lunes, 2 de diciembre de 2024

2006 - DENTRO DO MAR TEM RIO


São Paulo, sexta-feira, 03 de novembro de 2006



Água viva

Maria Bethânia homenageia oceanos e rios nos novos discos "Mar de Sophia" e "Pirata", em que procura "oásis na memória" para contrapor ao mundo "feio" atual; álbuns têm louvações a orixás e músicas do irmão Caetano



A cantora na sede da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro

Foto: Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem



LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO


Maria Bethânia tinha três ou quatro anos quando conheceu o mar de Salvador com sua mãe, dona Canô. Primeiro, o bonde puxado a burro até o porto de Santo Amaro da Purificação.


Depois, o vapor sacudido a valer pelas águas do Atlântico.

"Fiquei impressionada com a cor, as ondas. Minha mãe passando mal, o cheiro de óleo, e eu me lembro de sentir uma coisa muito grande, medo junto de prazer. Gosto da sensação de estar em cima da água. Fico um pouco inatingível", conta ela.

Quando fala dos rios de sua terra, também remonta ao passado. No Subaé, de navegação, e no Sergimirim, córrego cheio de pedras, ela nadava na infância com Caetano Veloso e os outros irmãos. "Mataram os dois rios [com a poluição]. A memória que tenho é de quando eram vivos e eu era menina. Eles se encontravam, "um amor de águas limpas'", diz, citando "Memória das Águas" (Roberto Mendes/Jorge Portugal).


Oceanos e rios são os temas, respectivamente, de "Mar de Sophia" e "Pirata", CDs que chegam às lojas na próxima semana -vendidos separadamente. Na sexta-feira da próxima semana, a cantora estréia o show "Dentro do Mar Tem Rio" no Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo.


Águas doces e salgadas


Os novos títulos prosseguem o mergulho em águas passadas que a cantora já dera em "Brasileirinho" e "Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu" (ambos de 2003). Tem sido sua marca desde que trocou as grandes gravadoras pela Biscoito Fino, na qual tem o selo Quitanda. "Como acho que [o mundo] está muito feio hoje, fico procurando alguns oásis na memória. Imaginando, emanando para ver se cola", explica.
Entusiasmada com os poemas da portuguesa Sophia de Mello Breyner (1919-2004), cuja obra lhe foi apresentada há cinco anos pelo escritor (também português) António Alçada Batista, Bethânia planejou primeiro "Mar de Sophia". Logo pensou em um CD para águas doces e outro só para a Baía de Todos os Santos -que chama pelo nome original, Kirimurê, título de uma música de seu irmão Jota Velloso

.
"Mas, quando fiz o "Mar", já senti o Kirimurê ali. E, quando fiz o "Pirata", acabei de pôr os caboclos e as coisas da minha região. Foi um veio que não precisou alargar mais", conta.


As águas do Recôncavo Baiano, "de fundo de baía, meio mangue, cor de palha", continuam sendo as preferidas de Bethânia, que aproveita as cachoeiras da região quando está lá. "Enquanto tem, né?", lamenta. Foi por esse rastro de destruição que ela incluiu "Os Argonautas", música de Caetano que remete às grandes navegações ("Navegar é preciso/ Viver não é preciso"), no CD de águas doces, não no de águas salgadas, como seria lógico.
"Como os rios estão mortos, achei que a dramaticidade da letra deixaria mais nítido o que eu queria falar no "Pirata". É um barco imaginário que foi parar em Santo Amaro", diz.


A canção de Caetano que está em "Mar de Sophia" é "Marinheiro Só", que faz par com "O Marujo Português" (Linhares Barbosa/Arthur Ribeiro). "Enquanto o samba-de-roda tem o suingue, o fado é empolado. Acho bonitas essas diferenças, duas visões do mesmo ofício."


"Pirata" é costurado por trechos de Guimarães Rosa ("Ele já me conduz há tempo e para sempre há de me conduzir", diz Bethânia) e tem uma inevitável homenagem ao São Francisco. "É o rio santo, que comove romeiros, poetas, cantores e escritores, tal sua força e sua beleza", exalta ela, que escolheu trabalhos de bordadeiras da beira do rio para ilustrar o CD.
Comuns nos discos de Bethânia, as louvações a orixás não faltariam nos novos, que têm, entre outros, cantos a Oxum e Iemanjá, divindades das águas. "Vou nas festas de Iemanjá e de Nossa Senhora da Purificação. Meu berço é católico, mas há o outro, que eu escolhi adulta. Não tem briga", concilia.
Há líquidos diversos nos CDs, entre eles "Lágrima" (Roque Ferreira) e a "água do ventre", como a cantora se refere a "Debaixo d'Água", que Arnaldo Antunes lhe ofereceu juntamente de "Agora", do repertório dos Titãs. "Aqui é reservatório", aponta para a barriga.



