Água viva
Maria Bethânia homenageia oceanos e rios nos novos discos "Mar de Sophia" e "Pirata", em que procura "oásis na memória" para contrapor ao mundo "feio" atual; álbuns têm louvações a orixás e músicas do irmão Caetano
A
cantora na sede da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro Foto: Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem |
LUIZ
FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Maria Bethânia tinha três ou quatro anos quando conheceu o mar de Salvador com sua mãe, dona Canô. Primeiro, o bonde puxado a burro até o porto de Santo Amaro da Purificação.
Depois, o vapor sacudido a valer pelas águas do Atlântico.
"Fiquei impressionada com a cor, as ondas. Minha mãe passando mal, o
cheiro de óleo, e eu me lembro de sentir uma coisa muito grande, medo junto de
prazer. Gosto da sensação de estar em cima da água. Fico um pouco
inatingível", conta ela.
Quando fala dos rios de sua terra, também remonta ao passado. No Subaé, de navegação, e no Sergimirim, córrego cheio de pedras, ela nadava na infância com Caetano Veloso e os outros irmãos. "Mataram os dois rios [com a poluição]. A memória que tenho é de quando eram vivos e eu era menina. Eles se encontravam, "um amor de águas limpas'", diz, citando "Memória das Águas" (Roberto Mendes/Jorge Portugal).
Oceanos e rios são os temas, respectivamente, de "Mar de Sophia" e
"Pirata", CDs que chegam às lojas na próxima semana -vendidos
separadamente. Na sexta-feira da próxima semana, a cantora estréia o show
"Dentro do Mar Tem Rio" no Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo.
Águas doces e salgadas
Os novos títulos prosseguem o mergulho em águas passadas que a cantora já dera
em "Brasileirinho" e "Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora dos
Jardins do Céu" (ambos de 2003). Tem sido sua marca desde que trocou as
grandes gravadoras pela Biscoito Fino, na qual tem o selo Quitanda. "Como
acho que [o mundo] está muito feio hoje, fico procurando alguns oásis na
memória. Imaginando, emanando para ver se cola", explica.
Entusiasmada com os poemas da portuguesa Sophia de Mello Breyner (1919-2004),
cuja obra lhe foi apresentada há cinco anos pelo escritor (também português)
António Alçada Batista, Bethânia planejou primeiro "Mar de Sophia".
Logo pensou em um CD para águas doces e outro só para a Baía de Todos os Santos
-que chama pelo nome original, Kirimurê, título de uma música de seu irmão Jota
Velloso
.
"Mas, quando fiz o "Mar", já senti o Kirimurê ali. E, quando fiz
o "Pirata", acabei de pôr os caboclos e as coisas da minha região.
Foi um veio que não precisou alargar mais", conta.
As águas do Recôncavo Baiano, "de fundo de baía, meio mangue, cor de
palha", continuam sendo as preferidas de Bethânia, que aproveita as
cachoeiras da região quando está lá. "Enquanto tem, né?", lamenta.
Foi por esse rastro de destruição que ela incluiu "Os Argonautas",
música de Caetano que remete às grandes navegações ("Navegar é preciso/
Viver não é preciso"), no CD de águas doces, não no de águas salgadas,
como seria lógico.
"Como os rios estão mortos, achei que a dramaticidade da letra deixaria
mais nítido o que eu queria falar no "Pirata". É um barco imaginário
que foi parar em Santo Amaro", diz.
A canção de Caetano que está em "Mar de Sophia" é "Marinheiro
Só", que faz par com "O Marujo Português" (Linhares
Barbosa/Arthur Ribeiro). "Enquanto o samba-de-roda tem o suingue, o fado é
empolado. Acho bonitas essas diferenças, duas visões do mesmo ofício."
"Pirata" é costurado por trechos de Guimarães Rosa ("Ele já me
conduz há tempo e para sempre há de me conduzir", diz Bethânia) e tem uma
inevitável homenagem ao São Francisco. "É o rio santo, que comove
romeiros, poetas, cantores e escritores, tal sua força e sua beleza",
exalta ela, que escolheu trabalhos de bordadeiras da beira do rio para ilustrar
o CD.
Comuns nos discos de Bethânia, as louvações a orixás não faltariam nos novos,
que têm, entre outros, cantos a Oxum e Iemanjá, divindades das águas. "Vou
nas festas de Iemanjá e de Nossa Senhora da Purificação. Meu berço é católico,
mas há o outro, que eu escolhi adulta. Não tem briga", concilia.
Há líquidos diversos nos CDs, entre eles "Lágrima" (Roque Ferreira) e
a "água do ventre", como a cantora se refere a "Debaixo
d'Água", que Arnaldo Antunes lhe ofereceu juntamente de "Agora",
do repertório dos Titãs. "Aqui é reservatório", aponta para a
barriga.
