Compacto
duplo que antecedeu o lançamento do disco ao vivo "Fatal-Gal a Todo
Vapor".
1971 - Setembro - Revista inTerValo |
Letra anotada por Gal Costa |
Direção de Produção: ROBERTO MENESCAL
Foto da capa :
WILMA DIAS GRUNFELD
1971 – GAL COSTA
Álbum GAL
“Sua estupidez” / “Zoilógico” // “Vapor Barato” / “Você não entende nada”
Philips EP nº 6245.004
1971
Documentário, 3"
“Gal Fa-Tal”
Fotografia,
câmera e direção: IVAN CARDOSO
Edição:
CLAUDIO TAMMELA
Produção:
TOPÁZIO FILMES 1971
Imagens inéditas de Gal Costa, no Pier de
Ipanema com Wilma Dias e Paulo Lima e no show “Gal a todo vapor”, intercalado
com cenas de “Nosferato no Brasil”.
1971
programa
em revista
13/10/1971 |
13/10/1971 |
13/10/1971 |
16/10/1971 |
19/12/1971 |
1971
programa
em revista
Ano II – n° 22
de 15/12/71 a 15/1/72
Revista mensal
31/12/1971 |
9/1/1972 |
9/1/1972 |
Fotos: Instagram / Acervo Paulo Lima
Suplemento
Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco
n° 105
Novembro 2014
CARTA DO
EDITOR
A Companhia das Letras tem,
desde o sucesso da sua antologia com Leminski, feito um trabalho dos melhores
para que repensemos a importância da poesia dos anos 1970, sempre ligada à
transgressão e quebra de valores. Há pouco, foi lançado um volumen reunindo
todo o trabalho de Waly Salomão. Mas talvez a melhor forma de entendermos o
impacto dessas palavras seja nos voltarmos a quem, efetivamente, concedeu
“carne” a esse universo: a cantora Gal Costa, musa da década de 1970 que, em
2015, completa 50 anos de carreira e 70 de nascimento.
Pela
voz de Gal Costa, talvez tenham saído os versos mais importantes que permearam aqueles
anos de chumbo: “Oh, baby, minha honey, baby”– trecho da canção Vapor
barato.
A matéria de capa dessa edição vem não só lembrar um momento da nossa
literatura, mas também a relação que a MPB teve com a construção poética e
imaginária de um país.
“Na
ebulição da década de 1970, Gal foi o corpo presente que trouxe esse significado último e, sobretudo, empreendeu a busca
pela palavra, por uma verdade. ‘Gal Costa foi,
na música, a voz que conseguiu fazer pontes entre a poética da contracultura e
o Brasil ‘comum’ – gente que ouve rádio, que vê televisão, que vai à padaria.
Em outras palavras:
transformou artistas como Waly Salomão, Jards Macalé e Torquato Neto em figuras
íntimas do brasileiro – para além de quem se interessa por poesia, por música
de invenção. E segue fazendo isso até hoje. A voz de Gal aproxima as pessoas
das coisas que ela escolhe. Foi assim com a poética transgressora dos anos
1970’, afirma o jornalista e crítico musical Marcus Preto”, aponta a reportagem
de capa, assinada pela jornalista Priscilla Campos.
Ainda
nesta edição, um passeio pela Buenos Aires de Beatriz Sarlo, um conto inédito
do escritor chileno Pedro Lemebel e um ensaio de Elvira Vigna sobre o status da
literatura como um pensamento não lógico (estético, justamente) e sempre incompleto,
precisando da outra pessoa para seguir em frente. “Estética, etimológicamente falando,
é o contrário de anestesia”, atesta.
Boa leitura e até dezembro.