"Mundo mau"


Desencantada com um "mundo mau, mentiroso, enganador", Bethânia prefere não dizer se votou ou não em Lula, pois já não acredita em grandes mudanças a partir da política. Sua queixa é internacional.


"É uma afronta quem manda mesmo no mundo, que é o presidente norte-americano, não assinar o Protocolo de Kyoto [que visa controlar a emissão de gases poluentes]. A gente só pode se aborrecer, porque somos lixo. Os bacanas deveriam dizer: "Você está fora". Façam com ele [George Bush] o que fizeram com Cuba [bloqueio econômico]. Mas não muda, só piora. Daqui a pouco vão liberar para jogarem bomba na Amazônia", diz ela, resumindo seu desencanto: "Quero moda de viola. Pelo menos me comove."



10/11/2006 - Dentro do mar tem rio - Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo.
Foto: Beti Niemeyer




São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2006 

 

Maria Bethânia faz elegia aos rios e aos mares em um espetáculo autoral

CARLOS CALADO

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


Uma platéia eufórica lotou o Tom Brasil, em São Paulo, na última sexta-feira. Na estréia do seu show, Maria Bethânia mostrou que, mesmo sem ser compositora, seu trabalho é tão autoral quanto os de outros grandes criadores da MPB.


O termo intérprete já parece restrito demais para caracterizar sua arte. Bethânia não imprime sua personalidade apenas às canções que escolhe, como fazem os melhores intérpretes. Com igual talento, em seus shows, ela associa canções e poemas, acrescentando novos sentidos às obras desses músicos e poetas.


No novo espetáculo da cantora, baseado no repertório dos recém-lançados CDs "Mar de Sophia" e "Pirata", entram mais de 30 canções de autores como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. Tendo como tema os mares ou os rios, essas canções são tecidas pela cantora com sensibilidade e inteligência a poemas de autores como Guimarães Rosa, Antonio Vieira e a portuguesa Sophia de Mello Breyner.


Dessa poética teia de palavras, melodias e ritmos surge o retrato nostálgico de um Brasil mais puro, que permanece na memória da cantora.


Se a primeira parte do show mostrou uma Bethânia serena e risonha, em sua elegia à simplicidade perdida, quase ao final da noite veio a surpresa. Recitando trechos do poema "Ultimatum", de Álvaro de Campos (o indignado heterônimo de Fernando Pessoa), a cantora surpreendeu a platéia, com um discurso inflamado.


"E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te descobrir", declamou, interrompida pelos aplausos dos fãs, excitados pela atualidade do poema (escrito em 1917) em seus ataques aos poderosos e às ideologias. Mas quem conhece Bethânia sabe que essa indignação não é exatamente de teor político. É mais um desabafo da artista frente a um mundo que já não se preocupa com o futuro dos rios ou dos mares, muito menos com a poesia.



11/11/2006 - Maria Bethânia recebe amigos em seu camarim após se apresentar no Tom Brasil, em São Paulo, SP. - Foto: João Sal/Folhapress





São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2006 

 

Maria Bethânia faz elegia aos rios e aos mares em um espetáculo autoral


CARLOS CALADO

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


Uma platéia eufórica lotou o Tom Brasil, em São Paulo, na última sexta-feira. Na estréia do seu show, Maria Bethânia mostrou que, mesmo sem ser compositora, seu trabalho é tão autoral quanto os de outros grandes criadores da MPB.


O termo intérprete já parece restrito demais para caracterizar sua arte. Bethânia não imprime sua personalidade apenas às canções que escolhe, como fazem os melhores intérpretes. Com igual talento, em seus shows, ela associa canções e poemas, acrescentando novos sentidos às obras desses músicos e poetas.


No novo espetáculo da cantora, baseado no repertório dos recém-lançados CDs "Mar de Sophia" e "Pirata", entram mais de 30 canções de autores como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. Tendo como tema os mares ou os rios, essas canções são tecidas pela cantora com sensibilidade e inteligência a poemas de autores como Guimarães Rosa, Antonio Vieira e a portuguesa Sophia de Mello Breyner.


Dessa poética teia de palavras, melodias e ritmos surge o retrato nostálgico de um Brasil mais puro, que permanece na memória da cantora.


Se a primeira parte do show mostrou uma Bethânia serena e risonha, em sua elegia à simplicidade perdida, quase ao final da noite veio a surpresa. Recitando trechos do poema "Ultimatum", de Álvaro de Campos (o indignado heterônimo de Fernando Pessoa), a cantora surpreendeu a platéia, com um discurso inflamado.


"E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te descobrir", declamou, interrompida pelos aplausos dos fãs, excitados pela atualidade do poema (escrito em 1917) em seus ataques aos poderosos e às ideologias. Mas quem conhece Bethânia sabe que essa indignação não é exatamente de teor político. É mais um desabafo da artista frente a um mundo que já não se preocupa com o futuro dos rios ou dos mares, muito menos com a poesia.




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