Letra: Caetano Veloso
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| Perinho Albuquerque |
“Guá” é um canto ao orixá Ibualama. Uma peça concisa, clara, de rara limpidez. Peça sintética e sincrética, construída pela justaposição direta de palavras, sem conexões sintáticas entre si, na linha da poesia concreta brasileira. Um “ideograma”. Mas também filiando-se, em última análise, à poesia tradicional iorubana. Mais precisamente, à linhagem dos orikis de orixá.
Com a devida cautela, podemos dizer que o oriki é um “gênero” poético nagô-iorubá. Em sua forma mais elementar, é uma espécie equivalente nagô do epíteto homérico: um nome atributivo, ou apelido poético, que é um dos três nomes que o iorubano pode ganhar ao nascer. [...] Mas esta célula verbal pode se expandir no sentido da constituição de um corpo textual percebido e definido como poético. Uma expansão sígnica que se dá pela colagem ou montagem de blocos verbais. Pelo agrupamento ou pela aglutinação de frases atributivas, epitéticas.
A expressão “oriki” é, ela mesma, uma palavra
montagem. Fusão de ki (do verbo “saudar”) e orí (“cabeça” – mas não a cabeça
que carregamos sobre os ombros e, sim, uma cabeça interior, essencial, que é
nosso destino e sentido). O oriki é, assim, uma saudação ao orí, à essência, à inner head, do
objeto do poema. [...] Foi o que Caetano fez em “Guá”: via sintaxe
de montagem, uma saudação-definição essencial do orixá Ibualama, trazendo-o à
cena em meio às águas. [...] Um oriki – concretista - de orixá.
Caetano compôs o texto verbal de Guá com apenas
quatro (virtualmente, cinco) vocábulos:
Água
Guamá
Iguape
Ibualama
O substantivo “água” (português). Os topônimos Guamá e Iguape, ambos tupis: o primeiro, referente ao Rio Guamá, que deságua na baía de Guajará, onde fica a cidade de Belém, capital do Pará; o segundo, ao lagamar do Iguape, no Recôncavo Baiano – denominação redundante, por sinal já que iguape, em tupi, significa, justamente, “lagamar” (lagoa de água salgada). O nome do orixá nagô Ibualama, que é o dono-da-cabeça do próprio Caetano. E, por fim, projetando-se para ganhar autonomia vocabular a vogal “i”, remetendo ao “y” gutural dos tupis, que significa, justamente, “água”.
[...] “Gua” começa com uma respiração. Presença de um ser vivo. Um animal-deus respirando, ao tempo em que soa a marimba, um instrumento africano. Ouve-se um “i”. Além de indicar água, é o “i” que sinaliza que aquela presença, ali, é a do orixá. De um Oxóssi chamado Ibualama. Os sons recriam ou estetizam uma circunstância física aquática. Uma ambiência aquosa, úmida, alagada, lacustre. Estamos no mundo das águas. No habitat do deus. Dito de outro modo, o arranjo musical vai tratando de criar um meio ambiente sonoro para o texto.
Mas o que mesmo estamos ouvindo? [...] Tuzé de Abreu acerta no alvo, esclarecendo : “As células rítmicas executadas pelas congas, duas bocas de congas, sugerem o agueré de Oxossi.”. [...] Agueré ou aguerê. Uma palavra de origem iorubana. Designa um toque especial de tambor para Oxóssi. Caetano partiu do solo, da base musical do agueré. Um neo-agueré para Oxóssi Ibualama. Composto por um criador que atravessou a bossa nova e conhece os caminhos da produção musical contemporânea.
[...] Ao compor “Guá”, Caetano não estava fazendo nenhuma “pesquisa”. Nenhum “workfield”. Assim como nos romances de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro – ou em poemas de Jorge de Lima e Waly Salomão -, candomblés e orixás não aparecem como coisas livrescas ou arquivológicas. Pelo contrário. Caetano apenas poetiza presenças, palavras e sons que existem à sua volta, em sua vida. Produtos imediatos e concretos de sua vivência pessoal.
Em suma, o que temos em “Gua”, musicalmente, é um
neo-agueré. E, poeticamente, um neo-oriki. Numa pequena e inestimável jóia da
música popular brasileira.







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