“Eu sou Djalma Corrêa, eu sou Alcyvando Luz, eu sou Antônio Renato, eu
sou Maria da Graça, eu sou Gilberto Gil, eu sou Caetano Veloso, sou Maria
Bethânia, sou Antônio José”.
[22 de agosto de 1964, Teatro Vila Velha, Salvador]
O Estado de S. Paulo
Cultura
Djalma Corrêa
tem gravação inédita do 1º show de Gal, Gil, Caetano, Bethânia e Tom Zé juntos
em 1964
Ouça um
trecho do registro histórico feito pelo músico no Teatro Vila Velha, em
Salvador; músico e seus filhos estão em busca de parcerias para realizar
documentário a partir do áudio
Adriana Del Ré, O Estado de S. Paulo
24 de março de 2019
O show Nós, Por
Exemplo, que inaugurou o Teatro Vila Velha, em Salvador, em 22 de
agosto de 1964, já seria histórico só pelo fato de reunir pela primeira vez, no
mesmo palco, Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Gal Costa,
Maria
Bethânia e Tom Zé – numa época em que Tropicália e
Doces Bárbaros não faziam parte de seus sonhos mais delirantes.
Mas
a reação inesperadamente acalorada da plateia àquela primeira
apresentação desencadeou um efeito potente na trajetória de todos aqueles
jovens estudantes. “Sem dúvida, foi uma alavancada para todos nós. A aceitação
do público foi incrível. Até para nós foi surpresa, isso ajudou muito a gente a
continuar, tanto que cada um seguiu seu caminho”, relembra o músico Djalma Corrêa,
então baterista da trupe – e outra peça importante naquele show.
Muito já se leu e se ouviu falar sobre Nós, Por Exemplo (título esse dado por Caetano), mas só
Djalma tem uma verdadeira preciosidade daquele show em mãos: o registro em
áudio do espetáculo, que pertence ao acervo que ele mantém em seu sítio, na
Pedra de Guaratiba, no Rio. De maneira geral, seu arquivo concentra áudios de
shows, gravações em Super 8, fotos, slides e fotogramas preto e branco, e
“muitos registros da cultura popular brasileira”, conta o músico, hoje com 76
anos.
A gravação da estreia de Nós, Por
Exemplo– e dos outros shows que vieram na esteira de seu sucesso –
permanece inédita há mais de 50 anos. Mas Djalma e seus filhos, Caetano e
Shanti, têm planos para mudar isso. A proposta é fazer um documentário a partir
desse áudio. “Nunca mostrei (o áudio)
para eles (Gil, Gal, Bethânia, Caetano,
Tom, entre outros), então minha ideia sempre foi fazer um
documentário com eles ouvindo esse show pela primeira vez. Ver a reação de cada
um, lembrando de detalhes com cada um separadamente, e depois algo com todo
mundo junto”, diz Djalma.
Djalma Corrêa com o contrabaixo da família que foi usado no show em 1964. Foto: Aline Massuca/Estadão |
Na
realidade, o projeto existe há cerca de 15 anos, conta sua filha, a produtora
Shanti C. Corrêa, que vive nos EUA. Mas alguns empecilhos, como a dificuldade
de encontrar parceiros para viabilizá-lo, paralisaram sua realização.
“Engavetamos para um próximo momento, mas nunca aconteceu”, lamenta ela.
Naquela época, Shanti chegou a fazer muitas pesquisas na Bahia – inclusive,
constatou que quase não há registros fotográficos daquele momento. Além disso, duas
faixas que estão na gravação foram masterizadas em Los Angeles. Tudo foi uma
iniciativa bancada por ela.
Passados
todos esses anos, parece existir agora um movimento natural de se organizar o
rico acervo de Djalma, que inclui os registros da cultura popular brasileira
(leia abaixo) e a retomada do documentário. “A demanda maior que a gente tem é
de parceria de produção, de financiamento, e diretores que tenham prática de
documentário na área de música”, afirma Caetano Correa, filho de Djalma.
Para
não tirar o ineditismo desse material, Djalma conta que nunca pensou em
lançá-lo em disco. “A ideia primeira sempre foi essa história de eles ouvirem
pela primeira vez e a reação de cada um, então nunca pensei em transformar isso
em disco. Gravei quase todos os shows que rolaram na Bahia. Um dos que gravei e
cedi para Polygram foi a despedida de Gil e Caetano antes do exílio, em 69, e
foi feito esse disco”, diz o prestigiado músico.
O percussionista Djalma Corrêa no acervo que mantém em seu sítio, no Rio. Foto: Aline Massuca/Estadão |
O gravador.
No início do show no Teatro Vila Velha – ouça o áudio abaixo –, ouvem-se vocais
em sintonia, seguidos por aplausos da plateia, e, então, os protagonistas de Nós, Por Exemplo se
apresentam um a um: “Eu sou Djalma Corrêa,
eu sou Alcyvando Luz, eu sou Antônio Renato, eu sou Maria da Graça, eu sou
Gilberto Gil, eu sou Caetano Veloso, sou Maria Bethânia, sou Antônio José”.
Caetano emenda os primeiros versos de Quarta-Feira de Cinzas. “É
maravilhoso, porque tem uma carga de veracidade muito grande. Você reconhece as
vozes. Há pouca mudança vocal de cada um”, analisa Djalma.
