martes, 20 de septiembre de 2022

1975 - JULIO CORTÁZAR no BRASIL

 

Julio Cortázar [Ixelles, Bélgica, 26/8/1914 – Paris, 12/2/1984]. Escritor, tradutor e intelectual argentino.



































Jornal da Tarde
26/04/75


Marcos Faerman (Rio Pardo, 5 de abril de 1943 - São Paulo, 12 de fevereiro de 1999) foi jornalista, repórter, editor, administrador cultural e professor. 





El periodista Marcos Faerman vio a Cortázar en el aeropuerto, antes de que el escritor tomara su avión y volviera a París. El fotógrafo Antônio Lúcio tomó entonces dos fotos suyas, sentado leyendo un libro. Faerman lo retrató así: 

Allí estaba uno de los mayores escritores de América Latina, solo, muy alto (más de dos metros), gafas de sol. Me pareció que estaba tranquilo, leyendo un libro de Octavio Paz, el gran poeta y ensayista mexicano —distraído, como si no estuviera en un aeropuerto—. Cuando vi cómo cerraba las páginas del libro y empezaba a pasear, no pude dejar de pensar que estaba un poco triste, pero las personas que viajan solas siempre parecen un poco tristes. Era el hombre más alto del aeropuerto, el rostro oculto tras las gafas de sol, las mismas cejas gruesas, muy suyas, un estilo de barba que parece ser la marca exclusiva del señor Julio Cortázar. Caminaba con elegancia, pero al mismo tiempo con la fuerza de un pugilista. Tiene las manos de un buen peso pesado […] (26/4/1975, O Estado de S. Paulo) 

En la noche anterior, Julio asistió al concierto de Maria Bethânia en el Tuca, y después del espectáculo, tomando un cóctel de limón en el Cristal había expuesto a Marcos Faerman, además de otros asuntos, su teoría según la cual Bethânia y Caetano eran la misma persona. 

Curiosamente, parece que la Mãe Menininha del Gantois también consideraba que estaban unidos.





CORTÁZAR 

Por Marcos Faerman 

Texto publicado no Jornal da Tarde em 26/04/75 


Uma espécie do aplauso silencioso no aeroporto de Congonhas. Dona Hebe Camargo, dama da TV nacional, acaba de chegar. As senhoras e senhores deixam, por instantes, suas malas e seus complicados papéis, e voltam-se para a entrevistadora. Há uma espécie de alegria coletiva naquele momento, e por duas razões:  

1 — Ela é tão simpática pessoalmente como na TV, não é?   

2 — É muito, muito bom, a gente viajar com uma personalidade. Parece até que a viagem fica mais importante.  

Num canto da ala internacional, outra pessoa prepara-se para embarcar no ônibus que levará todo o grupo de Congonhas a Viracopos, onde tomará o avião da Air-France que em 11 horas o deixará em Paris: Júlio Cortázar.  

Ali estava um dos maiores escritores da América Latina, sozinho, muito alto (mais de dois metros), óculos escuros. Ele me parecia tranquilo, lendo um livro de seu amigo Octávio Paz, o grande poeta e ensaísta mexicano — distraído, como se não estivesse num aeroporto. Num momento em que fechou as páginas do livro, e começou a passear, não podia deixar de achar que ele estava um pouco triste, mas as pessoas que viajam sozinhas sempre parecem um pouco tristes. Era o homem mais alto do aeroporto, a cara oculta por óculos escuros, as mesmas sobrancelhas grossas, muito suas, um estilo de barba que parece ter a marca exclusiva do senhor Júlio Cortázar. Caminhava com elegância mas ao mesmo tempo com a força de um pugilista, ligeiramente desajeitado, se é que dá para dizer assim. Ele tem as mãos de um bom peso-pesado e essa não é sua única ligação com o boxe ele é um destes tipos que gostam de lembrar certas lutas, certos combates; não os chamados combates do século, muito comerciais, mas a história de pugilistas desconhecidos, como um certo Torito, lutador argentino de muitos anos atrás, sobre o qual escreveu certa vez uma história realmente bela.