- FA - TAL -
DE
COMO GAL
DEU
“CARNE”
À
POESIA DE
TRANSGRESSÃO
DOS
ANOS 1970
Oh minha
honey baby, baby, baby
Munida da
poesia de nomes como Waly Salomão, Gal “criou” os nossos anos 1970
Priscilla
Campos
É preciso lembrar: a geografia traz consigo muitas respostas. Uma ciência que
tem como objetivo estudar a relação da Terra com seus habitantes, traçando
inter-relações entre os encontros vivos — homem, animais, plantas — e a
localização de elementos — rios, montanhas, cidades —, não pode compactuar com
o tédio presunçoso do acaso. Em Salvador, existe um ponto geográfico chamado vértice
da península, onde é possível observar tanto o nascer quanto o pôr do sol
confluindo-se com as águas salgadas das marés (um fenómeno natural tido como
único nas terras banhadas pelo oceano Atlântico). Aqui traçamos certo
tipo de linha invisível — um dos melhores recursos cartográficos já criados —
que começa na tal região de embate terrestre, aéreo e marítimo; passa por espaços
públicos, avenidas, dique e orixás; terminando no pátio do Colégio Estadual Severino Vieira,
no Bairro de Nazaré. Durante um recreio barulhento, no início dos anos 1960, uma
moça de longos cabelos negros enfeitados com arranjo de flores vermelhas,
dedilhava o violão e entoava canções que, mais tarde, explodiriam com os Novos
Baianos.
Diante dessa força mística geográfica, —
a verdade é que os baianos, eles sim, entendem dos possíveis poderes siderais
que nascem do encontró entre um corpo vivo e os elementos da paisagem — a voz
de Maria da Graça Costa começou a ser ouvida. Na antiga fortaleza de São
Salvador, sempre cercada de lendas espirituais e feitiços ocultos, nascia uma
entidade feminina que foi capaz de conceder à linguagem potência brutal através
de sua performance e de seu timbre. A imagem de Gal Costa, descalça em cima do
palco, de um lado para o outro com sua saia rodada vociferando “Eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés”
é um dos símbolos da poética transgressora dos anos 1970.
A baiana aparece como o corpo do
desbunde total que transformou aquele espaço-tempo na década “das experiências e de poucas
intermediações. Não importava, realmente, se havia ou não registro, memória,
inventário do que se experimentava. A captura do momento fugaz, em toda a sua intensidade, era
privilégio e tormento de cada uma, de cada um”, como escreve a
jornalista e escritora Ana Maria Bahiana, em seu Almanaque anos 70.
“Antes de falar do papel de Gal nos anos
1970, é preciso falar do clima artístico da época. A década marca o primeiro
momento na história da arte moderna no Brasil em que corpo e arte se tornam indissociáveis
da vida. Se antes tivemos a action painting de Jackson Pollock, recurso estético de que se vale o
artista norte-americano para desconstruir os processos estáticos de criação do
quadro, no Brasil a aproximação de arte, política e vida torna frágil e
vulnerável o corpo humano que, durante a ditadura militar, se apresenta no
palco a cantar ou a atuar. O corpo deixa de ser estático para ser extático,
dionisíaco. Por ser apenas palavra, a literatura parecia menino atônito na
berlinda. Gal é transgressora. Bate na repressão e na censura por ser corpo em
movimento, palavra em ebulição e voz em enfrentamento das convenções
pequeno--burguesas que montam o regime de exceção. Nela, tudo funciona em
uníssono. Pela voz (notável) o corpo (sensual) transgride a caretice geral com
a poesia do barato, ainda que essa poesia seja escrita por outros”, observa o
crítico literário e romancista Silviano Santiago. Essa concepção de que a palavra
alheia necessita da carne para se lançar foi, talvez, a principal
característica da transgressão artística — e também política — dos anos 1970 no
Brasil. Nesse cenário, Gal Costa surge como a definição de feminino escrita
pela filósofa feminista Françoise Collin: o
aberto, o não uno, o infinito, o indefinido, a ilimitação.
Gal era a existência em seu mais extremo
grau de pulsão. A baiana, que completa 70 anos em 2015, converte-se então em um
objeto de análise direta com o conceito de desconstrução
apresentado pelo filósofo francês
Jacques Derrida.
