. Mendes encarou o corpo de Gal por menos de um minuto e, em voz baixa, disse “Obrigada”, com os olhos lacrimejando. Então retornou para a calçada, onde ficou por mais cinco horas à espera de amigos que fez pela internet, em fã-clubes da cantora.

Ainda pela manhã, ela comprou um par de rosas vermelhas para depositar perto do caixão, quando entrasse outra vez na fila do velório. Antes disso, resolveu fumar um cigarro. Sentou-se debaixo de uma árvore e ficou em silêncio por minutos, observando as pessoas chegarem para a despedida. Depois, disse com a voz miúda: “Não tenho experiência com morte. Nunca alguém próximo de mim morreu. Nem amigos, nem familiares. Essa sensação de silêncio profundo é normal?”

 

A notícia chegou para o estudante de letras Chico Mieli, de 20 anos, instantes após ele pensar em Gal. O rapaz estava sozinho em um ponto de ônibus, escutando no fone a canção Begin the Beguine, do norte-americano Cole Porter. “Enquanto escutava, fiquei pensando na versão que a Gal gravou da música, naqueles agudos difíceis de atingir, na precisão quase geométrica do canto dela”, diz Mieli. Quando foi consultar o celular, viu a notícia da morte da cantora e ficou tão baratinado que perdeu o ônibus para o trabalho. “Falando agora, parece uma grande coincidência, mas é que eu não tirava a Gal da cabeça. Pensava muito nela, o tempo todo.”

Na casa de Mieli há uma coleção de discos de música brasileira. No início da adolescência, ele sentiu necessidade de identificar, em meio a todo o repertório musical que seus pais lhe tinham apresentado desde a infância, o que mais o interessava. E foi Gal Costa quem fisgou a sua atenção. “Acho que me pegou por causa da figura de mulher linda, com a voz superafinada. O jeito dela dançar no palco tinha algo de lúdico, ela correndo de um lado para o outro: eu gostava muito disso quando era criança.” 

Mieli se afeiçoou primeiro ao disco Gal Tropical, de 1979, mas desenvolveu laços mais fortes com as músicas do início da carreira da baiana. “As coisas que ela fez há cinquenta anos ainda têm muita atualidade, você não sente nenhum desgaste. O que é bom e ruim ao mesmo tempo”, diz. “É ruim porque talvez a gente não tenha desenvolvido novas fórmulas, e bom porque foram ideias muito bem executadas durante a sua criação.” 

Ele foi um dos primeiros a chegar para a despedida de Gal Costa na Alesp, por volta de 8h30. Estava acompanhado de Miguel Bivar, um amigo da USP. Os dois faltaram à aula para comparecer ao velório. “Os agudos foram o que me atraiu na Gal”, diz Bivar, de 19 anos. “Me lembro de ter escutado específicamente Nuvem Negra e gostar muito, até que a Gal se tornou a minha cantora favorita. Gosto da tensão que ela dá para as músicas e de como lida com a emoção dramática.” (Bivar, assim como os demais fãs, se referem a Gal no presente: ela é, canta, faz.) Ele considera que a cantora permaneceu interessante por várias gerações porque é uma “escola” para outros intérpretes brasileiros. “A gente consegue reconhecer a influência do estilo da Gal no canto da Marisa Monte, da Zizi Possi, de várias artistas que a reivindicam como mestre. É fácil escutar as músicas antigas dela porque estão próximas do que é produzido no Brasil hoje em dia.”

Bivar é estagiário em uma escola de ensino fundamental no Centro de São Paulo. Estava acompanhando os alunos em um sarau musical no começo da tarde do dia 9, quando uma das crianças disse: “Tomara que cantem uma música da Gal Costa agora. Ela morreu.” Surpreendido, o estudante de letras sentiu seu corpo arrepiar. Ele também tem mais afeição pelas produções do início da carreira da cantora e pelos discos da década de 1990. Em 2021, comprou ingresso para um show apenas por desencargo de consciência, para poder dizer que assistiu a Gal ao vivo, pelo menos uma vez na vida. “Não estava dando nada pelo show, achava que a voz dela não era a mesma coisa de antes”, recorda. “Mas a Gal deu um baile. Foi incrível.”

