2022
Revista piauí
Edição 195
Dezembro 2022
revista
piauí
despedida
GAL, PARA SEMPRE LEGAL
Os últimos dias da cantora e o séquito de jovens em
seu velório
29 de novembro de 2022
THALLYS BRAGA
Gal
Costa tinha o costume de se deitar quando o dia estava prestes a nascer, perto
das seis da manhã, e só despertava no meio da tarde. Por isso, mesmo que
fizesse um show apenas em determinada cidade, sua estadia precisava durar no
mínimo três dias: ela chegava na véspera para descansar com calma, acordava na
tarde do dia da apresentação, e depois de soltar a voz por uma hora e meia
voltava ao hotel para repousar antes de seguir viagem, no dia seguinte. Não era
uma rotina mansa para uma mulher de 77 anos, e por vezes Gal confessava se
sentir cansada. Ainda assim, na maior parte do tempo demonstrava entusiasmo
para subir ao palco e vibrava ao saber que a plateia estava cheia de jovens.
No dia do último show de sua vida, em
17 de setembro passado, Gal descansou em sua própria casa, no bairro paulistano
dos Jardins. Era sábado, ela acordou mais cedo que o habitual, ao meio-dia, e
escreveu logo uma mensagem no WhatsApp para sua produtora e assistente pessoal:
“Giovana, mudei de ideia, vou querer ir pronta para o show. Imagino que aí
precisaremos sair [de casa] às 19h30.”
Giovana Chanley acatou a mudança de
planos e chegou às cinco da tarde na casa de Gal. Encontrou-a sentada na mesa
da cozinha, tomando uma xícara do café que ela mesma havia feito. Assim que o
maquiador Everson Rocha chegou, Gal começou a se preparar para o show, enquanto
conversava com ele sobre a personagem Juma Marruá e a atuação de Marcos
Palmeira em Pantanal. Sempre que encontrava a assistente e o maquiador,
Gal falava sobre a novela, da qual não perdia nenhum capítulo.
À noite, um motorista foi buscá-la. A
cantora ainda estava no quarto, irritada porque não conseguia encaixar o brinco
em uma das orelhas. Ela gostava de pentear o próprio cabelo, passar o batom e
colocar sozinha os acessórios. “Quer
saber, vou sem brinco mesmo”, disse, impaciente, à assistente pessoal.
Chanley ofereceu ajuda e, pela primeira vez em sete anos de parceria, Gal
aceitou. Às 19h30, a cantora entrou no carro e partiu rumo ao Coala Festival
2022, no Memorial da América Latina, a cerca de 25 minutos de sua casa.
Rubel e Tim Bernardes, artistas da
nova geração de músicos brasileiros, foram convidados a participar da
apresentação daquela noite. Gal, assim que chegou, foi ao camarim
cumprimentá-los e fazer algumas fotos. O encontro não durou mais que dez
minutos, e logo os dois músicos seguiram para o aquecimento do show. Gal ficou
retocando o batom. Diante do espelho, ela curvou a cabeça para frente, de modo
que pudesse olhar o próprio cabelo, e o penteou a partir da nuca em direção à
ponta dos fios. Encarou seu reflexo e depois se dirigiu até o produtor técnico
Lirinha Morini, que esperava na porta, com uma lanterna, para guiá-la até o
palco.
Gal apareceu com os olhos destacados,
uma sombra preta esfumada nas pálpebras, a boca pintada de um vermelho matador,
os cabelos fartos emoldurando o rosto. Cumprimentou os instrumentistas com o ar
divertido de sempre e dirigiu-se à ponta do palco. Abaixou para tocar o chão do
tablado e ergueu-se de olhos fechados, sussurrando algumas palavras com as mãos
estendidas para o céu.
Do outro lado da cortina, uma
multidão formada em sua maioria por fãs de 20 e poucos anos a aguardava. Havia
pelo menos cincos anos que Gal vinha atraindo as novas gerações para os shows.