PRESENÇA/AUSÊNCIA
& DESMANTELO
De acordo com Derrida, a fala sempre foi
interpretada na filosofia — desde Platão – como mais importante do que a
escrita, pois possui a posição de uma forma de linguagem primária. Em
contraponto, a escrita é “apenas” uma transcrição do que seria dito por meio da
comunicação oral. A fala está associada à presença
de alguém, como o filósofo alemão Ludwig
Klages definiu: “a ideia humanista de que há um eu (self) real
que é a origem do que está sendo dito”. Gal foi — e continua sendo — a representação da ideia do ser, da presença:
pensamento cêntrico em vários sistemas de conceitos da filosofia ocidental.
A metafísica
da presença existe, de acordo com alguns sistemas
filosóficos ocidentais, devido à desarmonia do binário presença/ausência, na qual
a presença, ligada à fala, é privilegiada. Como elucida o artigo O corpo desconstruído: argumentos para uma abordagem
desconstrucionista da corporeidade: “Em resumo,
esse privilégio da fala e da presença é o que Derrida chama logocentrismo: a
ideia de que há um sentido ou significado último existindo por si mesmo, como
fundamento, como essência (ou presença), um fundamento original que dá
sentido à existência do mundo e do Homem”.
Na ebulição da década de 1970, Gal foi o
corpo presente que trouxe esse significado
último e, sobretudo, empreendeu a busca pela
palavra, por uma verdade. “Gal Costa foi, na música, a voz que conseguiu fazer pontes
entre a poética da contracultura e o Brasil ‘comum’ — gente que ouve
rádio, que vê televisão, que vai à padaria. Em outras palavras: transformou
artistas como Waly Salomão, Jards Macalé e Torquato Neto em figuras íntimas do brasileiro
— para além de quem se interessa por poesia, por música de invenção. E segue
fazendo isso até hoje. A voz de Gal aproxima as pessoas das coisas que ela
escolhe. Foi assim com a poética transgressora dos anos 1970”, afirma o
jornalista e crítico musical Marcus Preto.
Porém,
a relação da baiana com os escritos transgressores dos anos 1970 não pode ser
desvendada apenas com o pensamento de hierarquia ligado à filosofia
pré-Derrida. Se, pelas definições de Platão, Merleau Ponty e outros pensadores,
Gal poderia ser considerada a presença
que
anula uma ausência — esta última, com
forte teor coletivo, relacionada à política opressora —, para Jacques Derrida,
talvez Gal Costa, apesar de não ser compositora e poeta, seja um símbolo do seu
conceito de desconstrução. Sobre os estudos do
francês, o professor norte-americano de teoria literária Jonathan Culler
escreve: “Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem
inevitável, mas uma construção produzida por discursos que se apoiam nela, e
mostrar que ela é uma construção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la
e reinscrevê-la — isto é, não destruí-la, mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento
diferentes”. As performances inesquecíveis de Gal Costa surgiam naquele momento
para dizer que a ideia ditatorial que os militares bradavam não
era natural. A opressão e a censura faziam parte de um discurso construído, e
antes mesmo de combatê-lo, desmantelá-lo, era preciso deixar claro que era
possível, com todo o fervor, evitá-lo, reinscrevê-lo, desconstruí-lo.
Mas,
assim como as comprovações da geografia, explosões mortíferas musicais e
políticas não tendem a acontecer por conta de aleatoriedades. O pesquisador
e
professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Rocha da Silva,
aponta uma linha evolutiva no cenário musical brasileiro na qual a baiana é um
centro importante e moderno. “Os fundamentos da chamada revolução poética
transgressora dos anos 1970 vêm de mais longe: da linha evolutiva da bossa
nova, do projeto concretista
e da perspectiva antropófaga de Oswald de Andrade, ao lado do teatro de Zé Celso
Martinez Correa e do Cinema Novo. Gal chega aos anos 1970 como a voz de um
movimento que durou pouco tempo como expressão coletiva de trabalho (1968 e
1969). Com o exílio de Caetano e Gil, com a norte de Torquato Neto, Gal se
torna a voz de um projeto estético de país que passava bem longe daquele preconizado
pelo samba do morro, pela música de protesto e pela bossa nova engajada, como o
de Elis Regina
ou Nara Leão. Ao misturar estilos como os de Nara Leão e Janis Joplin, os
trabalhos de Gal de 1969 a 1971 — ano de lançamento do Fa-tal — têm em sua voz talvez o principal
estandarte da nova poética transgressora.”
