Publicado
em 03/01/2012
Duas vozes, um só cotidiano
Peculiares e
complementares, Chico Buarque e Caetano Veloso são vistos há cerca de 40 anos
como paralelos da música popular brasileira, da política e da cultura.
Carolina Drago
Os compositores
cantam ‘Você não entende nada’ e ‘Cotidiano’ em 1986, no programa da TV Globo
‘Chico & Caetano’. A primeira interpretação das canções, um momento
emblemático da interação entre os dois, aconteceu em 1972, em Salvador.
Foto:
Reprodução
“Você
gosta mais de Chico ou de Caetano?” A pergunta, recorrente nos círculos sociais
brasileiros, reflete a imagem dicotômica construída em torno dessas
personalidades da música, algo que acontece em proporção bem menor com outros
músicos contemporâneos – quantas vezes você já foi perguntado sobre gostar mais
de Maria Bethânia ou Gal Costa?
Embora representantes da música
popular brasileira, os dois compositores
tinham projetos artísticos próprios.
De outro, o carioca – com ‘Construção’, ‘Essa moça tá diferente’ e ‘Apesar de você’ – cantava o homem simples do subúrbio, o samba e a política do país. Resistente ao tropicalismo, à cultura do ‘espetáculo’ e à indústria cultural. Defensor das raízes da cultura popular, da bossa nova e de Mário de Andrade.
Mas, então, o que está por trás de tão persistente comparação? A historiadora da Universidade de São Paulo Priscila Gomes Correa (*) decidiu analisar a questão em sua tese de doutorado. Ela partiu das canções de Caetano Veloso e Chico Buarque que falavam sobre o cotidiano para tentar compreender melhor a imagem que opinião pública, imprensa e crítica construíram e reforçaram ao longo dos anos.
“Busquei entender o
que esses dois artistas representaram e como influenciaram nossa sociedade e
cultura ao longo de suas trajetórias”, explica Correa. Um detalhe: essa
relação entre Caetano e Chico, observa a pesquisadora, é própria do Brasil – de
nossas mídia e cultura. Na Europa, onde eles também são reconhecidos,
compará-los ou mesmo associá-los está longe de ser uma tendência.
Caetano (à esquerda) interpreta ‘A volta da Asa
Branca’ no Phono 73, festival de música marcado pela crítica à censura. Chico
Buarque e Gilberto Gil (à direita) tiveram seus microfones desligados enquanto
cantavam ‘Cálice’.
Fotograma:
Reprodução
Da cultura à política
Para
compreender essa tendência no Brasil, Correa não analisou só as letras das
canções, mas empreendeu um trabalho minucioso de escuta para observar também
voz, musicalidade, figurino e postura em palco. Além disso, resgatou centenas
de entrevistas, nas quais os artistas deixaram registrados alguns de seus
traços – muitas vezes banais, mas imediatamente associados a suas figuras
públicas.
Numa
delas, de 1977, Chico reclama da exploração política de sua imagem, em oposição
à de Caetano: “Eu permito isto nas épocas
de eleição. Agora, não posso permitir que se faça uma exploração política do
meu nome para atacar o Caetano Veloso [...] Algumas músicas dele, inclusive
neste último disco, têm, nitidamente, preocupações sociais”.
Discos
‘Construção’, de Chico Buarque, e ‘Araçá-Azul’, de Caetano Veloso. Nos anos
1970, com projetos mais amadurecidos, o primeiro consolida sua imagem de
artista ‘resistente à ditadura’ e o segundo, a radicalização do seu
tropicalismo.
Imagens: Reprodução
Esse
tipo de confronto – como Correa chama essa comparação eterna entre as duas
figuras – mostra que seus nomes carregam consigo um conjunto de valores já
assimilado pelo público. Outro episódio ilustrativo: depois de ser criticado
por Caetano, em 2009, o ex-presidente Lula declarou: “Minha resposta a Caetano eu dei ontem à noite, quando ouvi o CD do
Chico Buarque”.
Os
próprios artistas já se manifestaram sobre essa relação. A historiadora lembra
que suas declarações na imprensa eram bastante sugestivas – e iam além da
‘questão’ tropicalista, considerada o cerne da divergência entre os dois. Certa
vez, Caetano comentou: “Às vezes penso
que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque, mas é uma perseguição
amorosa. E tem dado bons resultados já faz muito tempo”.