Sua presença era esperada nos principais festivais de música do país e, em
2022, ela participou de cinco eventos desse tipo, sempre cantando para plateias
dominadas por jovens. O produtor Marcus Preto conta que Gal até se assustou
quando, em janeiro de 2019, fez um show em Portugal para um público mais velho.
“Eu olhava para a plateia e só tinha aquelas cabecinhas brancas. Achei
hilário”, ela disse na ocasião, aos risos.
Gal abriu o show no Coala Festival às
20h30, cantando Fé Cega, Faca Amolada, de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento.
No curso de uma hora e vinte minutos, passeou por clássicos de seu repertório,
como Divino Maravilhoso, Tigresa e Baby. De vez em quando,
afastava o microfone da boca e encarava o público, sorrindo, e então dizia
coisas do tipo: “Tá lindo!”
O show chegou ao ápice quando luzes
vermelhas foram acesas e Tim Bernardes dedilhou a guitarra, fazendo soar os
primeiros acordes de Vapor Barato. Gal se pôs a desafiar a potência do
instrumento eletrônico com as cordas vocais, da mesma maneira que fazia aos 26
anos. Na metade da canção, os músicos se entreolharam, eufóricos, aumentando a
frequência dos acordes. Gal acompanhou, entoando cada vez mais alto o verso Oh
minha honey baby. Ela estava em seu melhor estado. A plateia foi ao
delírio. Quando a música chegou ao fim, Gal disse, como se não tivesse ela
mesma dado um espetáculo: “Bonita a guitarra do Tim, né?”
As pessoas nos bastidores ficaram com
a impressão de que Gal estava em êxtase. Ela saiu do palco de braços abertos em
direção a Preto e Chanley, que se lembram de ter chorado muito durante o show.
Quando os alcançou, a cantora comemorou o bom desempenho das cordas vocais:
“Cantei pra caralho! Acho que é porque estou cuidando do meu pulmão.” Os
músicos da banda correram para o camarim e brindaram com um vinho, o que não
era de costume. Eles também sentiram uma emoção diferente naquela noite. “Foi
um show inspirado”, diz Tim Bernardes. “Saiu todo mundo impactado.”
Cerca de uma hora depois, Gal voltou
de carro para casa. Chegando lá, subiu para o quarto, no segundo andar, para
vestir uma camisola e calçar os chinelos. O filho, Gabriel, estava dormindo.
Ela se sentou no sofá da sala ao lado de Wilma Teodoro Petrillo, sua
companheira e sócia, e começou a contar como aquela noite fora divertida,
enquanto degustava um sashimi de salmão e uma taça de suco de uva.
Quatro dias antes, na terça-feira, 13
de setembro, Gal tinha se internado no Hospital Israelita Albert Einstein, em
São Paulo, para retirar um nódulo da fossa nasal direita, que havia algum tempo
lhe causava um pequeno incômodo, semelhante ao de uma espinha. A cirurgia,
porém, não aconteceu, porque os médicos identificaram que a saturação da
cantora estava baixa. Ela ficou internada por três dias, recebendo tratamentos
para melhorar o funcionamento do pulmão.
Durante esse período, sua equipe
ficou sem saber se ela faria o show no festival Coala. Um grupo restrito, de
menos de dez pessoas, sabia o que estava acontecendo com Gal, que era muito
reservada com certos assuntos pessoais.
Enquanto isso, os músicos realizaram
dois ensaios: um na quinta-feira, dia 15, em um estúdio, e outro na manhã de
sexta-feira, no palco do próprio Coala. Rubel e Tim Bernardes estiveram nas
duas ocasiões. Os dois ficaram receosos quando souberam que Gal não poderia
ensaiar porque estava no hospital. “Deu uma coisa meio estranha na gente, do
tipo: ‘Caramba, será que tem alguma coisa séria?’”, lembra Bernardes. “Parece
que bateu a confirmação de que a Gal estava mais velha, uma preocupação com a
saúde dela. Mas o show foi quase a confirmação do contrário: Gal estava ótima.”
