“Este show acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de um show inacabado porque lhe falta resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo um dia me dê. É um show em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para todos nós.”
Estreno: 9/8/1984
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Músicas compostas com o maior prazer
Para Caetano não foi difícil criar, tendo em vista que a música deveria se inserir dentro do espírito da literatura de Clarice. Afinal, até "A Paixão segundo G. H.", ele foi leitor assíduo e entusiasmado da escritora. Depois, o entusiamo se arrefeceu, ele passou a se interessar por outros autores. Assim, "A Hora da Estrela" foi um dos livros de Clarice que Caetano não leu. Conheceu-o através dos comentários de Bethânia e da sinopse que Naum fez.
"Escrever igual Clarice, manter a linguagem dela não foi uma preocupação", diz Caetano. "Eu me preocupei em criar em cima do que Bethânia e Naum me pediram. Como, durante anos eu li e reli Clarice Lispector, acho que o resultado do trabalho - que às vezes, foi feito em conjunto com Waly Salomão - foi satisfatório. Gosto muito ainda de seus primeiros livros e numa das músicas presto uma homenagem ao próprio nome dela e à literatura brasileira. Foi um trabalho que fiz com o maior prazer"
(Folha de S. Paulo, 5/8/1984)
Estreno: 9 de agosto de 1984
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Folha de S. Paulo
Domingo, 5 de agosto de 1984
Bethânia ama os livros de Clarice, agora ela quer fazer a escritora falar atraves de seu show.
No show, a estrela é Clarice Lispector
Isa Cambará
A primeira vez que Maria Bethânia leu Clarice Lispector tinha quinze anos. "Legião estrangeira", conto de Clarice, publicado na extinta revista "Senhor" - da qual o mano Caetano era leitor assíduo - deixou a então adolescente Bethânia enlouquecida. A partir daí nunca mais deixou de ler Clarice Lispector e em 67 tornou pública a paixão por sua literatura quando leu um texto dela no espetáculo "Comigo me desavim".
Desde então os textos de Clarice Lispector estiveram sempre presentes nos shows de Bethânia. Através de Fauzi Arap - que dirigiu vários espetáculos da cantora - , as duas se conheceram e em 76, Clarice deu um texto inédito para Bethânia dizer em "Pássaro Proibido". Era o embrião do que viria a ser "A Hora da Estrela", ultimo romance de Clarice. Agora o livro chega ao palco: "A Hora da Estrela" é também o nome do show que Maria Bethânia estréia quinta feira próxima no Canecão, no Rio.
Roteirizado por Naum Alves de Souza - que além de dirigir o show é autor também dos figurinos e cenários - "A Hora da Estrela" não é apenas uma condensação da história de Macabéa, a nordestina "inócua, de viver ralo" solta no Rio, mas, principalmente uma homenagem de Maria Bethânia à Clarice Lispector.
"Na verdade, é mais que um homenagem, mas uma declaração de amor. É um espetáculo para fazer Clarice feliz; ela era inteiramente ligada à música. Daí eu ter me preocupado em pedir a Caetano e a Chico Buarque, por exemplo, para fazerem canções especiais para o show", diz a cantora.
Bethânia colaborou no roteiro do espetáculo, principalmente na parte musical, pois ela e Naum tiveram o cuidado de escolher composições que se encaixassem no clima do livro. Ela não fala muito sobre as canções escolhidas, prefere que a apresentação seja uma surpresa, mas diz que "entrou de tudo; do maxixe à Hollywood". Além das inéditas - o que inclui composições de Toninho Horta (também diretor musical do espetáculo) e Waly Salomão - tem músicas de Milton Nascimento, Gonzagão e apenas duas do disco mais recente da cantora, "Ciclo".
Uma das razões que levaram Naum Alves de Souza a se interessar pelo espetáculo foi exatamente o fato de o show não ter sido pautado em cima de um disco, "ou seja de não ter a exigência de colocar tais e tais músicas no roteiro". Esse é o primeiro trabalho de Naum com Bethânia. Para ela, nada melhor do que o desafio de trabalhar com uma pessoa que nunca a tinha dirigido.
Há anos ela pensava no show, mas no ano passado, quando ouviu "A linho e o linha" de Gilberto Gil, sentiu na música o clima do texto. E alguns meses depois, decidindo-se pela montagem e convidou Naum Alves de Souza para um trabalho conjunto. Para ele, "foi difícil trabalhar com um material tão bom".
"O primeiro roteiro que fiz era enorme, uma verdadeira Bíblia. Depois, com Bethânia, fui cortando, até chegar ao essencial. Porém é bom esclarecer que não se trata de um espetáculo teatral, mas de música com um pouco de narrativa e um pouco de diálogo. A música continua a linguagem de Clarice Lispector, embora mantendo o espírito dos compositores".
Naum diz que não pretendeu fantasiar Bethânia de "Macabéa", que na definição de seu namorado, Olímpico, era "um cabelo na sopa; não dá vontade de comer". De acordo com sua concepção, a cantora entrará no palco como ela mesma, "bonita como sempre". A idéia é deixar que Clarice fale através de Bethânia.
Para contar a história de Macabéa, de Olímpico, sua paixão e da datilógrafa Glória, para quem a nordestina perde o namorado, Naum utilizou atores que vivem Olímpico (Raul Gazolla) e Glória (Jurema Strafacci). Madame Carlota, a cartomante que prevê o destino de Macabéa, também estará presente no espetáculo, mas em "off", pois dela só se ouvirá a voz. Tudo foi pensado tendo em vista a valorização do texto de Clarice Lispector.