Na noite anterior, depois de assistir ao show de Maria Bethânia, no TUCA, entre alguns tragos de limãozinho, coisa que muito aprecia — frisando sempre que o limão brasileiro tem um saborzinho diferente de qualquer outro limão e que bem que ele gostaria de ter em seu apartamento de Paris, sempre, um pouco do nosso limão para botar na cachaça (ele tem um bom estoque de cachaças) — , Cortázar me disse alguma coisa a respeito desta história, Torito. 

Ele fala com um espanhol estranho, digno de um argentino que vive há muitos anos (24) na França, mas que faz questão de ser cada vez mais portenho. Talvez isto pareça uma contradição, mas Cortázar não tem medo de ser contraditório. Então, neste espanhol estranho, ele começa a me dizer que a história de Torito é verdadeira, sim, existiu aquele pugilista argentino que chegou a ter muito prestígio pelo mundo afora, que andou pelos Estados Unidos, coisa assim, e que um dia, como quase todo pugilista começou a perder, e caiu em desgraça, deixando de ter as fotografias na revista de esportes El Grafico, e tudo o mais. E que este pugilista começou a viver infelicidades com sua mulher, coisa que este homem delicado com quem estou só sugere de quando em quando, em sua história. Um dia chegaram a Cortázar e lhe pediram que gravasse um disco, um destes discos em que os escritores dizem coisas para seus leitores saberem como é a voz do escritor, como é que ele sente cada palavra, cada frase, e Cortázar escolheu exatamente a história do Torito. 

Ele fica muito espantado quando lhe digo que tenho tal peça. Edição reduzida, nem sabe bem o que diz na introdução da história do pobre e do grande Torito. Como é que ia lembrar se teve de tomar uns nove uísques, che? Uns nove uisques, para ter coragem de chegar ali numa sala vazia de seu apartamento de Paris, botar o gravador na frente e começar a ler o seu conto? 

Muito assustado, estava eu falando com Cortázar. Era assim como estar na frente de Daniel Defoe, do Robert Louis Stenvenson, de John dos Passos ou de Hemingway. Mas isso foi coisa de uns poucos momentos. E já estávamos falando sobre o show de Bethânia a que ele tinha assistido alguns momentos antes. Cortázar chegou cedo, sentou na fila H do TUCA. Usava umas alpercatas de couro marrom, um casaco xadrez em tons azuis e cinzas com fundo branco e uma calça que tinha um jeitão muito antigo, subindo alguns dedos acima da cintura. Só faltava um relógio cebolão daqueles de corrente para Cortázar, com aquela calça, parecer um senhor que a gente vê nas fotografias de uns 20 ou 30 anos atrás. Um rapaz que sentava numa fila próxima cochichou qualquer coisa ao ouvido da namorada. Parecia que estava reconhecendo aquele tipo ali, quem seria mesmo? Não chegaram a nenhum acordo. A primeira parte do Show de Bethânia foi aplaudida por Cortázar polidamente. No intervalo do espetáculo, ele comentou que o som do conjunto que acompanhava Bethânia estava excessivamente alto, e que não seria má ideia sentarmos mais ao fundo do teatro. Uma pequena reclamação: no mundo inteiro está cada vez mais difícil ouvir um espetáculo de música, porque o público está exigindo cada vez mais barulho. 

Voltou. Sentou numa das últimas filas. Bethânia? Uma mulher interessante, aquela cara forte de que todo mundo fala, mas por que a direção do espetáculo não alterou músicas em que ela grita, canta com mais vigor, e outras em que ela pudesse mostrar toda a sua capacidade de dizer as coisas, de mansinho, como naquela hora em que cantou "Luzes da Ribalta”? Para dizer a verdade, é desta Bethânia aí que Cortázar mais gosta. 