Ainda
no seu processo de estudos voltados à desconstrução, Derrida observa
que a voz, desde Aristóteles, ocupando o lugar de produtora dos primeiros símbolos,
mantém com a alma certa união.
A
fala seria, então, a substância de um “estado da alma”. O francês escreve:
“Entre o ser e a alma, as coisas e as afecções, haveria uma relação de tradução
ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de
simbolização convencional.
E
a primeira convenção, a que se referiría imediatamente à ordem da significação
natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada”.
Nesse
ponto, a imagem da intérprete baiana volta aos conceitos da filosofia pré-desconstrução: a voz como matéria-prima do espírito.
“Gal tem um entendimento da canção que foge da vulgaridade das interpretações
marcadas, intencionais. Ela entende a canção de dentro pra fora, começando pelo
cerne, pela essência, antes da compreensão prática. Acho que isso vem da escola
de João Gilberto. Ele
é o melhor cantor do mundo porque traz uma compreensão profunda da canção, não trabalha
a partir da superfície, como a maior parte dos cantores. Gal aprendeu isso
ouvindo João. Mas usou em outro contexto, mais de acordo com seu tempo. Acho
que é por isso que Gal é tão aberta a correr riscos. Ela se arriscou no
Tropicalismo, na contracultura,
na explosão comercial dos anos 80 (em que o risco era perder tudo) e fez isso
agora, com Recanto. Não tem medo do
risco porque sabe que a música está com ela, profundamente”, reflete Marcus
Preto.
“Da amizade com
Oiticica, Waly
trouxera o desejo
de se distanciar
da literatura, do
livro”, afirma
Silviano Santiago
Silviano Santiago
Jacques
Derrida e Aristóteles nunca acreditariam, mas foi em 1971, com o lançamento do
show — dirigido pelo poeta Waly Salomão — e, posteriormente, do disco -Fa-tal- Gal a todo vapor, que os
conceitos de presença, desconstrução e a voz como corpo da alma estiveram
juntos, em um encontro tido como impossível pela filosofia ocidental, naquele
palco do Teatro Teresa Raquel, em Copacabana.
ME SEGURA
Q’EU VOU DAR UM TROÇO
“Gal a todo vapor, o grande sucesso
da temporada, todas as noites, lá no Teresão. A todo vapor
mesmo. Era só a banda dar os primeiros acordes, que a turma das dunas desfiava
o resto, de cor. E pior, ninguém queria pagar. Pagar era um insulto. O teatro
era o Teresa Raquel, vulgo Teresão, lá em Copacabana.
E o diretor do show era o Waly Salomão. E dá-lhe convites. Principalmente
quando descia o Morro de São Carlos com o Melodia e toda aquela roda de bambas
e compositores de sambas. E ficavam na porta. Aí o Waly dava uns abraços
psicodélicos na Teresa Raquel e ficava falando loucuras no ouvido dela. Aí,
convite virava chuva de confete. Os convites eram tantos, que a Teresa Raquel
ficava nervosa, andando pelo saguão do teatro, num caften até os pés, gritando:
‘Eu não sou Jesus Cristo’.”, escreve o jornalista Zé Simão em As dunas de Gal, texto publicado no jornal O Globo em junho de 2005. A apresentação da baiana
virou instante obrigatório durante o verão carioca de 1972. O crítico musical Marcus
Preto afirma que o espetáculo foi catalizador de toda uma movimentação
criativa.