Eu quero que você venha comigo... todo dia
Exemplo
desse bom resultado é o diálogo recorrente entre suas obras. Um dos momentos
mais emblemáticos dessa interação se passou em 1972, no palco do teatro Castro
Alves, em Salvador, onde os dois fizeram uma interpretação conjunta das canções
‘Você não entende nada’ (de Caetano)
e ‘Cotidiano’ (de Chico).
No
palco, ambos cantavam a rotina, a repetição, de certo modo a opressão – mas
também o desejo de transformá-las
No palco,
ambos cantavam a rotina,
a repetição, de certo modo a opressão – mas também o
desejo de transformá-las.
E fundiam seus estilos e letras no trecho
que une as
duas músicas:
‘eu quero que você venha comigo... todo dia’.
Por
outro lado, a realidade apresentada por Caetano em ‘Você não entende nada’ –
embora semelhante à de Chico em ‘Cotidiano’ – é cantada sob uma ótica mais
crítica, por um personagem mais arredio. Faz referências a produtos industriais
(“você traz a coca-cola / eu tomo”), gestos cotidianos e um desejo (“eu quero
que você venha comigo”) que não chega a se concretizar, marcado pela repetição
insistente e que se transforma em espera.
É
essa espera – como a de ‘Pedro Pedreiro’ – que indica a
transição para ‘Cotidiano’. “A longa introdução é na verdade um processo de
adaptação do tom”, explica Correa. “Chico subiu o tom para poder acompanhar
Caetano.” Na canção de Chico,
ainda mais pessimista, a rotina (“todo
dia ela faz tudo sempre igual”) oprime o personagem. Ao mesmo tempo, “me calo com a boca de feijão” é a
ditadura militar censurando o artista.
Para
a historiadora, essa fase artística de ambos é caracterizada por um certo
desespero. E o momento de transição das músicas é também, metaforicamente, o
ponto de junção entre suas críticas sociais.
Após
percorrer 40 anos de produção artística dos dois músicos, Correa se arrisca a
sintetizar: “Se fôssemos esquematizar os
percursos artísticos dos dois, encontraríamos predominantemente um indivíduo
que percorre as instâncias da cultura rumo à cotidianidade, em Caetano; e outro
que percorre os espaços da cotidianidade rumo à cultura, em Chico”.
Falando
ou não a mesma língua, não importa. Mas construindo, juntos, uma representação
do Brasil.
(*) Priscila Gomes Correa
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora de Teoria da História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) ‐ Brasil.
Tese de Doutorado
Do cotidiano
urbano à cultura: as canções de Caetano Veloso e de Chico Buarque
São Paulo, 2011
Resumo
Ao constatar a persistência do paralelo entre Caetano Veloso e Chico
Buarque, realizado por público, crítica e historiografia da música popular,
este estudo parte da identificação e compreensão do processo de elaboração de
suas representações artísticas, assim ultrapassando a noção de simples conflito
ao apontar também para perspectivas complementares ou convergentes. Uma
dinâmica muito mais rica que se revela a partir do confronto e análise
sistemática das obras desses dois artistas, que desde o despontar de suas
carreiras, em meados da década de 1960, apresentam a característica similar de
abordarem temas relativos à vida cotidiana, às relações entre cotidiano/cultura
e cidade/subúrbio. Com intensa atividade artística voltada para a reflexão
sobre o impacto da industrialização, do desenvolvimento do mercado e das
transformações culturais, suas canções versaram paralelamente sobre temas mais
amplos da cultura e sociedade brasileiras, assim constituindo trajetórias
artísticas ao mesmo tempo representativas e peculiares, cujas diversas
correlações expressaram percepções e ações com determinados embasamentos
sociais, capazes de revelar permanências e transformações no tecido da
história.
"NADA ME CONSOLA"
cotidiano e cultura nas canções
de Caetano Veloso e de Chico Buarque
No sétimo volume da Série Teses e Dissertações
a Doutora em História pela USP e professora da UNEB Priscila Gomes Correa trata
do cotidiano como trilha de experiências e sensibilidade para o artista, numa
busca de consolo em meio a tristeza da vida na história. Os compositores em
análise partilham suas aflições, sofrimentos e esperanças. A obra mostra como
através da música a história do Brasil se revela em aspectos culturais e
emocionais que permeiam o espírito coletivo.
Páginas: 228
Ano: 2016
Ano: 2016
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