"Mundo mau"
Desencantada com um "mundo mau, mentiroso, enganador", Bethânia
prefere não dizer se votou ou não em Lula, pois já não acredita em grandes
mudanças a partir da política. Sua queixa é internacional.
"É uma afronta quem manda mesmo no mundo, que é o presidente
norte-americano, não assinar o Protocolo de Kyoto [que visa controlar a emissão
de gases poluentes]. A gente só pode se aborrecer, porque somos lixo. Os
bacanas deveriam dizer: "Você está fora". Façam com ele [George Bush]
o que fizeram com Cuba [bloqueio econômico]. Mas não muda, só piora. Daqui a
pouco vão liberar para jogarem bomba na Amazônia", diz ela, resumindo seu
desencanto: "Quero moda de viola. Pelo menos me comove."
10/11/2006 - Dentro do mar tem rio - Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo. Foto: Beti Niemeyer |
São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2006
Maria Bethânia faz elegia aos rios e aos mares em um espetáculo autoral
CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Uma platéia eufórica lotou o Tom Brasil, em São
Paulo, na última sexta-feira. Na estréia do seu show, Maria Bethânia mostrou
que, mesmo sem ser compositora, seu trabalho é tão autoral quanto os de outros
grandes criadores da MPB.
O termo intérprete já parece restrito demais para caracterizar sua arte.
Bethânia não imprime sua personalidade apenas às canções que escolhe, como
fazem os melhores intérpretes. Com igual talento, em seus shows, ela associa
canções e poemas, acrescentando novos sentidos às obras desses músicos e
poetas.
No novo espetáculo da cantora, baseado no repertório dos recém-lançados CDs
"Mar de Sophia" e "Pirata", entram mais de 30 canções de
autores como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. Tendo como tema os mares ou os
rios, essas canções são tecidas pela cantora com sensibilidade e inteligência a
poemas de autores como Guimarães Rosa, Antonio Vieira e a portuguesa Sophia de
Mello Breyner.
Dessa poética teia de palavras, melodias e ritmos surge o retrato nostálgico de
um Brasil mais puro, que permanece na memória da cantora.
Se a primeira parte do show mostrou uma Bethânia serena e risonha, em sua
elegia à simplicidade perdida, quase ao final da noite veio a surpresa.
Recitando trechos do poema "Ultimatum", de Álvaro de Campos (o
indignado heterônimo de Fernando Pessoa), a cantora surpreendeu a platéia, com
um discurso inflamado.
"E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te
descobrir", declamou, interrompida pelos aplausos dos fãs, excitados pela
atualidade do poema (escrito em 1917) em seus ataques aos poderosos e às
ideologias. Mas quem conhece Bethânia sabe que essa indignação não é exatamente
de teor político. É mais um desabafo da artista frente a um mundo que já não se
preocupa com o futuro dos rios ou dos mares, muito menos com a poesia.
São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de
2006
Maria Bethânia faz elegia aos rios e aos mares em um espetáculo autoral
CARLOS CALADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Uma platéia eufórica lotou o Tom Brasil, em São
Paulo, na última sexta-feira. Na estréia do seu show, Maria Bethânia mostrou
que, mesmo sem ser compositora, seu trabalho é tão autoral quanto os de outros
grandes criadores da MPB.
O termo intérprete já parece restrito demais para caracterizar sua arte.
Bethânia não imprime sua personalidade apenas às canções que escolhe, como
fazem os melhores intérpretes. Com igual talento, em seus shows, ela associa
canções e poemas, acrescentando novos sentidos às obras desses músicos e
poetas.
No novo espetáculo da cantora, baseado no repertório dos recém-lançados CDs
"Mar de Sophia" e "Pirata", entram mais de 30 canções de
autores como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. Tendo como tema os mares ou os
rios, essas canções são tecidas pela cantora com sensibilidade e inteligência a
poemas de autores como Guimarães Rosa, Antonio Vieira e a portuguesa Sophia de
Mello Breyner.
Dessa poética teia de palavras, melodias e ritmos surge o retrato nostálgico de
um Brasil mais puro, que permanece na memória da cantora.
Se a primeira parte do show mostrou uma Bethânia serena e risonha, em sua
elegia à simplicidade perdida, quase ao final da noite veio a surpresa.
Recitando trechos do poema "Ultimatum", de Álvaro de Campos (o
indignado heterônimo de Fernando Pessoa), a cantora surpreendeu a platéia, com
um discurso inflamado.
"E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te
descobrir", declamou, interrompida pelos aplausos dos fãs, excitados pela
atualidade do poema (escrito em 1917) em seus ataques aos poderosos e às
ideologias. Mas quem conhece Bethânia sabe que essa indignação não é exatamente
de teor político. É mais um desabafo da artista frente a um mundo que já não se
preocupa com o futuro dos rios ou dos mares, muito menos com a poesia.
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