“Enquanto
o show ficou em cartaz, simpatizantes em potencial daquele espírito do desbunde
tinham o Teresa Raquel como referência, ponto de encontro (mesmo que não
entrassem para ver o show todas as noites).
E
se encontravam na Praia de Ipanema, durante o dia, nas Dunas da Gal - local que reunia, com frequência, cantores,
poetas, escritores, militantes políticos, no Posto 9. Surgiram muitas ideias de
livros, filmes, poemas e canções nesses dois cenários.
Várias
dessas ideias não se concretizaram, mas mesmo isso faz parte do desbunde. E da
criação.”
Simão
continua em seu artigo: “O caso é que aonde Gal ia, todo mundo ia atrás. Gal
era quieta. Mas sua presença acionava o motor. Ou melhor, o rotor. Porque o
babado era quente”. A partir de -Fa-tal
- Gal a todo vapor,
e da sua parceria com Waly, a baiana é, definitivamente, um arquétipo da
expressão freudiana pulsão de vida. De acordo com Freud,
existem duas pulsões: a de vida e a de
morte.
Ambas
estariam localizadas na fronteira entre o corpo e o psiquismo. O prazer, as
ligações amorosas que estabelecemos com o outro, com o mundo, o erotismo, o
impulso do vivo — características da pulsão
de vida — transbordavam
em Gal Costa, sorriso no rosto, barriga de fora, canga colorida na praia de
Copacabana. A pulsão de morte, manifestada por uma
compulsão à repetição, retorno à inércia e pela
agressividade, era a ditadura, os militares, os desaparecidos, as perseguições.
Os dois conceitos, segundo o filósofo e psicanalista austríaco, estão conectados:
a pulsão de vida surge impulsionada por
alta tensão, e leva o indivíduo — por meio do princípio do prazer – a procurar
objetos, situações, escapes, que minimizem os impactos da angústia.
Juntos,
Gal Costa e Waly Salomão fizeram parte tanto do conjunto de indivíduos que
buscaram destruir as pancadas do desespero quanto foram objetos — através de
suas produções poéticas, e de conteúdo visual, literário — apropriados por
tantos brasileiros que almejavam a liberdade diante dos tentáculos do regime
opressor.
Sobre
o relacionamento da dupla, Silviano Santiago disserta: “Ia além das composições
compostas por Waly e cantadas por Gal. Da amizade com Hélio Oiticica, em
Manhattan, Waly trouxera o desejo de se distanciar da literatura, do livro, e
passar a atuar na cena artística carioca como uma espécie de metteur-en-scène do barato. No caso de Oiticica, a mise-en-scène se fazia artes plásticas na vontade de reclamar
a participação do próprio espectador no processo de fruição da obra de arte.
Sujeito, objeto e espectador se casam no parangolé. Se bem me lembro, Wally
doou a Gal mais do que letras de música. Doou-lhe a mise-en-scène que o corpo sensual da cantora exigia em
frenesi. No espetáculo, Gal saía à procura da tropicalidade exemplar. Já Wally
queria ser uma espécie de Godard dos palcos cariocas, criando para Gal (e
também para Maria Bethânia) a estranheza desconcertante e desbundante de Jean
Seberg em Acossado. Ele, Waly, tão cafajeste
quanto Jean-Paul Belmondo, a modelar
as
divas pelo amor. Acho que a grande inspiração para o trabalho de Waly nos
palcos veio da capa maravilhosa que Hélio fez para o disco Legal (1970).
Os
cabelos de Gal — como os de Iracema, de Alencar — se transformam em fotogramas
que se encaixam, se montados, ao sabor das ondas. Há um cinema das ondas
do desbunde que desce dos cabelos negros e abundantes e da boca
vermelho-carmesim de Gal.
Tudo
a ver com o píer de Ipanema”. Se a baiana é a deusa, corpo imenso do desbunde
da década de 1970, Salomão foi o mesocarpo da linguagem.