Saiu do teatro do mesmo jeito que tinha chegado — sem que uma pessoa sequer parasse e perguntasse: o senhor não é o Júlio Cortázar? Isto, apesar de muitos de seus livros terem feito boa carreira no Brasil, de muitos jornais terem publicado suas histórias, seus contos: de muita gente ter visto filmes baseados em suas fantasias. Aí ele começa a falar, não como qualquer um de nós, mas como Júlio Cortázar, o inventor; já não diz apenas que Bethânia é uma ótima cantora, e que tem discos seus, e do Gil e da Gal — “que linda chica" — e que assiste a todos os espetáculos de música brasileira em Paris (o Gil, o Caetano). E até que em 71 ele teve um papo com o Caetano Veloso, depois de um show na Mutualité, em Paris; foi o último show de Caetano em Paris, e Cortázar gostou demais do que tinha acontecido. Saíram juntos. Cortázar deu um grande abraço em Caetano. E lançou uma idéia: 

— Que tal se a gente trabalhasse junto? Todo mundo sabe. Terminaram não trabalhando juntos. Caetano voltou para cá. Cortázar lá, aquela coisa toda. Mas aí, depois do show da Bethània, Cortázar, grandalhão, começa a pensar algumas coisas. Põe a mão na cabeça, pára um pouquinho e diz que acaba de pensar uma "teoria a respeito de Caetano e Bethânia". 

— Que teoria? — É que eu acho que eles são uma mesma pessoa. — Como? — Ora, Bethânia é Caetano e Caetano é Bethânia. 

— Sim... 

— Eles são iguais meu caro, absolutamente iguais. E há alguma prova de que eles não sejam a mesma pessoa? Eles já foram vistos juntos alguma vez em algum espetáculo? Responda: isto é importantíssimo! 

— Sim, já foram vistos. 

— Mas aí está: para mim eles não estavam juntos... Não poderiam... Eles são um... Isto deve ter sido truque de algum desses habilidosos diretores; sabe, estes jogos de espelhos que usam nos parques, coisas assim. 

Aí ele começa a falar dos cabelos de Bethânia. Está interessado nos cabelos de Bethânia. "Peruca? Peruca ou não? Mas são lindos”. 

Passou a manhã de ontem comprando discos. Do Chico Buarque, ele gosta muito de "Construção". Jorge Ben não conhecia, agora comprou o álbum duplo Ben-Gil. Acompanha música. Vai a tudo que é show em Paris, embora ache que os shows de música às vezes exigem demais do público — ele sai meio aplastado dos espetáculos, encantado e fatigado. Mas não é o tipo de cansaço que sente no cinema. O cinema cansa seus olhos (ele usa óculos, lê sempre de óculos, cinema também com óculos). Mas isto é de se estranhar, se este homem de idade indefinível tem 61 anos? 

— Você não tem idade, Cortázar, lhe diz um amigo. 

— Ah, não? Olha, também tenho minhas teorias a respeito. 

Mas não diz que teorias são estas. 

Depois de se ouvir duas horas de Bethânia é difícil falar de outra coisa além de música. Cortázar vai bebendo sua caipirinha (estamos no Cristal, um bar que fica ali perto do TUCA ) e dizendo que gosta muito de um argentino, o Eduardo Falu: que o espanhol Paco Ibañes — ídolo dos emigrados espanhóis de Paris — o agrada, mas que é muito monocorde. As canções são muito repetitivas, não no conteúdo, mas na forma). E que Paco é bem melhor cantando música de outros compositores. Já Violeta Parra, a chilena, folclorista que morreu há alguns anos, é dessas artistas perfeitas, pelo que diz e pelo jeito como diz. Assim como outro chileno, Victor Jara. E falando em chilenos ele chega ao "Quilapayum", um quinteto de muita fama na América hispânica — conheecido por brasileiros que costumam ir à Argentina, ao Uruguai, ao Peru, ao México ou a qualquer dos outros países do Continente — e diz que é muito amigo destes rapazes. Bons rapazes com quem costuma almoçar, jantar, bater papo. 

Ele fala com muita tranquilidade, sem frases de efeito, sem malabarismo, como se reservasse a invenção para a hora em que se encontra com a máquina de escrever. Só faz ironias quando eu lhe pergunto por tudo aquilo que se disse na Argentina de uma de suas últimas obras (o último romance), El Libro de Manoel, que foi acusado de "estar fora da realidade do país". 

— Olha, disseram muita coisa a respeito do meu livro, porque muita gente confunde política com literatura e literatura com inveja. 