Na época, o percussionista – nascido em
Minas – morava em Salvador, e lá estudava música na Universidade Federal da
Bahia e também já era técnico de som do câmpus. Todos eles se conheciam por
causa da música. “Substituímos uma peça (Eles Não Usam Black Tie), que
não ficou pronta para a inauguração do teatro, então foi proposto fazer um
show.” Os ensaios se dividiam entre a casa da amiga Maria Moniz, onde tinha a
famosa sopa, e da mãe de Caetano e Bethânia, Dona Canô. “Houve tempo para
ensaiar, fazer repertório, tem músicas já conhecidas, mas com arranjos bem
ousados para época”, detalha. Ele conta que o grupo se surpreendeu com a euforia
da plateia lotada. “Foi cobrado ingresso, preço barato”, diz. “Não ganhamos
cachê, era uma coisa amadora.”
E o que fez Djalma levar o gravador
para o show? “Tinha uma música minha, Bossa 2000 D.C, que estava no
show. Na fita, tinha a parte eletrônica dessa música e eu precisava do gravador
do meu lado para poder soltar e parar na hora certa. Aí eu disse: o gravador
está aqui e vou gravar. Não foi algo premeditado.” Quem não gostou da presença
do gravador no palco foi o diretor Roberto Sant’Ana. A ponto de os dois
brigarem – e Djalma diverte-se com a lembrança.
Orlando Senna, que se ocupou da produção do show, confirma o
episódio. “Roberto Sant’Ana era muito minucioso com relação à iluminação e ao
cenário, e achou que um gravador, por menor que fosse, iria interferir na luz e
no espaço”, conta. “Lembro-me que Djalma me chamou para ajudá-lo a convencer
Roberto, que foi convencido. Graças a esse gravador no meio do palco, temos
hoje uma preciosidade histórica e musical que Djalma pretende mostrar ao
mundo.”
Djalma revela outras curiosidades, como o fato de o
teatro estar localizado no jardim do Palácio do Governo. Em tempos de ditadura,
não era um mero detalhe. “O que acontecia já nos ensaios é que a gente estava
no meio de uma música e entrava a interferência do telégrafo do governo, e isso
aconteceu até no show, no meio de uma música. Isso minha gravação capta. Tanto
que uma das coisas que acho legal é a tradução desse código Morse e ver o que
eles estão dizendo.”
Uma das estrelas que emergiram naquele show, Gal
ficou feliz em saber sobre o documentário. “(O show) foi importante,
porque eu queria ser cantora, sempre quis isso. Então, foi o começo da minha
carreira, foi a primeira experiência no palco, primeiro enfrentamento com uma
plateia. Foi mais do que especial.”
Depoimento de Tom Zé, cantor e compositor
“Intervalo de ensaio. Lembrei-me de perguntar a alguém que estava mais próximo
de mim: “Este show tem nome?”
‘Nós, por exemplo.’
!!!?
Pelo hábito e pelo tipo de comentário que fazia
sobre os artistas que estavam em cena na época, não havia dúvida: aquele título
que agora me dava um choque era de Caetano. Meu sentimento estremeceu em vários
raios e direções.
‘NÓS, POR EXEMPLO.’
‘Então nós estamos incluídos no elenco nacional brasileiro?’
Uma ‘responsabilidade...’ Responsabilidade graúda
me atingiu em cheio. Nós, por exemplo. Aquela simples e inevitável vírgula no
interior do título ganhava um respeito nunca antes atribuído a um sinal de
pontuação. Ora, veja! Nós, por exemplo. Onde foi que eu fui me meter! Eram o
Brasil e a história da canção popular sobre nós, quer dizer, NÓS.
Que ousadia! Num relâmpago, me lembrei de ‘É de
manhã’, que Caetano já havia composto naquele tempo.
Nós.
Como Caetano era altivo!”
No ensaio do espetáculo: Djalma, Gal, Caetano, Gil e cia. Foto: Reprodução |
Acervo de Djalma Corrêa voltado à cultura popular passará por restauro
Uma parte do vasto acervo de Djalma Corrêa – que
tem como recorte os registros da cultura popular feitos pelo músico em suas
andanças pelo Brasil – passará por um importante processo de restauro,
digitalização e conservação. O projeto Acervo Djalma Corrêa: Música e Cultura
Afro-brasileira, de autoria de Cecília de Mendonça – cujo doutorado tem como
tema o acervo de Djalma –, foi contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018 e
terá início em abril. Entre o material que passará por esse processo, estão 60
fitas de áudio (rolo 7”), 500 imagens e 30 rolos de Super 8, que fazem parte do
acervo de Djalma voltado para o estudo das culturas populares brasileiras,
incluindo registros de pessoas, grupos, terreiros, festas populares, festivais
e encontros culturais.
“Djalma Corrêa reuniu em sua trajetória um acervo
muito extenso e muito rico. As primeiros gravações já têm mais de 50 anos. A
maior riqueza desse projeto é a possibilidade de fazer esse trabalho de
preservação do acervo na presença de Djalma, buscando qualificar cada registro
sonoro, cada fotografia, cada filme através da memória do seu criador”,
ressalta Cecília, que sempre se dedicou aos estudos na área de culturas
populares, do patrimônio imaterial e da música popular.
“Quando soube da existência desse acervo, com uma
diversidade enorme de registro pelo Brasil, logo vi a possibilidade de
desenvolver um trabalho de pesquisa mais intensiva sobre esse acervo ligado aos
registros da pesquisa de Djalma das culturas populares, da percussão
afro-brasileira e do universo dos terreiros”, ela conta. “Mas acaba que o
trabalho tem seu lado biográfico e é impossível dissociar da sua atuação da
chamada MPB. E consequentemente do seu acervo dos registro da música popular e
da música erudita também.”
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