Em
um ensaio dedicado ao livro Me segura
qu’eu vou dar um troço, de 1972, o professor e doutor em Língua e Literatura
Francesa da Universidade de São Paulo (USP),
Roberto Zular, escreve: “O chamado ambíguo que
dá título ao livro e marca o tom de Me
segura abre
um espaço tenso entre corpo e palavra que revela o hábil manejo dos ato
implícitos na fala. Mais do que um título, um pedido
da
presença do corpo na escrita e na leitura. Pedido contraditório, pois aponta os
limites dessa presença: a palavra incita o corpo, mas o corpo deve ceder à sua
mediação”. O início da análise feita por Zular define de forma certeira a poética
transgressora daquela década “muito doida” e parece não deixar brechas para
questionamentos sobre o arroubo das combinações realizadas entre Wally e Gal.
“-Fa-tal- Gal a todo vapor foi o disco em que
Gal se apresentou claramente como porta-voz da
Tropicália, e em um período muito especial.
Ela
cantava os companheiros exilados, mas sem o tom ‘conteudista’ da música de
protesto. Era um o despojamento dos figurinos, a simplicidade do canto. Todo o
projeto micropolítico que caracterizou o tipo de oposição à ditadura trazido
pelos tropicalistas estava ali, presente sob a rigorosa direção de
Waly. Foi a síntese, o ponto máximo e talvez derradeiro da experiência
tropicalista no Brasil”, afirma Alexandre Rocha.
DA MAIOR IMPORTÂNCIA
A cantora, ao lado de
Waly Salomão, que
também foi responsável
por alguns dos versos
que criaram o seu mito
É
dentro (e fora) de Me segura qu’eu vou dar um troço, como também na
capa de um dos discos mais importantes para a música brasileira, que surge a
expressão -FA-TAL-, fragmentada e em
letras maiúsculas, despojada de qualquer tipo de caretice linguística. Em A experiência opaca: literatura e desencanto, a professora e doutora
em literatura e linguagem, Florencia Garramuño, afirma que, na década de 1970,
começou a surgir no Brasil e na Argentina uma literatura que trabalha com os restos do real. Garramuño destaca o primeiro livro de
Waly como uma das obras da época
que
faz parte do surgimento dessa literatura autobiográfica, que se apropria das
experiências pessoais e não se distingue da vida. Escrito durante a prisão do
poeta carioca no Carandiru, Me segura tornou-se o marco
zero da poesia experimental brasileira. Sobre a capa da primeira edição, na
qual Waly, Zé Simão e uma garota aparecem segurando a faixa com a palabra desmembrada
por hífens enquanto o título da coletânea está impresso logo abaixo, Zular escreve: “Os limites e as virtudes entre corpo e
palavra são postos na mesa. Ficamos diante de uma palabra desesperada, na
iminência de um ataque de nervos ou, ainda, a palavra sedutora na ambígua conotação
sexual de ‘dar um troço’. Ficamos menos diante de uma frase do que de um gesto que se configura, se prepara, arma o corpo,
clama pela presença do outro”.
Para
o filósofo, crítico literário, compositor e poeta Antônio Cícero, - FA-TAL- é o que o artista plástico Luciano
Figueiredo chama de palavra-destaque. “Fez parte do
cenário em que o verbal se funde com o visual. Outra palavra-destaque é ‘violeto’, uma espécie de fusão
entre a cor violeta e violento. São invenções poéticas do Waly, os sentidos são
múltiplos. Há a ideia de fatalidade também.” Em uma entrevista
“Corpos não são
habitados como
espaços vazios.