"Na realidade", diz Bethânia, "o que me comove no livro não é a a história de Macabéa, mas a delicadeza dos sentimentos de Clarice Lispector, que era considerada uma escritora difícil, em prestar a atenção nos seres que realmente fazem este país. Macabéa é o povo e Clarice soube senti-la. Para mim a história é uma denúncia oportuna. A vida cada vez isola mais as pessoas e esse depoimento de Clarice fala de aproximação. É como se dissesse: 'preste atenção no outro'. Tem uma parte do texto que mostra bem isso ao dizer 'que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida'. Pode haver coisa mais linda?"
"A Hora da Estrela" é o livro de cabeceira de Bethânia, ainda apaixonada pela literatura de Clarice Lispector. Ela conta que conheceu a escritora em 1971 e, apesar de uma ser admiradora da arte da outra, o relacionamento entre ambas não era exatamente fácil. Bethânia nunca conseguiu sentir-se inteiramente à vontade na presença de Clarice.
"Ela tinha um olhar que me impressionava, uma postura que me parecia de rainha. E, para mim, era mesmo. Então, eu me sentia um pouco intimidada com sua presença, embora nosso relacionamento fosse afetuoso. Eu me lembro que a primeira vez que a vi foi num ensaio e ela me deu, a pedido de Fauzi Arap, um texto para que eu o lesse imediatamente. Achei que não fosse conseguir, mas ela insistiu e eu li, extremamente nervosa".
Clarice costumava assistir os espetáculos de Bethânia, que não esquece o comentário da escritora a respeito de "Rosa dos Ventos": "Esse espetáculo é eterno, não acaba nunca." E a definição de Clarice sobre a atuação de Bethânia ainda comove a cantora: "Faíscas no palco". Para declarar mais uma vez seu amor por Clarice, Bethânia quer fazer da noite de estréia sua "hora da estrela".
Desde então os textos de Clarice Lispector estiveram sempre presentes nos shows de Bethânia. Através de Fauzi Arap - que dirigiu vários espetáculos da cantora - , as duas se conheceram e em 76, Clarice deu um texto inédito para Bethânia dizer em "Pássaro Proibido". Era o embrião do que viria a ser "A Hora da Estrela", ultimo romance de Clarice. Agora o livro chega ao palco: "A Hora da Estrela" é também o nome do show que Maria Bethânia estréia quinta feira próxima no Canecão, no Rio.
Roteirizado por Naum Alves de Souza - que além de dirigir o show é autor também dos figurinos e cenários - "A Hora da Estrela" não é apenas uma condensação da história de Macabéa, a nordestina "inócua, de viver ralo" solta no Rio, mas, principalmente uma homenagem de Maria Bethânia à Clarice Lispector.
"Na verdade, é mais que um homenagem, mas uma declaração de amor. É um espetáculo para fazer Clarice feliz; ela era inteiramente ligada à música. Daí eu ter me preocupado em pedir a Caetano e a Chico Buarque, por exemplo, para fazerem canções especiais para o show", diz a cantora.
Bethânia colaborou no roteiro do espetáculo, principalmente na parte musical, pois ela e Naum tiveram o cuidado de escolher composições que se encaixassem no clima do livro. Ela não fala muito sobre as canções escolhidas, prefere que a apresentação seja uma surpresa, mas diz que "entrou de tudo; do maxixe à Hollywood". Além das inéditas - o que inclui composições de Toninho Horta (também diretor musical do espetáculo) e Waly Salomão - tem músicas de Milton Nascimento, Gonzagão e apenas duas do disco mais recente da cantora, "Ciclo".
Uma das razões que levaram Naum Alves de Souza a se interessar pelo espetáculo foi exatamente o fato de o show não ter sido pautado em cima de um disco, "ou seja de não ter a exigência de colocar tais e tais músicas no roteiro". Esse é o primeiro trabalho de Naum com Bethânia. Para ela, nada melhor do que o desafio de trabalhar com uma pessoa que nunca a tinha dirigido.
Há anos ela pensava no show, mas no ano passado, quando ouviu "A linho e o linha" de Gilberto Gil, sentiu na música o clima do texto. E alguns meses depois, decidindo-se pela montagem e convidou Naum Alves de Souza para um trabalho conjunto. Para ele, "foi difícil trabalhar com um material tão bom".
"O primeiro roteiro que fiz era enorme, uma verdadeira Bíblia. Depois, com Bethânia, fui cortando, até chegar ao essencial. Porém é bom esclarecer que não se trata de um espetáculo teatral, mas de música com um pouco de narrativa e um pouco de diálogo. A música continua a linguagem de Clarice Lispector, embora mantendo o espírito dos compositores".
Naum diz que não pretendeu fantasiar Bethânia de "Macabéa", que na definição de seu namorado, Olímpico, era "um cabelo na sopa; não dá vontade de comer". De acordo com sua concepção, a cantora entrará no palco como ela mesma, "bonita como sempre". A idéia é deixar que Clarice fale através de Bethânia.
Para contar a história de Macabéa, de Olímpico, sua paixão e da datilógrafa Glória, para quem a nordestina perde o namorado, Naum utilizou atores que vivem Olímpico (Raul Gazolla) e Glória (Jurema Strafacci). Madame Carlota, a cartomante que prevê o destino de Macabéa, também estará presente no espetáculo, mas em "off", pois dela só se ouvirá a voz. Tudo foi pensado tendo em vista a valorização do texto de Clarice Lispector.
"Na realidade", diz Bethânia, "o que me comove no livro não é a a história de Macabéa, mas a delicadeza dos sentimentos de Clarice Lispector, que era considerada uma escritora difícil, em prestar a atenção nos seres que realmente fazem este país. Macabéa é o povo e Clarice soube senti-la. Para mim a história é uma denúncia oportuna. A vida cada vez isola mais as pessoas e esse depoimento de Clarice fala de aproximação. É como se dissesse: 'preste atenção no outro'. Tem uma parte do texto que mostra bem isso ao dizer 'que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida'. Pode haver coisa mais linda?"