Os músicos só receberam a notícia de
que haveria o show na sexta-feira à noite, faltando 24 horas para subirem ao
palco. Como Gal teria que esperar algumas semanas para retirar o nódulo do
nariz, ela confirmou a apresentação. “Se Gal decidiu sair de casa para fazer um
show, é porque sabia que o que tinha não era grave”, diz Marcus Preto, que a
acompanhou nos últimos nove anos. “Ela jamais subiria num palco se soubesse que
algum problema de saúde ameaçava a sua vida.”
Gal retornou ao hospital na
quarta-feira, dia 21 de setembro. O tratamento para o pulmão dera certo, e ela
pôde realizar a cirurgia. Conforme a cantora relatou à empresária Kati de
Almeida Braga, sua amiga, o procedimento foi surpreendentemente tranquilo. A
equipe médica, contudo, recomendou que ela ficasse longe dos palcos por um
tempo, para ajudar na recuperação. Toda agenda de shows foi suspensa até o fim
do ano. Pelo WhatsApp, Gal começou a fabular com Almeida Braga uma data para
retomar a turnê antes do Réveillon – “para recomeçar logo, colocar a bola em
campo”, diz a empresária. “Gal tinha absoluta convicção de que voltaria em
breve.”
A cantora era conhecida entre os mais
íntimos como a pessoa que respondia mais rápido às mensagens de WhatsApp. Vivia
com o celular na mão, conversando com amigos e respondendo os comentários dos
fãs no Instagram. Depois da cirurgia, ela diminuiu a frequência das conversas
com Marcus Preto. Como era reservada com assuntos mais particulares, Preto não
chegou a estranhar o distanciamento. Na noite de 30 de outubro, Gal comemorou
com ele a vitória de Lula, enviando a mensagem: “Chupa Sergio Moro!!!!!”
Minutos depois, Preto mandou um recado avisando que a notícia que circulava
pela internet sobre a morte de Erasmo Carlos era falsa. Gal respondeu: “Graças
a Deus ele está aqui conosco!” Foi sua última mensagem para o produtor. Erasmo
Carlos morreu duas semanas depois de Gal, em 22 de novembro.
Giovana Chanley fez aniversário no
dia 1º de novembro e Gal foi a primeira pessoa a parabenizá-la. Pelo WhatsApp,
escreveu, às 2h04: “Parabéns!!! Muita saúde e paz pra você!!! Tudo de bom!!!
Beijos pelo seu dia.” Na sequência, enviou uma caricatura de Lula abraçando um
mapa do Brasil. De manhã, Chanley respondeu, agradecendo, e as duas não
voltaram a se falar.
Com Almeida Braga, Gal conversou pela
última vez na noite de 8 de novembro. Contou que mais cedo havia feito a
radioterapia prescrita por seu médico para inibir o nascimento de células que
pudessem resultar em outro nódulo. Disse que o procedimento não durara dez
minutos e que ela nem precisara tomar o remédio para enjoo. Confessou estar
louca para voltar a trabalhar e se disse feliz por ter comprado outra casa em
São Paulo, que passava por reformas.
Por volta das seis da manhã do dia 9,
quarta-feira, Maria da Graça Penna Burgos Costa teve um mal súbito e morreu em
casa. Um médico que a acompanhava e foi até lá atendê-la disse que ela pode ter
sofrido uma embolia pulmonar ou um infarto. Wilma Petrillo decidiu não realizar
a autópsia do corpo. Embora tenha vivido com Gal por 24 anos, a viúva não é bem
relacionada com os amigos, a família e os funcionários da cantora. Alguns
parentes reclamaram que o sepultamento tenha sido em São Paulo e não no Rio,
onde ela comprou um jazigo em 1995. A Piauí procurou Petrillo, mas ela
preferiu não se manifestar. Gal deixou um filho, Gabriel Costa Penna Burgos, de
17 anos, de quem dizia ter muito orgulho.
No início da tarde daquela
quarta-feira, a estudante universitária Sofia Gianfelice Mendes, de 20 anos,
saiu para comprar um maço de cigarros e deixou o celular em casa. Ao retornar,
encontrou ligações perdidas e um amontoado de mensagens de familiares e amigos.
Todos repetiam a notícia que fez Mendes desmoronar: Gal Costa, a sua cantora
favorita, tinha morrido.