 

No princípio de 2020, a cantora começaria a trabalhar em um disco com regravações de Milton Nascimento, mas as medidas de isolamento social atrapalharam o plano. Quando a agenda cultural foi retomada, no final de 2021, Marcus Preto sugeriu que Gal voltasse aos palcos com um tributo ao cantor e compositor mineiro. Foi o que ela fez. Nos últimos meses, viajou o Brasil com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela, cujo repertório tinha composições de Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim, Cazuza e João Gilberto – seu ídolo maior –, mas era Milton o grande homenageado. O show seria gravado ao vivo no Rio de Janeiro em 24 de setembro, mas a agenda da cantora foi interrompida para que ela fizesse a cirurgia no nariz. Ela planejava para o ano que vem um álbum de inéditas, para o qual Jards Macalé já havia escrito uma canção.

Nenhuma Dor, o último disco de Gal, foi gravado em 2021, durante a pandemia, em parceria com artistas da nova geração. Surgiu do desejo da cantora de retribuir o carinho que estava recebendo dos fãs mais novos. Preto se recorda que ela ficou emocionada ao ver tantos jovens escutando, durante o isolamento social, os discos dos músicos de sua época, um fenômeno que identificou no Instagram. “Minha geração é foda, né? Eu acho que eles [os mais novos] estão entendendo que precisam cuidar dos mais velhos, porque são os mais velhos que estão morrendo”, ela disse a Preto.

O álbum de Gal que causa mais frisson nos jovens de hoje é Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, de 1971. A cantora tinha 26 anos quando gravou o disco no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana. O AI–5 vigorava no país, e os amigos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil viviam na Europa havia três anos, num autoexílio forçado pela ditadura militar. Praticamente isolada no Brasil, Gal se juntou ao produtor musical Paulinho Silva e a Waly Salomão, responsável pela direção artística, para montar o novo show. A estreia aconteceu em 8 de outubro de 1971. No dia 17 do mesmo mês, ela gravou ao vivo o disco que viria a se tornar um monumento da contracultura brasileira.

Poucos conseguiram assimilar o que aconteceu no Teatro Tereza Rachel: uma verdadeira provocação ao ambiente conservador e ao autoritarismo dominante no país. Gal surgia vestida de top e saião, com a boca pintada de vermelho e a pele bronzeada depois de passar o dia na Praia de Ipanema. No primeiro ato do show, se sentava numa banqueta para soltar a voz com uma valentia que ainda não havia ousado, enquanto dedilhava o violão. Na metade da música Vapor Barato, a banda entrava discretamente em cena, e pelo resto da noite ajudava a cantora a arrancar suor da plateia.

O show Fa-Tal seria reconstruído no início de 2021, no mesmo teatro, mas o projeto acabou sendo cancelado pelos contratantes. No final daquele ano, a produção do festival espanhol Primavera Sound começou a planejar o seu primeiro evento no Brasil e telefonou para Preto, perguntando se ele achava possível reunir Gal, Bethânia, Caetano e Gil para um show de reencontro do grupo Doces Bárbaros. Preto conta que Gal aceitou participar, mas, como a reunião acabou não ocorrendo por haver conflito entre a agenda dos artistas e a data da apresentação, ele propôs ao festival recriar o show Fa-Tal. A equipe do Primavera Sound gostou da proposta, e Gal também.

Quatro dias depois de acertar os trâmites da apresentação, a cantora recuou e pediu que ela fosse cancelada. Disse a Preto que “não tinha mais aquele corpo, aquela voz” dos 26 anos. Ele argumentou: “Mas, Gal, ninguém disse que você, cinquenta anos depois, é a mesma. É tudo diferente. Você não vai imitar aquilo, vai refazer.” Por fim, Gal se convenceu de que reapresentar o Fa-Tal poderia ser bom. A ordem do repertório original seria mantida, e o show sofreria pequenos ajustes. Os ensaios começariam na semana anterior à apresentação, marcada para o dia 5 de novembro. Ninguém contava que Gal precisaria fazer a cirurgia no nariz. “Para nós, que somos fãs da era de ouro da música, aquela dos anos 1970, parecia um sonho reconstruir o Fa-Tal”, diz Vitor Cabral, baterista da banda de Gal. “E agora parece uma daquelas frustrações de criança, com a qual a gente vai precisar de muito tempo para aprender a lidar.”