"A Hora da Estrela" é o livro de cabeceira de Bethânia, ainda apaixonada pela literatura de Clarice Lispector. Ela conta que conheceu a escritora em 1971 e, apesar de uma ser admiradora da arte da outra, o relacionamento entre ambas não era exatamente fácil. Bethânia nunca conseguiu sentir-se inteiramente à vontade na presença de Clarice.
"Ela tinha um olhar que me impressionava, uma postura que me parecia de rainha. E, para mim, era mesmo. Então, eu me sentia um pouco intimidada com sua presença, embora nosso relacionamento fosse afetuoso. Eu me lembro que a primeira vez que a vi foi num ensaio e ela me deu, a pedido de Fauzi Arap, um texto para que eu o lesse imediatamente. Achei que não fosse conseguir, mas ela insistiu e eu li, extremamente nervosa".
Clarice costumava assistir os espetáculos de Bethânia, que não esquece o comentário da escritora a respeito de "Rosa dos Ventos": "Esse espetáculo é eterno, não acaba nunca." E a definição de Clarice sobre a atuação de Bethânia ainda comove a cantora: "Faíscas no palco". Para declarar mais uma vez seu amor por Clarice, Bethânia quer fazer da noite de estréia sua "hora da estrela".
1984
MARIA BETHÂNIA
Álbum “A beira e o mar”
Philips / PolyGram LP 824 187-1
Grabado y mezclado entre el 16 de octubre y el 21 de noviembre de 1984.
Producción: José Maria Rocha y Maria Bethânia
Lado A
1. A HORA DA ESTRELA DE CINEMA (Caetano Veloso)
2. A BEIRA E O MAR (Roberto Mendes/Jorge Portugal)
3. NA PRIMEIRA MANHÃ (Alceu Valença)
4. NOSSOS MOMENTOS (Haroldo Barbosa/Luís Reis)
5. ABC DO SERTÃO (Zé Dantas/Luiz Gonzaga)
6. PRA EU PARAR DE ME DOER (Milton Nascimento/Fernando Brant)
Lado B
1. O NOME DA CIDADE (Caetano Veloso)
2. ESSE SONHO VAI DAR (Roberto Mendes/Jorge Portugal)
3. CASO DE POLÍCIA (Moraes Moreira)
4. DA GEMA (Caetano Veloso/Waly Salomão)
5. SOMOS IGUAIS (Jair Amorim/Evaldo Gouveia)
6. SUCESSO BENDITO (Caetano Veloso)
7. SONHO IMPOSSIVEL (Joe Darion/Mitch Leigh – versión: Chico Buarque / Ruy Guerra)
Otros temas interpretados en el espectáculo:
● BEIJO PARTIDO
● BREJO DA CRUZ (Chico Buarque) 1984
● BREJO DA CRUZ (Chico Buarque) 1984
● CAMPEÃO OLÍMPICO DE JESUS (Caetano Veloso/Waly Salomão) 1984
● FELICIDADE (Lupicínio Rodrigues)
● FOGUEIRA (Angela Rô Rô)
● RODA CIRANDA (Martinho da Vila) 1984
● CAJUÍNA
● MOTRIZ
● NO DIA EM QUE EU VIM-ME EMBORA
● MODINHA
● JANELAS ABERTAS n° 2
● SUBURBANO CORAÇÃO
● CAJUÍNA
● MOTRIZ
● NO DIA EM QUE EU VIM-ME EMBORA
● MODINHA
● JANELAS ABERTAS n° 2
● SUBURBANO CORAÇÃO
● ● ● ● ●
A HORA DA ESTRELA: A REPRESENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS DE CLARICE LISPECTOR POR CAETANO VELOSO E WALY SALOMÃO
Carlos André Rodrigues de Carvalho
(Mestre em Teoria da Literatura)
Resumo:
O presente trabalho tem como finalidade analisar, do ponto de vista narrativo, a representação que o compositor Caetano Veloso e o poeta Waly Salomão fazem dos personagens Macabéa, Olímpico e Glória, de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, nas músicas O Nome da Cidade, Campeão Olímpico de Jesus, A Hora da Estrela de Cinema e Da Gema.
Palavras-chave: Narrativa; Representação; Kitsch.
Em 1977, pouco antes de morrer, a escritora Clarice Lispector parecia chegar, com A Hora da Estrela, à síntese de sua visão sobre a situação do homem diante do mundo. Em suas diversas manifestações conflitivas, em que se chocam violentamente a vivência interior e a realidade, as personagens são sofridas e cuidadosamente delineadas, numa sondagem vertical, provocadora, que nos impede de refletir sobre a nossa própria condição humana.
O livro tem como narrador/personagem Rodrigo S. M, “que ironiza, através de contínuas intrusões no texto, o estilo de narrativa que ele próprio utiliza. Coloca-se assim, pela freqüência com que dialoga com o leitor sobre a construção da narrativa, como uma das personagens centrais do romance”. (CAMPEDELLI e ABDALA JR., 1981:92).
O início da história se dá quando ele – narrado – encontra, numa rua do Rio de Janeiro, o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Como o material de que um escritor dispõe para revelar a sua história é a palavra, Clarice/Rodrigo S.M. luta, na elaboração de seu romance, para romper o espaço do texto, na busca da cintilação das estrelas nas pedras opacas da língua, na tentativa conseguir algo impossível: “Tentarei tirar ouro do carvão” (LISPECTOR, 1977:23).
Tenta também buscar o silêncio no barulho do grito, de buscar o perene no que é fugaz. Assim como a palavra tem que se parecer com a palavra, tem que ser apenas ela, o personagem-narrador procura a sua autenticidade, o seu encontro consigo mesmo, como personagem e como narrador. Como personagem, tentando recuperar o seu lado interior, o mais verdadeiro. Como narrador, obrigando-se a refletir a simplicidade dos sentimentos autênticos numa linguagem despojada, não contaminada pela rotina dos signos que já não apontam para mais nada, comprometidos pelo uso desgastante do instrumental já tão trabalhado na elaboração de outros textos, tentando captar o sentido secreto que ultrapassa
palavras e frases.