Mendes ficou encarando as paredes da
cozinha de sua casa em Niterói. Depois, correu até o quintal e gritou para uma
amiga que mora ao lado: “Nana, a Gal morreu.” A vizinha tomava banho, mas
desligou o chuveiro: “O quê?” Mendes repetiu: “A Gal morreu.” Ao se ouvir
pronunciar essas palavras pela segunda vez, ela começou a chorar – e continuou
chorando durante horas.
Na madrugada da sexta-feira, dia 11,
a estudante embarcou sozinha num ônibus de Niterói a São Paulo para acompanhar
o velório da cantora. A cerimônia aberta ao público aconteceu no mesmo dia, na
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Mendes chegou lá às nove
da manhã. Um pequeno grupo aguardava os portões serem abertos. Os fãs mais
velhos levavam discos de vinis e cartazes, e a todo instante trocavam abraços
de consolação. Outro segmento de fãs, mais comedido, era formado por jovens da
faixa etária de Mendes. Alguns deles tinham os olhos avermelhados e a ponta do
nariz rosada de tanto chorar.
Gal não ficaria surpresa se soubesse
que tantos jovens largaram as aulas da faculdade, o trabalho ou o estágio para
comparecer ao velório. Marcus Preto conta que certa vez a cantora lhe disse, em
tom satisfeito: “Eu olho para a plateia e só tem aqueles rostinhos, eles ficam
chorando… Gente, essas pessoas nem eram nascidas quando eu lancei essas
músicas.” Seja por causa da colaboração com novos artistas, seja pela imagem de
moça despreocupadamente corajosa e subversiva, Gal desperta na juventude de
hoje um interesse equivalente ao que desencadeou na dos anos 1960 e 1970 – um
feito excepcional entre os veteranos da MPB.
“Me aproximei dela acho que na
adolescência, lá pelos 15 anos, quando desenvolvi uma loucura pelo disco Fa-Tal”,
conta Mendes. De olhos castanhos e sobrancelhas muito pretas, a moça tem o
cabelo cortado nos moldes que Gal usava na década de 1970. “A aparência de
imposição da Gal foi o que me pegou. O cabelo dela é muita coisa. Ela é muita
coisa. Sem falar na voz.”
A Alesp abriu os portões para o
velório às 9h19. Os fãs caminharam lentamente em direção ao salão onde estava o
corpo da cantora. Uma vez lá dentro, eles se aproximaram um a um do caixão,
sussurraram algumas preces e foram embora. Mendes encarou o corpo de Gal por
menos de um minuto e, em voz baixa, disse “Obrigada”, com os olhos
lacrimejando. Então retornou para a calçada, onde ficou por mais cinco horas à
espera de amigos que fez pela internet, em fã-clubes da cantora.
Ainda pela manhã, ela comprou um par
de rosas vermelhas para depositar perto do caixão, quando entrasse outra vez na
fila do velório. Antes disso, resolveu fumar um cigarro. Sentou-se debaixo de
uma árvore e ficou em silêncio por minutos, observando as pessoas chegarem para
a despedida. Depois, disse com a voz miúda: “Não tenho experiência com morte.
Nunca alguém próximo de mim morreu. Nem amigos, nem familiares. Essa sensação
de silêncio profundo é normal?”
A notícia chegou para o estudante de
letras Chico Mieli, de 20 anos, instantes após ele pensar em Gal. O rapaz
estava sozinho em um ponto de ônibus, escutando no fone a canção Begin the
Beguine, do norte-americano Cole Porter. “Enquanto escutava, fiquei
pensando na versão que a Gal gravou da música, naqueles agudos difíceis de
atingir, na precisão quase geométrica do canto dela”, diz Mieli. Quando foi
consultar o celular, viu a notícia da morte da cantora e ficou tão baratinado
que perdeu o ônibus para o trabalho. “Falando agora, parece uma grande
coincidência, mas é que eu não tirava a Gal da cabeça. Pensava muito nela, o
tempo todo.”