Outra coisa que irrita Cortázar é a história de que a literatura latino-americana conquistou o mercado europeu através de uma espécie de complô, o chamado boom. Há pouco tempo ele escreveu a este respeito para a revista Crisis, de Buenos Aires, dizendo que o boom da literatura latino-americana vai muito bem. 

— "Olha", dizia ele, "não publiquem isto, mas no mínimo de três em três meses nos reunimos em hotéis ultra-luxuosos, escolhendo cada vez uma cidade diferente para organizar nossas orgias sem chamar muito a atenção. Garcia Marquez, Fuentes, Vargas Llosa, Asturias, Carpentier, discutimos a situação com nosso gerente geral que nos foi recomendado pelo próprio Lucky Luciano, com o apoio de outros big-shots. — Nossas atividades estão dando um rendimento satisfatório, compramos terras, poços de petróleo..." 

Mas, deixando à parte os poços de petróleo imaginários, e os complôs dos grande escritores latino-americanos, que muito divertem e irritam Cortázar, ele começa a falar sobre uma das coisas que mais o agradam: fotografar. Um dos seus livros, lançado no Brasil com o título de Prosa do Observatório, é todo ilustrado com fotos suas. 

— Eu estive num observatório e fiquei fascinado com suas máquinas, com as escadarias de bronze, de mármore, tudo aquilo tão maravilhoso, e aqueles turistas fazendo aquelas fotos de turistas. Aí eu comecei a trabalhar as escadarias, os ângulos inesperados: são fotos que me agradam muito mesmo. Muito melhores do que as que fiz para aquele meu outro livro, O Último Round, onde são de minha autoria as fotos de meu gato (o Theodoro Adorno) e de alguns amigos. São umas fotos simples, bobinhas. 

É impossível se conversar algum tempo com Cortázar sem que apareça a figura de um de seus mais "queridos e loucos amigos": Gabriel Garcia Marquez. As histórias que ele conta de Garcia Marquez são divertidíssímas. O "louco" do Garcia Marquez adora inventar biografias para confundir os pobres jornalistas que vivem correndo atrás de um escritor latino-americano que conseguiu vender, com o seu Cem Anos de Solidão, mais de um milhão de exemplares. Inventa biografias estranhas, contraditórias, dá muitas versões dos mesmos fatos, e depois se diverte contando tudo isto aos seus amigos. 

Uma vez, diz Cortázar, ele recebeu a resposta dos jornalistas. Garcia Marquez tem horror de aviões. Um medo espantoso. Então; um dia desses, está ele embarcando num avião, em Paris, e se aproxima um repórter. 

— Senhor Garcia Marquez, eu sei que os aviões hoje em dia são muito seguros, muito mesmo; os aviões foram aperfeiçoados... mas vamos que o motor falhe, qualquer coisa assim, e o seu avião, bem… bem... e o seu avião caia. Quais seriam então suas últimas palavras, senhor Garcia Marquez? 

— Olha, minhas últimas palavras seriam: vá... 

E o repórter foi embora.Sem poder publicar o palavrão que ouviu. 

Cortázar contou esta história, deu uma boa gargalhada e foi para casa. Era sua última noite no Brasil. Ele passou aqui oito dias; seis deles em Campos de Jordão, com a mãe, uma senhora de 83 anos, que ele vê de vez em quando na América do Sul. Eles marcaram um encontro nesta estação de repouso porque lhes pareceu uma boa maneira de passarem alguns dias juntos, sem toda o cerco que Cortázar sofre cada vez que vai à Argentina; milhões de entrevistas, discussões, debates sobre "a realidade do pais", sobre "o realismo fantástico", sobre política e arte. Depois ele ficou dois dias em São Paulo batendo papo com amigos, recolhendo alguns direitos autorais. Que diabo, ele é apenas um homem que vive dos livros que escreve e, embora quase todos tenham feito sucesso, sua vida é tão modesta como pode ser a vida de um escritor. Na manhã de ontem, passeou um pouco por São Paulo, comprou seus discos e preparou-se para sua anônima volta a Paris. 

Exatamente às oito e quinze da noite no aeroporto de Viracopos, um homem sozinho subia as escadas do avião da Air France, 094, sob a confiança do comandante Vayssi Gren.























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