A personagem-protagonista do livro é Macabéa, reduzida ao apelido de Maca, uma nordestina do interior de Alagoas. Pobre e datilógrafa, era incompetente para a vida, pois estava sempre à margem deste rio que corre para lugar nenhum. Na verdade, o mundo é que não estava preparado para receber Macabéa (“o mundo me navega e eu não sei navegar” (Verso do poema-canção A Hora da Estrela de Cinema, de Caetano Veloso, um dos que serão analisados mais adiante.), já que ela incomodava por sua humildade, por seu gauchismo, por sua inconsciência da infelicidade. Incômoda porque não reclamava, incômoda porque não obedecia, incômoda porque tinha olhos de quem preguntaba sem fazer perguntas, ela que sabia que nada tinha resposta.
Macabéa tinha sido criado por uma tia beata, depois da morte dos pais quando tinha apenas dois anos de idade. Por motivos que ela mesma ignora, viajou de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro amigas na Rua do Acre.
Anônima na cidade grande, frágil, magricela, símbolo da busca de Clarice e, quem sabe, sua resposta no sentido de superar a inautenticidade que rege comumente as relações entre os homens.
Assim era Macabéa. O seu encontro com a cartomante, a quem vai procurar, a coloca diante do seu destino. Sua morte patenteia a sua presença silenciosa num mundo feito todo contra ela. Macabéa, por exemplo, acumula no corpo franzino “herança do sertão”, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade. É um verdadeiro “parafuso indispensável” na sociedade técnica em que vive.
Olímpico de Jesus Moreira Chaves, o namorado paraibano, operário de uma metalúrgica, não tinha consciência, talvez, do quanto era parecido com Macabéa, pela mesma origem nordestina, pela marginalização social, pela ignorância sobre as coisas. Dela diferia, entretanto, por seus sonhos de grandeza, por seu ar de quem pensava que sabia das coisas, por seu inconformismo que o tornava agressivo e impaciente com Macabéia, sábia pela humildade, sensível, alienada por defesa e, por isso mesmo, livre da felicidade e da infelicidade, livre de toda a máquina armada pelos homens para gerar necessidades.
Glória, a colega de trabalho de Macabéa, é uma carioca autêntica “safadinha e esperta” (LISPECTOR, 1977:64), que fica com o namorado de Macabéa e, indiretamente, conduz a protagonista à morte. Macabéa morre atropelada depois da visita a uma cartomante indicada por Glória, que aliás empresta a dinheiro a Macabéa para pagar a consulta. O atropelamento de Macabéa por luxuoso Mercedes Benz amarelo é a “hora da estrela” de cinema”, onde ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”.
Foi este universo, composto de personagens tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes, forjado por Clarice que o compositor Caetano Veloso e o poeta Waly Salomão recriaram, em 1984, ao comporem quatro poemas-canção que descrevem os três personagens de Clarice Lispector. As canções foram feitas para integrar o espetáculo A Hora da Estrela, inspirado no livro de Clarice, da cantora Maria Bethânia. Além das quatro músicas inéditas, que são objetos de análise deste trabalho, integraram o repertório do show outras canções já conhecidas, que se adequavam ao universo clariceano.
Na representação da representação feita por Caetano Veloso e Waly Salomão, o narrador/personagem de Clarice, Rodrigo S.M., é descartado. Macabéa assume a postura de narradora clássica (onisciente), ganhando voz e, narrando não apenas suas mazelas, mas também a exuberância da colega Glória e a condição de Olímpico de Jesus. Mas o que Macabéa de Caetano faz é narrar ou descrever?
Para distinguirmos os dois procedimentos recorreremos ao ensaio “Narrar ou Descrever”, de Lukács (1968). Através da comparação de um mesmo episódio – a corrida de cavalos – em dois romances diferentes (Naná e Ana Karenina), Lukács diz que no primeiro os detalhes são incidentais e, portanto, desnecessários, o que se configura uma descrição, enquanto no segundo, são decisivos para o desenrolar da ação dramática, que consiste na narrativa. A partir da importância das informações dos quatro textos que serão analisados, poderemos considerá-los como narrativas e não como descrições.
Os autores dos poemas-canção inspirados nos personagens de Clarice Lispector, ao narrarem esses personagens, colocam um pouco de si nesses textos, mas não por acaso. Ambos, Caetano Veloso e Waly Salomão, já passaram por momentos semelhantes aos de Macabéa e Olímpico. Assim como o casal do livro de Clarice, os dois poetas são nordestinos – o primeiro de Santo Amado da Purificação, interior cravado no Recôncavo Baiano, e o segundo, embora filho de pai sírio e mãe baiana, nasceu em Jequié, também interior da Bahia. Assim como Macabéa se mudaram para o Rio de Janeiro para tentar a vida. No caso de Waly, pode-se não notar muita semelhança entre ele e Olímpico, mas, no interior da Bahia, o poeta esteve próximo a muitos homens com perfil semelhante ao “cabra da peste” Olímpico de Jesus, e, no Rio de Janeiro, onde morou até morrer em junho do ano 2004, aos 58 anos, conheceu muitas Glórias.
Wolfgang Iser ajuda a esclarecer a mistura de realidade e ficção nos quatro poemas-canção em pauta: “No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real. Na verdade, o imaginário não se transforma em real por efeito da determinação alcançada pelo ato de fingir, muito embora possa adquirir aparência de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo e aí agir”. (Apud LIMA, 2002).