Na casa de Mieli há uma coleção de
discos de música brasileira. No início da adolescência, ele sentiu necessidade
de identificar, em meio a todo o repertório musical que seus pais lhe tinham
apresentado desde a infância, o que mais o interessava. E foi Gal Costa quem
fisgou a sua atenção. “Acho que me pegou por causa da figura de mulher linda,
com a voz superafinada. O jeito dela dançar no palco tinha algo de lúdico, ela
correndo de um lado para o outro: eu gostava muito disso quando era
criança.”
Mieli se afeiçoou primeiro ao disco Gal
Tropical, de 1979, mas desenvolveu laços mais fortes com as músicas do
início da carreira da baiana. “As coisas que ela fez há cinquenta anos ainda
têm muita atualidade, você não sente nenhum desgaste. O que é bom e ruim ao
mesmo tempo”, diz. “É ruim porque talvez a gente não tenha desenvolvido novas
fórmulas, e bom porque foram ideias muito bem executadas durante a sua
criação.”
Ele foi um dos primeiros a chegar
para a despedida de Gal Costa na Alesp, por volta de 8h30. Estava acompanhado
de Miguel Bivar, um amigo da USP. Os dois faltaram à aula para comparecer ao
velório. “Os agudos foram o que me atraiu na Gal”, diz Bivar, de 19 anos. “Me
lembro de ter escutado específicamente Nuvem Negra e gostar muito, até
que a Gal se tornou a minha cantora favorita. Gosto da tensão que ela dá para
as músicas e de como lida com a emoção dramática.” (Bivar, assim como os demais
fãs, se referem a Gal no presente: ela é, canta, faz.) Ele considera que a
cantora permaneceu interessante por várias gerações porque é uma “escola” para
outros intérpretes brasileiros. “A gente consegue reconhecer a influência do
estilo da Gal no canto da Marisa Monte, da Zizi Possi, de várias artistas que a
reivindicam como mestre. É fácil escutar as músicas antigas dela porque estão
próximas do que é produzido no Brasil hoje em dia.”
Bivar é estagiário em uma escola de
ensino fundamental no Centro de São Paulo. Estava acompanhando os alunos em um
sarau musical no começo da tarde do dia 9, quando uma das crianças disse:
“Tomara que cantem uma música da Gal Costa agora. Ela morreu.” Surpreendido, o
estudante de letras sentiu seu corpo arrepiar. Ele também tem mais afeição
pelas produções do início da carreira da cantora e pelos discos da década de
1990. Em 2021, comprou ingresso para um show apenas por desencargo de
consciência, para poder dizer que assistiu a Gal ao vivo, pelo menos uma vez na
vida. “Não estava dando nada pelo show, achava que a voz dela não era a mesma
coisa de antes”, recorda. “Mas a Gal deu um baile. Foi incrível.”
No princípio de 2020, a cantora
começaria a trabalhar em um disco com regravações de Milton Nascimento, mas as
medidas de isolamento social atrapalharam o plano. Quando a agenda cultural foi
retomada, no final de 2021, Marcus Preto sugeriu que Gal voltasse aos palcos
com um tributo ao cantor e compositor mineiro. Foi o que ela fez. Nos últimos
meses, viajou o Brasil com a turnê As Várias Pontas de uma Estrela,
cujo repertório tinha composições de Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim,
Cazuza e João Gilberto – seu ídolo maior –, mas era Milton o grande
homenageado. O show seria gravado ao vivo no Rio de Janeiro em 24 de setembro,
mas a agenda da cantora foi interrompida para que ela fizesse a cirurgia no
nariz. Ela planejava para o ano que vem um álbum de inéditas, para o qual Jards
Macalé já havia escrito uma canção.
Nenhuma Dor,
o último disco de Gal, foi gravado em 2021, durante a pandemia, em parceria com
artistas da nova geração. Surgiu do desejo da cantora de retribuir o carinho
que estava recebendo dos fãs mais novos. Preto se recorda que ela ficou
emocionada ao ver tantos jovens escutando, durante o isolamento social, os
discos dos músicos de sua época, um fenômeno que identificou no Instagram.