 

Em Feira de Santana, na Bahia, o editor de vídeos Rodrigo Xavier, de 23 anos, vibrou com a notícia da reapresentação do show de 1971. Comprou os ingressos do Primavera Sound e as passagens aéreas para assistir à apresentação em São Paulo. Quando soube do cancelamento de Gal, ficou arrasado, mas decidiu ir ao festival mesmo assim, para ver os shows dos artistas internacionais. O evento terminou em 6 de novembro, domingo, e ela morreu três dias depois. Como ainda estava em São Paulo, Xavier foi à Alesp se despedir da cantora.

“Conheci Gal por um vídeo que viralizou, ela duelando com a guitarra em uma apresentação de Meu Nome É Gal. Aquilo foi uma das coisas mais incríveis que eu vi”, diz Xavier. O vídeo foi gravado em 1981. Gal, vestindo plumas cor-de-rosa, desafia com a própria voz a guitarra do músico Victor Biglione. “Eu a vejo como a primeira artista pop do Brasil. Gal apresenta em sua voz um canto moderno, com um pouco das raízes de cantores brasileiros como João Gilberto, e ao mesmo tempo traz um progresso. Se você pegar o álbum Recanto, de 2011, vê a Gal experimentando a música eletrônica ao lado de Caetano. E ela já tinha 66 anos de idade.”

 

Próximo das onze da manhã, a estudante Sofia Mendes decidiu entrar de novo no velório, agora levando o par de rosas vermelhas ao caixão de Gal. Dessa vez, não chorou. Observou de longe o corpo da cantora, sacudiu a cabeça e disse: “Não parece verdade.”

Quando tinha 18 anos, a jovem começou a construir um acervo fotobiográfico de Gal Costa nas redes sociais. Às vezes passa horas, dias procurando o contexto e os créditos de uma imagem antiga da cantora, e só então a publica no Twitter e no Instagram. Foi a maneira que encontrou de ajudar na preservação da memória da tropicalista. Estudante do quarto período da faculdade de produção cultural, ela está decidida a elaborar um trabalho de conclusão de curso sobre “a resistência estética, política e comportamental de Gal Costa no Brasil ditatorial de 1971”.

Ao retornar à entrada da Alesp, ela encontrou quatro amigos também apaixonados por Gal. Todos eles são de São Paulo e integram fã-clubes da cantora. Débora Baptista, de 28 anos, criou um projeto digital de divulgação da obra de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia. O “Portal Doces Bárbaros tem hoje mais de 100 mil seguidores no Instagram. Gal foi a primeira, ela diz. Antes de escutá-la, eu nem sabia o que era ser mulher. Meu espírito de juventude, de revolução, foi tudo pautado por ela. É muito louco pensar que depois daqui não tem mais Gal.”

Baptista soube da morte da cantora por amigos, que, “com muita cautela”, telefonaram para dar a notícia. Algo similar ocorreu aos outros jovens com os quais a Piauí conversou no velório: quando a cantora morreu, foi neles que os amigos e os familiares pensaram imediatamente. Ser fã de Gal Costa é um traço definidor de suas personalidades, algo pelo que são conhecidos e lembrados.

Depois de escutar a amiga refletir sobre a conexão com a música de Gal, Mendes compartilhou as lembranças do dia em que foi a São Paulo para assisti-la no Coala Festival. Baptista também estava no show. As duas ficaram desfiando recordações na calçada da Alesp, intercalando lágrimas e sorrisos. 

Então o silêncio acabou pesando e nenhuma das duas sabia mais o que falar. Até que Mendes, num rompante, anunciou:

– Quando eu tiver uma filha, vou dar a ela o nome Gal.

Baptista a encarou com um sorriso meio de lado. E Mendes prosseguiu:

– Gal, Gal, Gal. É um nome legal.

As duas se entreolharam, arregalando os olhos e abrindo um sorriso, e disseram em uníssono:

– Gal é legal!








2023
Revista piauí
Edição 196
Janeiro 2023


A carta de Arthur Nestrovski


A revista piauí deste mês traz uma carta minha, sobre a foto invertida de Gal Costa, no número de dezembro. Por motivos de espaço, a carta saiu bem reduzida. Aqui vai o texto na íntegra: 

"Queridos amigos da Iauip, 

Abri a revista de dezembro de trás para a frente, como muitas vezes faço, seguindo um atávico hábito hebraico. E logo levei um choque: uma foto de página inteira (p. 87) de Gal tocando o violão com as mãos trocadas. Quer dizer: a mão esquerda dedilhando as cordas, a direita fazendo um acorde de Fá maior no braço do instrumento (pestana na primeira casa). 