Construídas a partir de um compromisso com o já dito, para usar uma expressão de Michel Foucault, ou o quase dito ou ainda o sugerido no livro de Clarice, os quatro poemas-canção objetos de análise neste trabalho podem ser lidos/ouvidos sem qualquer vínculo ao livro de Clarice. A Macabéa de O Nome da Cidade ou de A Hora da Estrela de Cinema pode ser qualquer mulher. O Olímpico, do poema de Waly, pode ser qualquer homem que guarde características semelhantes as dele. E a Glória, de Da Gema, pode ser qualquer carioca, já que as características dela são todas construídas em cima de cliclês.
Por outro lado, nenhum dos três personagens existiriam se não houvesse a obra primeira para servir de modelo. Um comentário de Silviano Santiago traduz muito bem isso:
“O discurso segundo pressupõe a existência de um outro, anterior e
semelhante, ponto de partida e ponto de chegada, circuito fechado onde as decisões a serem tomadas pelo narrador ou pelos personagens diante de cada “bifurcação” já estão mais ou menos previstas e prescritas pelo
original.” (2000: 57)
O caminho mais óbvio para a representação da representação dos personagens de A Hora da Estrela por Caetano Veloso e Waly Salomão seria uma linguagem puramente kitsch, assim como, por exemplo, o cineasta Guel Arraes fez ao levar para as telas de cinema o livro Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins. O kitsch aparece nos textos, sobretudo em Da Gema e Campeão Olímpico de Jesus, mas de forma muito sutil, quase imperceptível.
A categoria kitsch tem valor predominantemente ideológico, pois pressupõe o reconhecimento axiomático de uma cultura elevada (criadora) e uma cultura inferior (imitadora). Está última geraria o kitsch, uma degradação do gosto. O problema desta interpretação é que, do ponto de vista antropológico, tem sido duvidosa a distinção científica entre elevada e inferior e, com relação à cultura de massa, verifica-se que ela é apenas um momento, pretensamente democratizante, da cultura ocidental. Além disso, a sociedade está sempre alternando os seus valores estéticos, fazendo continuamente mudar o gosto: o que é kitsch/mau-gosto num instante pode deixar de ser no outro. (SODRÉ, 1978:31).
Kitsch seria arte falseada, uma espécie de engodo artístico da era tecnológica.
Mas Adorno já advertia: “É inútil querer abstratamente traçar fronteiras entre a ficção estética e a pilhagem sentimental do kitsch. Ele está misturado a toda arte como veneno; separar-se dela constitui hoje uma de suas tentativas mais desesperadas”.
De acordo com Muniz Sodré (1978:31), em poética, o conceito de kitsch é mais complexo: trata-se do efeito pré-fabricado na obra de arte. É o caso, diz ele, de uma narrativa do tipo Meu Pé de Laranja Lima, que consiste em uma manipulação de clichês relativos à infância, à ruralidade, à tristeza etc., com o objetivo de provocar um efeito (já presente nas intenções do autor ao escrever o livro) caríssimo às classes médias: a comoção.
O NOME DA CIDADE: MACABÉA E A METÁFORA DA VIAGEM
Para narrar as desventuras de Macabéa, Caetano Veloso compôs O Nome da Cidade e A Hora da Estrela de Cinema. Na primeira, o compositor, partindo da metáfora da viagem, assume a personalidade de Macabéa, que narra suas impressões sobre os primeiros contatos com a cidade grande, no caso o Rio de Janeiro.
Ao contrário de Rodrigo S.M., que trata “de dramatizar ficcionalmente o ato da criação literária e vivenciá-lo como porta-voz de uma experiência de vida que lhe é social e existencialmente estranha” (FARIAS, 1992:8), Caetano Veloso transfere à Macabéa a tarefa de narrar suas impressões da cidade grande. O compositor, no entanto, aproveita muitas informações que ficaram nas entrelinhas da narrativa de Clarice e usa como chave principal para abrir A Hora da Estrela a partir do não-dito no livro:
Ôôôôôôô ê boi! Ê bus!
Onde será que isso começa
A correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa
Cheguei ao nome da cidade
Não à cidade mesma, espessa
Rio que não é rio: imagens
Essa cidade me atravessa
Com uma melodia que mistura aboio (Definição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: Melopéia plangente e monótona com que os vaqueiros guiam as boiadas ou chamam os bois dispersos). com lamento sertanejo, o compositor já inicia a canção com um verso que denuncia o estranhamento de Macabéa diante da cidade grande. O boi e o ônibus, respectivamente, meios de transporte da cidade natal da personagem e da metrópole onde ela foi parar, deixa isso bem claro para o ouvinte/leitor.
Mais que a saída de uma cidade do interior nordestino para uma metrópole, a viagem de Macabéa descrita por Caetano é também uma viagem muito mais longa, poder-se-ia até dizer que nunca termina. É a viagem dos sonhos irrealizáveis, da esperança em algo que a personagem talvez nem saiba o que é, tamanha sua ingenuidade perante a vida. Nos dois últimos versos, informações que dão uma pista das impressões de Macabéa da metrópole: uma, a poluição do rio, que não é desfrutável (como o da cidade dela), resumindo-se apenas a imagens; a outra, a insignificância dela para as pessoas que passam. “Essa cidade me atravessa” pode ser traduzida como a indiferença das pessoas com a protagonista.
Será que tudo me interessa?
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças?
O que é ameaça e o que é promessa?
Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor que horror! Que lindo!
Meninos maus, mulheres nuas
A segunda estrofe é iniciada com três indagações de Macabéa diante da profusão de coisas que ela se depara. Diante desse mundo enorme, o que é ameaça e o que é promessa? Os viadutos, os cartazes e outdoors, os “trombadinhas” e as prostitutas em pleno trottoir ganham, na visão de Macabéa, definições de uma ingenuidade, no mínimo, comovente e, no caso destes dois últimos (os meninos de rua e as prostitutas) sem qualquer preconceito. O espanto, diante do Cristo Redentor, chega a ser maior do que a fé da personagem, que antes de se sensibilizar com a imensa estátua em concreto de braços abertos, se assusta.