“Minha geração é foda, né? Eu acho que eles [os mais novos] estão
entendendo que precisam cuidar dos mais velhos, porque são os mais velhos que
estão morrendo”, ela disse a Preto.
O álbum de Gal que causa mais frisson
nos jovens de hoje é Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, de 1971. A cantora tinha
26 anos quando gravou o disco no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana. O AI–5 vigorava
no país, e os amigos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil viviam na
Europa havia três anos, num autoexílio forçado pela ditadura militar.
Praticamente isolada no Brasil, Gal se juntou ao produtor musical Paulinho
Silva e a Waly Salomão, responsável pela direção artística, para montar o novo
show. A estreia aconteceu em 8 de outubro de 1971. No dia 17 do mesmo mês, ela
gravou ao vivo o disco que viria a se tornar um monumento da contracultura
brasileira.
Poucos conseguiram assimilar o que
aconteceu no Teatro Tereza Rachel: uma verdadeira provocação ao ambiente
conservador e ao autoritarismo dominante no país. Gal surgia vestida de top e
saião, com a boca pintada de vermelho e a pele bronzeada depois de passar o dia
na Praia de Ipanema. No primeiro ato do show, se sentava numa banqueta para
soltar a voz com uma valentia que ainda não havia ousado, enquanto dedilhava o
violão. Na metade da música Vapor Barato, a banda entrava
discretamente em cena, e pelo resto da noite ajudava a cantora a arrancar suor
da plateia.
O show Fa-Tal seria
reconstruído no início de 2021, no mesmo teatro, mas o projeto acabou sendo
cancelado pelos contratantes. No final daquele ano, a produção do festival
espanhol Primavera Sound começou a planejar o seu primeiro evento no Brasil e
telefonou para Preto, perguntando se ele achava possível reunir Gal, Bethânia,
Caetano e Gil para um show de reencontro do grupo Doces Bárbaros. Preto conta
que Gal aceitou participar, mas, como a reunião acabou não ocorrendo por haver
conflito entre a agenda dos artistas e a data da apresentação, ele propôs ao
festival recriar o show Fa-Tal. A equipe do Primavera Sound gostou da
proposta, e Gal também.
Quatro dias depois de acertar os
trâmites da apresentação, a cantora recuou e pediu que ela fosse cancelada.
Disse a Preto que “não tinha mais aquele corpo, aquela voz” dos 26 anos. Ele
argumentou: “Mas, Gal, ninguém disse que você, cinquenta anos depois, é a
mesma. É tudo diferente. Você não vai imitar aquilo, vai refazer.” Por fim, Gal
se convenceu de que reapresentar o Fa-Tal poderia ser bom. A ordem do
repertório original seria mantida, e o show sofreria pequenos ajustes. Os
ensaios começariam na semana anterior à apresentação, marcada para o dia 5 de
novembro. Ninguém contava que Gal precisaria fazer a cirurgia no nariz. “Para
nós, que somos fãs da era de ouro da música, aquela dos anos 1970, parecia um
sonho reconstruir o Fa-Tal”, diz Vitor Cabral, baterista da banda de
Gal. “E agora parece uma daquelas frustrações de criança, com a qual a gente
vai precisar de muito tempo para aprender a lidar.”
Em Feira de Santana, na Bahia, o
editor de vídeos Rodrigo Xavier, de 23 anos, vibrou com a notícia da
reapresentação do show de 1971. Comprou os ingressos do Primavera Sound e as
passagens aéreas para assistir à apresentação em São Paulo. Quando soube do
cancelamento de Gal, ficou arrasado, mas decidiu ir ao festival mesmo assim,
para ver os shows dos artistas internacionais. O evento terminou em 6 de
novembro, domingo, e ela morreu três dias depois. Como ainda estava em São
Paulo, Xavier foi à Alesp se despedir da cantora.
“Conheci Gal por um vídeo que
viralizou, ela duelando com a guitarra em uma apresentação de Meu Nome É Gal.