Eles estão também
em andamento do
tempo”, aponta
Judith Butler
publicada no livro Anos fatais:
design, música e Tropicalismo, de
Jorge Caê Rodrigues, Figueiredo fala da concepção colaborativa que girou em
torno da produção da capa do disco e “da tentativa de valorizar a palabra a
poesia e uma relação forte com a imagem”: “O Gal-Fatal foi uma coisa muito importante e que confirma o que estava
acontecendo antes, porque eu, o Waly Salomão que dirigiu o show, com o Oscar, a
própria Gal e as pessoas em volta, nós sabíamos desse campo novo, muito
excitante, estimulante, que era a interação de linguagens. Na época, nós não
falávamos essa palavra: interação de linguagens nem interdisciplinaridade. Nós
só tínhamos uma certeza: era que nós nos alimentávamos muito um do outro, da
linguagem do outro, ou seja, era muito importante prestar atenção à poesia
(...) o close
up da boca da Gal com a palavra Fa-tal em cima, com o título grande — Gal a todo vapor — e atrás um outro corte fotográfico com detalhe da mão e
violão escrito mão violão, isso tudo era
pensado com muita precisão, muito intencional, a valorização da palavra”.
Em
relação à apropriação do FA-TAL pela cantora baiana
nos palcos, o professor Alexandre Rocha reflete sobre uma ascensão do devir-feminino, presente em todo o trabalho de Gal Costa.
“No Brasil, essa ideia chega ao apogeu no final dos anos 1970, início dos 1980,
com a onda de cantoras e compositoras feministas. Sob tal perspectiva, Gal foi
precursora. Em segundo lugar, a expressão designa a perspectiva fatal do
acontecimento estético-político: Gal protestava esteticamente, tornava presente
o folclore baiano com os acordes dissonantes da modernidade musical.
Poderia
ainda, próximo da superinterpretação, denunciar ironicamente as estratégias da
ditadura. Porém, mais importante que isso, e em uma significação que só pôde
vir a posteriori: Fa-tal designou o apogeu e
o fim do Tropicalismo em seu trabalho como motor estético. Os discos seguintes
evidenciam uma nova direção para sua carreira, menos experimental e mais lapidada,
joia rara, porém convencional”, conclui.
TUDO EM VOLTA ESTÁ
DESERTO, TUDO CERTO
Talvez a geografia seja uma ciência tão
resolutiva porque estabelece conexões com o afeto. Deixar-se atingir pela
paisagem e pela Terra (Por mais distante / o errante
navegante / quem jamais te esqueceria?) sempre
foi da maior importância para compreender o funcionamento das associações
individuais e coletivas, estabelecidas diante das exigências do mundo.
Seguindo a linha geográfica citada no
início deste texto, — acrescenta-se aqui uma curva que vai dar direto em 1971 —
não seria de se estranhar: -Fa-tal -
Gal a todo vapor tem como abertura uma canção do folclore
baiano. Eu sou uma fruta gogoia / eu sou
uma moça / eu sou calunga de louça / eu sou uma joia canta Gal Costa sem nenhum instrumento ao fundo.
A partir daí, começa sua homenagem aos
amigos, a entidade feminina que molda a voz de uma poética. O intérprete que
passa a ser considerado coautor, como explica o professor . “Coautor no sentido
de que, ao executar o canto a partir de projetos estilísticos bem-definidos,
produz, com os autores, uma nova canção. Talvez sejam tais cantores os autores
do acontecimento musical. Ao realizarem a música com suas vozes, instauram aquilo
a que Roland Barthes denominou de o
grão da voz. Sob tal perspectiva, Gal Costa tem sido
uma espécie de compositora também. Ela não escreve canções, nem compõe arranjos musicais;
porém instaura no seio da canção o grão
da voz.”