A gente chega sem chegar
Não há meada, é só o fio
Será que pra o meu próprio rio
Este rio é mais mar que o mar
Ôôô ôô ô ô êh boi êh bus
Sertão, sertão ê mar...
Para compreendermos a sensação de abandono da nossa protagonista no Rio de Janeiro, recorreremos a um texto clássico Georg Simmel (1976: 12), que busca na metrópole as características que condicionam e problematizam a vida moderna.
Ele realiza em seu percurso uma radiografia desse espaço, diferenciando-o de outras formações urbanas do passado e associando-o com elementos da modernidade. A metrópole, para ele, é o lugar do fluxo constante de pessoas e objetos; é a sede da economia monetária, onde a dimensão econômica uniformiza as pessoas e as coisas e determina relações e atitudes; é, ainda, uma estrutura impessoal, que se sobrepõe aos indivíduos, indiferenciando-os. É, também, o lugar da divisão econômica do trabalho, da especialização, da fragmentação e do rompimento com vínculos históricos tradicionais.
Para Simmel, o mundo da metrópole moderna estaria impregnado do que ele chama de espíritos subjetivo e objetivo, com este último predominando. Ou seja: a metrópole é marcada por uma mentalidade racional, intelectual nesse sentido, que desconsidera os aspectos emocionais e existenciais dos indivíduos como forma de dar resposta aos variados estímulos e às demandas da “economia do dinheiro”. Daí, por conseguinte, uma atitude “prosaicista” é assumida, nivelando individualidades e diferenças, dessacralizando e dessubstancializando pessoas e objetos.
Macabéa só consegue a atenção dos estranhos na hora da morte, mesmo
assim é uma atenção relativa, já que todos se aproximam dela, mas ninguém se prontifica a ajudá-la: “Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência” (LISPECTOR, 1977: 81).
Com base na teoria de Georg Simmel, notamos no primeiro verso que
Macabéa/Caetano reforça a indiferença da multidão já narrada antes. Ela é apenas mais uma no meio de tanta gente. Com o corre-corre da cidade grande, a presenta dela, como a dos outros, é ignorada. Se não a notam, como podem compartilhar da sua dor? O verso, assim, soa mais como uma queixa do que como uma constatação.
E ela chega a uma conclusão a partir de uma brincadeira com a expressão “o fio da meada”. Se em Alagoas a expressão faz sentido, no Rio de Janeiro a meada não existe: “tudo é um risco só”, como diz Caetano em A hora da Estrela de Cinema, a próxima canção a ser analisada.
O espanto diante do rio da cidade grande é tamanho que a personagem não exita em perguntar se, para o rio da cidadezinha de onde ela saiu, aquele rio que ela agora vê é maior que o próprio mar. Demonstrando uma grande carga poética na sua narrativa, Caetano evita o pastiche literário. Cria uma Macabéa a partir da de Clarice Lispector, mas sem repetir passagens do livro que marquem a protagonista, como o hábito de ouvir a rádio relógio, a mania de tomar aspirina ou comer sanduíches.
A HORA DA ESTRELA DE CINEMA: MACABÉA E A SUA CONDIÇÃO
Em A hora da Estrela de Cinema, Caetano Veloso, também na pele de Macabéa, narra suas características físicas (mofina, jururu etc.) tomando como parâmetro a opulência da amiga Glória (No espetáculo de Maria Bethânia, a deixa para a música é um diálogo entre Macabéa (Bethânia) e Olímpico (Raul Gazzolla). Este diz a Macabéa que ela não tem cara nem corpo para ser artista de cinema e que ela tem cor de suja) , que fisicamente é o oposto dela.
Embora minha pele cáqui
Sem rosa ou verde
Sem destaque
E minha condição mofina, jururu, panema
Embora envolta
Há uma certeza em mim
Uma indecência
Que toda fêmea é bela
Toda mulher tem sua hora
Tem sua hora da estrela
Sua hora da estrela de cinema
Quando diz que em sua pele não há “rosa ou verde”, Macabéa refere-se ao fato de Glória ser inegrandte da Escola de Samba Mangueira, que tem estas duas cores na sua bandeira. Mas, como que se consolando por não ter a opulência da colega, Macabéa acredita que toda mulher é bela e tem sua hora de brilhar. Quanto à condição de Macabéa, o autor insere aqui uma palavra tupi pouco usada para descrever a personagem: panema, que quer dizer “imprestável”. Vale acrecentar outro significado da palavra. Entre os indígenas panema serve para designar “má sorte na caça”, ou seja “ficar panema” é uma expressão que serve para designar o índio que não está tendo sorte quando sai para caçar.
Capibaribe, Beberibe, Subaé, Francisco
Tudo é um risco só
E o mar é um mar
E eu quase, quase não existo
E sei, eu não sou cega
O mundo me navega
E eu não sei navegar
Toda existência é inteiramente um risco que estamos obrigados a correr e percorrer. A aventura marítima – tomando-se como base os rios que Macabéa conhece – aparece como a metáfora mais convincente desta condição.