Aquilo foi uma das coisas mais incríveis que eu vi”, diz Xavier. O vídeo foi
gravado em 1981. Gal, vestindo plumas cor-de-rosa, desafia com a própria voz a
guitarra do músico Victor Biglione. “Eu a vejo como a primeira artista pop do
Brasil. Gal apresenta em sua voz um canto moderno, com um pouco das raízes de
cantores brasileiros como João Gilberto, e ao mesmo tempo traz um progresso. Se
você pegar o álbum Recanto, de 2011, vê a Gal experimentando a
música eletrônica ao lado de Caetano. E ela já tinha 66 anos de idade.”
Próximo das onze da manhã, a estudante
Sofia Mendes decidiu entrar de novo no velório, agora levando o par de rosas
vermelhas ao caixão de Gal. Dessa vez, não chorou. Observou de longe o corpo da
cantora, sacudiu a cabeça e disse: “Não parece verdade.”
Quando tinha 18 anos, a jovem começou
a construir um acervo fotobiográfico de Gal Costa nas redes sociais. Às vezes
passa horas, dias procurando o contexto e os créditos de uma imagem antiga da cantora,
e só então a publica no Twitter e no Instagram. Foi a maneira que encontrou de
ajudar na preservação da memória da tropicalista. Estudante do quarto período
da faculdade de produção cultural, ela está decidida a elaborar um trabalho de
conclusão de curso sobre “a resistência estética, política e comportamental de
Gal Costa no Brasil ditatorial de 1971”.
Ao retornar à entrada da Alesp, ela
encontrou quatro amigos também apaixonados por Gal. Todos eles são de São Paulo
e integram fã-clubes da cantora. Débora Baptista, de 28 anos, criou um projeto
digital de divulgação da obra de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e
Maria Bethânia. O “Portal Doces Bárbaros” tem hoje mais de
100 mil seguidores no Instagram. “Gal foi a primeira”,
ela diz. “Antes de escutá-la, eu nem sabia o
que era ser mulher. Meu espírito de juventude,
de revolução, foi tudo pautado por ela. É muito louco pensar que depois daqui
não tem mais Gal.”
Baptista soube da morte da cantora
por amigos, que, “com muita cautela”, telefonaram para dar a notícia. Algo
similar ocorreu aos outros jovens com os quais a Piauí conversou no
velório: quando a cantora morreu, foi neles que os amigos e os familiares
pensaram imediatamente. Ser fã de Gal Costa é um traço definidor de suas
personalidades, algo pelo que são conhecidos e lembrados.
Depois de escutar a amiga refletir
sobre a conexão com a música de Gal, Mendes compartilhou as lembranças do dia
em que foi a São Paulo para assisti-la no Coala Festival. Baptista também
estava no show. As duas ficaram desfiando recordações na calçada da Alesp,
intercalando lágrimas e sorrisos.
Então o silêncio acabou pesando e
nenhuma das duas sabia mais o que falar. Até que Mendes, num rompante,
anunciou:
– Quando eu tiver uma filha, vou dar
a ela o nome Gal.
Baptista a encarou com um sorriso
meio de lado. E Mendes prosseguiu:
– Gal, Gal, Gal. É um nome legal.
As duas se entreolharam, arregalando
os olhos e abrindo um sorriso, e disseram em uníssono:
– Gal é legal!
2023
Revista piauí
Edição 196
Janeiro 2023
A carta de Arthur Nestrovski
A revista piauí deste mês traz uma carta minha, sobre a foto invertida de Gal Costa, no número de dezembro. Por motivos de espaço, a carta saiu bem reduzida. Aqui vai o texto na íntegra:
"Queridos amigos da Iauip,
Abri a revista de dezembro de trás para a frente, como muitas vezes faço, seguindo um atávico hábito hebraico. E logo levei um choque: uma foto de página inteira (p. 87) de Gal tocando o violão com as mãos trocadas. Quer dizer: a mão esquerda dedilhando as cordas, a direita fazendo um acorde de Fá maior no braço do instrumento (pestana na primeira casa).
Como sabem leitores e autores, esta revista tem apreço especial pela checagem dos fatos. Jamais publicaria uma foto de Rafael Nadal segurando a raquete na mão direita, ou Federer na esquerda. Jamais deixaria passar uma imagem de Rivellino batendo falta com a perna direita. Ou da mão direita do nosso presidente com um dedo a menos.