A respeito do processo de escuta na
linguagem, “do estranho privilégio do som na idealização, na produção do conceito
e na presença a si do sujeito”, Derrida, citando o filósofo alemão Hegel, expõe
a diferença entre uma apreensão subjetiva feita através dos olhos e outra
realizada pelos ouvidos: “Este movimento ideal, pelo qual, dir-se-ia, se
manifestara a simples subjetividade, a alma do corpo que ressoa, a orelha (o
ouvido) o percebe da mesma maneira teórica que aquela com que o olho percebe a cor ou a forma, a interioridade do objeto tornando-se assim a do
próprio sujeito. A orelha (ouvido) ao contrário, sem se
voltar praticamente para os objetos, percebe o resultado do tremor
interno do corpo pelo qual se manifesta e se revela, não a figura material, mas
uma primeira idealidade vinda da alma”. Tremor interno que soltava no ar quente
carioca versos tão doídos e viscerais como Não
choro / Meu segredo é que sou rapaz
esforçado / Fico parado, calado, quieto / Não corro, não choro, não converso.
Nas lembranças do exílio, que se
confundem com canções de amor, Como
dois e dois, Não
se esqueça de mim e Coração
vagabundo, todas compostas por Caetano Veloso.
Mas é na tríade Dê um rolê, Vapor barato e Luz dos olhos que o disco encontra seu âmago. Talvez a sensação de grau
zero e a premissa política, estética, linguística estejam presentes nessas faixas devido à
assinatura de Waly nas duas últimas (Vapor
barato em parceria com Jards Macalé) agregada
ao discurso público descabelado e ao vínculo antigo, da época do pátio escolar,
com Moraes Moreira (autor de Dê
um rolê, juntamente com Luiz Galvão). Enquanto eles se batem, dê um rolê e você vai ouvir/
Apenas quem já dizia/ Eu não tenho nada/ Antes de você ser eu sou, esbraveja Gal, um corpo que parecia entender exatamente
o que a filósofa feminista norte-americana Judith Butler quis dizer quando
escreveu, em Undoing gender: “Corpos não são habitados como espaços vazios. Eles estão, em sua espacialidade, também
em andamento no tempo: agindo, alterando a forma, alterando a significação —
dependendo das suas interações — e a rede de relações visuais, discursivas e
táteis que se tornam parte da sua historicidade, de seu passado, presente e
futuro constitutivos”.
PEFORMATIVIDADE
Na linha do pós-estruturalismo,
dialogando com as obras de Derrida e Hegel, Butler surge como um dos grandes
nomes da filosofia contemporânea, focada em estudos sobre feminismo, identidade
e sexo. Em suas investigações, a norte-americana travou um embate teórico com a ideia do performativo levantado
pelo filósofo inglês, J. L. Austin, em 1962.
De acordo com Austin, era preciso sair
da discussão baseada em verdadeiro-falso, descritivo-informativo e partir para
o fazer algo. A esse axioma, ele deu o nome de performativo.
Butler escolhe abordar o tema radicalizando a sua interpretação da linguagem, como
escreve a pesquisadora e professora Joana Plaza Pinto, em artigo publicado na
revista Cult: “A autora prefere discutir uma teoria da ação, de influência
fenomenológica, que seja radical em sua visão da linguagem, que torna o próprio
sujeito objeto de seu fazer”. Em 1997, ela cunha o termo performatividade em
sua obra Excitable speech: a politics of
performative, na qual questões sobre linguagem e subjetivação são debatidas.
Acerca da temática do ato de fala,
segundo os pensamentos de Butler, Joana Plaza disserta: “O ato de fala, na sua
eficácia performativa, obriga — violenta e arbitrariamente — o corpo a espaços de
inteligibilidade, de regulação e legitimação. A eficácia violenta do ato de fala é um
duplo: retirando sua força ilocucionária do ritual que o compõe, o ato da fala
mantém, para além do ritual, o traço da força que ajudou a produzir”. Com seu
entendimento do corpo como substância senhora do Tempo, que permanece em constante jornada espacial
visando alcançar, pelo ato da fala, e da ação performativa, diferentes lugares
— políticos, representativos de gênero, linguísticos, narrativos, poéticos —,
Butler parece delimitar — com certo rigor — a arrebentação provocada por Gal Costa na transgressão
dos anos 1970. Porque a coisa mais bonita da geografía é tentar aprisionar nos
símbolos cartográficos a imensidão desenfreada do corpo terrestre.