A existência é um quase que só se define pelo limite. Aceitar o limite, a determinação, mostra-se, assim, como “a experiência inelutável da condição humana”. Só nos fazemos pelo “vaivém de brilhos e tristezas, de efervescências e dores” que o Kairós nos oferece. O possível que se cumpre apesar da certeza da morte. É assim que podemos dizer que a vida deve ser vivida lentamente porque trágica: “Na verdade, a vida, de maneira confessada ou relativamente racionalizada, é trágica apenas porque existem momentos que possuem importância unicamente em si mesmos”. Fora deles, estaremos sempre diante da incerteza ou da certeza da morte. (FARES, 1996:137)
Existe um homem
Que há nos homens
Um diamante em minhas fomes
Rosa claríssima na minha prosa sem poema
E fora, e fora
De mim, de dentro a fora
Uma ciência que toda fêmea é bela
Toda mulher tem sua hora
Tem sua hora da estrela
Sua hora da estrela de cinema
CAMPEÃO OLÍMPICO DE JESUS: UM CABRA DA PESTE COM DENTE DE OURO
A representação da representação de Olímpico de Jesus coube a Waly Salomão, com música de Caetano Veloso. Campeão Olímpico de Jesus, ao contrário das duas canções anteriores, não utiliza o não-dito no livro como elemento narrativo.
Num tom tão cru quanto o do livro – mas ao mesmo tempo cheio de sarcasmo – sintetiza-se de forma singela as características do personagem. Olímpico, um nordestino foragido do sertão paraibano por matar um homem – segredo que ele não divide com ninguém no Rio de Janeiro –, sobrevive como metalúrgico e dorme “de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia”. (LISPECTOR,1977)
Olímpico tem como sobrenome apenas Jesus, mas mente para Macabéa, dizendo que seu nome completo é Olímpico de Jesus Moreira Chaves. O motivo da mentira é que o sobrenome já acusa que ele não tem pai. “Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar as pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher” (LISPECTOR, 1977:46). E é partir desses fatos que Waly começa a traçar o perfil do personagem.
Luz crua do sertão, crua luz do sertão
O nosso campeão nasceu cresceu chapado
Filho de mãe sábia e pai enviesado
Lua do sertão, luz crua do sertão
Neste vale de pus, sobrenome Jesus
Apelido visual de quem não viu nem cor
E nem cheiro de pai
Que a dolorosa mãe carregue a sua cruz
Sem destapar um ai
Sertão de crua luz
Casca de jaca dura, Olímpico, bico de jaca
Na segunda e última estrofes, os nomes soltos, mas que guardam algunas semelhanças entre si, dão pistas sobre o perfil de Olímpico. Tocha, pira e falo aparecem justapostas como que para descrever a virilidade do personagem, “que não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de “cabra safado”. As outras palavras também podem atestar o lado artista de Olímpico, que nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia. “Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao respeito, esculpia tudo do Menino Jesus. Ele achava que o que é, é mesmo, e Cristo tinha sido além de santo um homem como ele, embora sem o dente de ouro” (LISPECTOR, 1977:46).
Luz crua do sertão, crua luz do sertão
Tocha, pira, graveto, agave, falo, espeto
Cabra macho esquisito, sopro de 7 vidas
Dum anjo gato frito
Cabra macho esquisito
Luz crua do sertão, crua luz do sertão
Dente pivô de ouro, dente que cintila,
Boca que gargalha, dente que rebrilha,
Boca de lanterna que nunca carece
De trocar de pilha
Casca de jaca dura, Olímpico, bico de jaca
Luz
No início deste mesmo parágrafo do livro, o narrador Rodrigo S.M. diz que, ainda na cidade natal, Olímpico tinha juntado salários e salários para arrancar um canino e trocá-lo por um dentre de ouro faiscante. E é neste detalhe que Waly vai se deter para ajudar a construir o perfil do personagem na última estrofe.
Mas antes disso, note que o poeta compara o personagem a um gato – animal ao qual os supersticiosos atribuem sete vidas – tamanha a capacidade que Olímpico tem para escapar da morte. O número sete aqui nos remete também a outro dado curioso na narrativa de Rodrigo S. M: foi numa manhã do dia 7 de maio que Macabéa conheceu Olímpico.
DA GEMA: GLÓRIA, A MULATA QUE SE OXIGENA
Glória, ao ser apresentada a Olímpico se denomina “carioca da gema” (LISPECTOR, 1977: 59), uma expressão que esta não sabe o que significa por se tratar de uma gíria do tempo de juventude do pai dela.
...Da gema
Ovo estrelado na tela de cinema
Ela é carioca da gema
Ovo estrelado na tela de cinema
Veja que a lua nunca lhe traz nostalgia
Só sai pra ver sua alegria
Como diria Noel
Quando ela surge redonda atrás da colina
Como uma imensa aspirina
Boiando nua no céu
Para apresentar Glória, Macabéa, aqui a narradora, a compara a um ovo estrelado na tela de cinema, uma visão estranha, mas que faz sentido, considerando-se o hábito da personagem de tingir os pêlos de louro. A tela de cinema seria ambiente em que se passa a história. Glória não tem nada da ingenuidade de Macabéa e para revelar isso esta recorre a um verso do compositor carioca Noel Rosa – que, na música, é a melhor tradução do Rio de Janeiro, a terra de Glória.
Loira, morena
Mulata que se oxigena
Galinha de pretas penas
Finge ser rosa e amarela
Será que ela se tinge
Inteira e até onde?
Será que até oxigena os íntimos pêlos que esconde?
Glória é morena, mas tem os pelos quimicamente dourados e isso causa uma confusão para Macabéa que, a princípio, não sabe defini-la com precisão. Como boa carioca que é, ela deve fingir ser fã da Escola de Samba Mangueira. Os três últimos versos dessa estrofe aparecem no livro de Clarice da seguinte forma: “Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?” (LISPECTOR, 1977:63). Note-se que, no livro, a indagação é feita por Olímpico e não por Macabéa.
Bacalhoada, batata,
Vinho nas veias
Bonita como as sereias
Sorrindo em Copacabana
Desinibida, brutalidade da vida
Ela é total colorida
Forte, bonita e bacana
Óvulos férteis, cadeiras de parideira
Parece até estrangeira aos brasileiros demais
A atração que Olímpico sente por Glória faz com que Macabéa a compare com iguarias, bebida e a um dos seres míticos que mais despertam a libido dos homens: a sereia. Ao contrário de Macabéa, ela é desinibida, um dos traços que chama a atenção de Olímpico. A brutalidade de Glória está na indiferença dela com a colega Macabéa. No livro, ela é descrita por Rodrigo S.M. assim: “Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penaliza-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela” (LISPECTOR, 1977:64).