Por algum insondável motivo, é comum se deparar com fotos invertidas de músicos – violonistas, violinistas, violoncelistas, até flautistas. Eu mesmo já fui vítima disso. Tive a tentação de entrar no palco com um violão encordoado ao contrário e as mãos trocadas, honrando a divulgação do evento. Vira e mexe, se vê uma foto de violinistas com o arco na mão esquerda. Se não for Nicola Benedetti, está errado. Maestros com a batuta na canhota também são raros. (Paavo Berglund era um.)
O motivo das fotos trocadas quase sempre é gráfico. A foto invertida parece melhor, para o designer. Mas francamente, pessoal, isso não serve de justificativa. Ainda mais numa foto histórica, como essa, Gal em 1979. Para piorar, o baixista e o guitarrista, atrás dela, também viraram canhotos. Seria a raridade das raridades: um trio de canhotos!
Enfim, além de falso, é muito desconfortável ver o
mundo invertido, desse jeito. Esse negócio de esquerda e direita tem de ser
levado a sério, fotograficamente falando. Ossi siam maçaf oãn rovaf rop!"
A foto de Thereza Eugênia "desinvertida" |
Gal Costa: REAL causa da morte da cantora vem à tona
02 dezembro 2022
Matheus Queiroz
As últimas horas de vida de Gal Costa foram relatadas em uma reportagem publicada pela Revista Piauí.
Consagrada como a maior cantora do Brasil, Gal Costa morreu de forma inesperada aos 77 anos no dia 9 de novembro. A causa do óbito da cantora foi revelada pela Revista Piauí, em uma reportagem publicada nesta sexta-feira (02/12).
De acordo com a matéria, Gal morreu após ter um mal súbito em casa. O falecimento da artista aconteceu por volta das seis horas da manhã. A artista deixou a esposa, Wilma Petrillo, e um filho, Gabriel, de 17 anos.
GAL COSTA REALIZOU RADIOTERAPIA HORAS ANTES DE
MORRER
Segundo o jornalista Thallys Braga, um dia antes de morrer, Gal relatou a uma amiga que realizou uma radioterapia com o objetivo de inibir o surgimento de células que pudessem causar outro nódulo (em setembro, ela fez uma cirurgia para a retirada de um nódulo do nariz). O procedimento durou menos de 10 minutos e ela o fez sem necessidade de remédios para enjoo.
Ainda de acordo com informações do jornalista da Piauí, Gal também contou a esta amiga que estava "louca para voltar a trabalhar" e celebrou a compra de uma nova casa em São Paulo.
Esse procedimento afastou Gal dos palcos nos
últimos meses de vida e a fez cancelar a tão aguardada apresentação no festival
Primavera Sound, que teria acontecido quatro dias antes da morte da cantora. Na ativa e rodando o Brasil com a turnê
"As várias pontas de uma estrela", ela já tinha apresentações
agendadas para 2023.
1. Gal Costa morreu de forma inesperada no dia 9 de novembro |
2. Gal Costa morreu após ter um mal súbito. Informação foi revelada pela Revista Piauí em reportagem publicada nesta sexta-feira (02/12) |
3. Gal Costa morreu em casa por volta das 6h da manhã do dia 9 de novembro de 2022 |
4. Gal Costa realizou uma radioterapia um dia antes de morrer, segundo o jornalista Thallys Braga, da Piauí |
5. Gal Costa fez radioterapia com o objetivo de inibir o surgimento de células que pudessem causar outro nódulo |
6. Em setembro, Gal Costa fez uma cirurgia para a retirada de um nódulo do nariz |
7. Gal Costa estava 'louca para voltar a trabalhar', segundo jornalista da Revista Piauí |
8. Gal Costa morreu aos 77 anos |
9. Gal Costa deixou a esposa, Wilma Petrillo, e um filho, Gabriel, de 17 anos |
10. Gal Costa foi consagrada como a maior cantora do Brasil |
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