Como sabem leitores e autores, esta revista tem apreço especial pela checagem dos fatos. Jamais publicaria uma foto de Rafael Nadal segurando a raquete na mão direita, ou Federer na esquerda. Jamais deixaria passar uma imagem de Rivellino batendo falta com a perna direita. Ou da mão direita do nosso presidente com um dedo a menos. 

Por algum insondável motivo, é comum se deparar com fotos invertidas de músicos – violonistas, violinistas, violoncelistas, até flautistas. Eu mesmo já fui vítima disso. Tive a tentação de entrar no palco com um violão encordoado ao contrário e as mãos trocadas, honrando a divulgação do evento. Vira e mexe, se vê uma foto de violinistas com o arco na mão esquerda. Se não for Nicola Benedetti, está errado. Maestros com a batuta na canhota também são raros. (Paavo Berglund era um.) 

O motivo das fotos trocadas quase sempre é gráfico. A foto invertida parece melhor, para o designer. Mas francamente, pessoal, isso não serve de justificativa. Ainda mais numa foto histórica, como essa, Gal em 1979. Para piorar, o baixista e o guitarrista, atrás dela, também viraram canhotos. Seria a raridade das raridades: um trio de canhotos! 

Enfim, além de falso, é muito desconfortável ver o mundo invertido, desse jeito. Esse negócio de esquerda e direita tem de ser levado a sério, fotograficamente falando. Ossi siam maçaf oãn rovaf rop!"

 


A foto de Thereza Eugênia "desinvertida"




Gal Costa: REAL causa da morte da cantora vem à tona

 

02 dezembro 2022

Matheus Queiroz

 

As últimas horas de vida de Gal Costa foram relatadas em uma reportagem publicada pela Revista Piauí. 

Consagrada como a maior cantora do Brasil, Gal Costa morreu de forma inesperada aos 77 anos no dia 9 de novembro. A causa do óbito da cantora foi revelada pela Revista Piauí, em uma reportagem publicada nesta sexta-feira (02/12). 

De acordo com a matéria, Gal morreu após ter um mal súbito em casa. O falecimento da artista aconteceu por volta das seis horas da manhã. A artista deixou a esposa, Wilma Petrillo, e um filho, Gabriel, de 17 anos.


GAL COSTA REALIZOU RADIOTERAPIA HORAS ANTES DE MORRER

Segundo o jornalista Thallys Braga, um dia antes de morrer, Gal relatou a uma amiga que realizou uma radioterapia com o objetivo de inibir o surgimento de células que pudessem causar outro nódulo (em setembro, ela fez uma cirurgia para a retirada de um nódulo do nariz). O procedimento durou menos de 10 minutos e ela o fez sem necessidade de remédios para enjoo. 

Ainda de acordo com informações do jornalista da Piauí, Gal também contou a esta amiga que estava "louca para voltar a trabalhar" e celebrou a compra de uma nova casa em São Paulo. 

Esse procedimento afastou Gal dos palcos nos últimos meses de vida e a fez cancelar a tão aguardada apresentação no festival Primavera Sound, que teria acontecido quatro dias antes da morte da cantora. Na ativa e rodando o Brasil com a turnê "As várias pontas de uma estrela", ela já tinha apresentações agendadas para 2023.



1. Gal Costa morreu de forma inesperada no dia 9 de novembro


2. Gal Costa morreu após ter um mal súbito. Informação foi revelada pela Revista Piauí em reportagem publicada nesta sexta-feira (02/12)


3. Gal Costa morreu em casa por volta das 6h da manhã do dia 9 de novembro de 2022 


4. Gal Costa realizou uma radioterapia um dia antes de morrer, segundo o jornalista Thallys Braga, da Piauí 


5. Gal Costa fez radioterapia com o objetivo de inibir o surgimento de células que pudessem causar outro nódulo 


6. Em setembro, Gal Costa fez uma cirurgia para a retirada de um nódulo do nariz


7. Gal Costa estava 'louca para voltar a trabalhar', segundo jornalista da Revista Piauí 


8. Gal Costa morreu aos 77 anos


9. Gal Costa deixou a esposa, Wilma Petrillo, e um filho, Gabriel, de 17 anos


10. Gal Costa foi consagrada como a maior cantora do Brasil




No hay comentarios:

Publicar un comentario