As referências aqui as cadeiras de parideira da personagem também são descritas no livro pelo narrador/personagem Rodrigo S.M.: “Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim” (LISPECTOR, 1977:60).
Refeição farta, contra-filé de primeira
Matriz, Império e Mangueira,
Produto, anúncio e cartaz
Ela é carioca da gema
Ovo estrelado na tela de cinema
Aqui, Macabéa reforça as comparações de Glória com as comidas preferidas de Olímpico. Se nos versos anteriores ela fingia ser mangueirense, aqui é revelada como admiradora de outras duas escolas de samba. Para definir a exuberância de Glória, Macabéa recorre ao mundo da propaganda – mostrando-se adaptada à realidade da cidade grande, que antes ela repudiava (“letras demais tudo mentindo”, em O Nome da Cidade) – diz que ela não é apenas uma campanha publicitária completa, mas também o produto dessa mesma campanha.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPEDELLI, S.; ABDALA JR., B. 1981. Literatura Comentada – Clarice Lispector. 1. ed. São Paulo: Abril Educação.
FARES, C. 1996. O arco da conversa – um ensaio sobre a solidão. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial.
FARIAS, S. L. R. 1992. A movência do ficcional ou a astúcia da mímesis: a hora da estrela de cinema, de Clarice Lispector. In.: Correio das Artes, João Pessoa, 06 de dezembro.
ISER, W. 2002. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In.: LIMA, L. C. (org.). Teoria da literatura em suas fontes, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
LISPECTOR, C. 1977. A Hora da Estrela. São Paulo: Civilização Brasileira.
LUKÁCS, G. 1968. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SIMMEL, G. 1976. Metrópole e vida mental. In.: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar.
SODRÉ, M. 1976. Kitsch, Mentonímia, Nazi-fascismo. In.: Tempo Brasileiro – Revista Trimestral de Cultura, número 52. Rio de Janeiro.
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II Congresso
Internacional
Línguas
Literatura Diálogos
02 a 05 setembro
2013
Faculdade de Letras
UFRJRio de Janeiro - Brasil
SIMPÓSIO
Literatura e mídia: o múltiplo
dizer do contemporâneo
ESTRELA DE MIL PONTAS NO CHÃO DE CLARICE, BETHÂNIA
E CAETANO
Antonio Coutinho Soares Filho
Leitura
das relações intertextuais entre o romance A hora da estrela, de Clarice
Lispector, e a música A hora da estrela de cinema, de
Caetano Veloso, composta especialmente para o espetáculo A hora da estrela, de
Maria Bethânia, o qual teve como proposta transpor musicalmente para o palco o
texto clariceano.
Sob
a direção de Naum Alves de Sousa que também assina a cenografia, o figurino e o
roteiro (em parceria com Maria Bethânia, sobretudo na parte musical), esse show
de 1984 é uma homenagem à obra de Clarice Lispector.
Além da música A
hora da estrela de cinema, outras canções foram compostas especialmente
para o espetáculo como O nome da cidade e Da
gema, ambas de Caetano Veloso, e Campeão Olímpico de Jesus, parceria
de Caetano Veloso com Wally Salomão.
O
espetáculo utiliza ainda atores em off dizendo o texto de Clarice durante o
show, como Raul Gazolla (Olímpico), Jurema Strafacci (Glória) e Bibi Ferreira
(Cartomante).
O
programa do espetáculo é ilustrado com desenhos e fotografias trabalhados
esteticamente, os quais dialogam com o romance de Lispector. Daí, a pertinência
de se fazer uma análise da canção de Caetano Veloso, à luz do texto clariceano,
usando também o suporte imagético do programa, a saber: a capa do encarte, onde
figura um esboço de Macabéa e Maria Bethânia pontuadas por uma estrela, e a
página onde a letra da música A hora da estrela de cinema está impressa, a qual
apresenta uma ilustração de Maria Bethânia acompanhada também por uma estrela.
É curioso notar que nas duas imagens citadas, as cores azul e amarelo são
presenças marcantes, o que denota um caráter metafórico a ser olhado com mais atenção.
Dessa forma, pretende-se relacionar os textos de Caetano Veloso e Clarice
Lispector, bem como as duas imagens do encarte do programa do show, num
exercício analítico de busca das possíveis significações que esse cruzamento
transartístico possibilita.
Esse
estudo é uma tentativa de se perceber o valor estético que a tradução
intersemiótica pode proporcionar a uma obra consagrada sem desmerecer o valor
próprio que o produto artístico dessa tradução possui, tanto como diálogo
quanto independentemente de sua fonte.
O
trabalho tem como suporte teórico os autores Cereja (2005), Carvalhal (2006),
Santaella (2011) e Figueiredo (2010), os quais, respectivamente, entre outras
questões, abordam os conceitos de dialogismo, comparativismo, intermidialidade
e migrações transartísticas.
Considerando
a volatilidade entre as artes, é possível perceber a vitalidade do texto
literário que, ao contrário do que pensam os adoradores de estantes
empoeiradas, é uma arte que pode sair das páginas, subir nos palcos e configurar-se
em imagens sem perder sua especificidade.
Tal
dessacralização do texto mostra o quanto é rico esse trânsito artístico, o que
ajuda mais ainda a perscrutar os meandros da condição humana que a literatura,
e também as outras artes, tenta vislumbrar.
Palavras-chave:
Intermidialidade. Literatura e Música. Clarice Lispector. Caetano Veloso. Maria
Bethânia. A hora da estrela.
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