sábado, 17 de junio de 2017

2011 - DUAS VOZES, UM SÓ COTIDIANO




Publicado em 03/01/2012

Duas vozes, um só cotidiano

Peculiares e complementares, Chico Buarque e Caetano Veloso são vistos há cerca de 40 anos como paralelos da música popular brasileira, da política e da cultura.  

Carolina Drago



Os compositores cantam ‘Você não entende nada’ e ‘Cotidiano’ em 1986, no programa da TV Globo ‘Chico & Caetano’. A primeira interpretação das canções, um momento emblemático da interação entre os dois, aconteceu em 1972, em Salvador. 
Foto: Reprodução


“Você gosta mais de Chico ou de Caetano?” A pergunta, recorrente nos círculos sociais brasileiros, reflete a imagem dicotômica construída em torno dessas personalidades da música, algo que acontece em proporção bem menor com outros músicos contemporâneos – quantas vezes você já foi perguntado sobre gostar mais de Maria Bethânia ou Gal Costa?


Embora representantes da música 
popular brasileira, os dois compositores 
tinham projetos artísticos próprios.

Embora representantes da música popular brasileira, os dois compositores tinham projetos artísticos próprios. De um lado, o baiano, com sua música ‘de vanguarda’, roupas extravagantes e empréstimos sonoros de ruídos e guitarras, expressava a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento. Tudo muito sintonizado com a modernidade internacional e os avanços tecnológicos.

De outro, o carioca – com ‘Construção’, ‘Essa moça tá diferente’ e ‘Apesar de você’ – cantava o homem simples do subúrbio, o samba e a política do país. Resistente ao tropicalismo, à cultura do ‘espetáculo’ e à indústria cultural. Defensor das raízes da cultura popular, da bossa nova e de Mário de Andrade.

Mas, então, o que está por trás de tão persistente comparação? A historiadora da Universidade de São Paulo Priscila Gomes Correa (*) decidiu analisar a questão em sua tese de doutorado. Ela partiu das canções de Caetano Veloso e Chico Buarque que falavam sobre o cotidiano para tentar compreender melhor a imagem que opinião pública, imprensa e crítica construíram e reforçaram ao longo dos anos.

“Busquei entender o que esses dois artistas representaram e como influenciaram nossa sociedade e cultura ao longo de suas trajetórias”, explica Correa. Um detalhe: essa relação entre Caetano e Chico, observa a pesquisadora, é própria do Brasil – de nossas mídia e cultura. Na Europa, onde eles também são reconhecidos, compará-los ou mesmo associá-los está longe de ser uma tendência.


Caetano (à esquerda) interpreta ‘A volta da Asa Branca’ no Phono 73, festival de música marcado pela crítica à censura. Chico Buarque e Gilberto Gil (à direita) tiveram seus microfones desligados enquanto cantavam ‘Cálice’. 
Fotograma: Reprodução


Da cultura à política

Para compreender essa tendência no Brasil, Correa não analisou só as letras das canções, mas empreendeu um trabalho minucioso de escuta para observar também voz, musicalidade, figurino e postura em palco. Além disso, resgatou centenas de entrevistas, nas quais os artistas deixaram registrados alguns de seus traços – muitas vezes banais, mas imediatamente associados a suas figuras públicas.

Numa delas, de 1977, Chico reclama da exploração política de sua imagem, em oposição à de Caetano: “Eu permito isto nas épocas de eleição. Agora, não posso permitir que se faça uma exploração política do meu nome para atacar o Caetano Veloso [...] Algumas músicas dele, inclusive neste último disco, têm, nitidamente, preocupações sociais”.



Discos ‘Construção’, de Chico Buarque, e ‘Araçá-Azul’, de Caetano Veloso. Nos anos 1970, com projetos mais amadurecidos, o primeiro consolida sua imagem de artista ‘resistente à ditadura’ e o segundo, a radicalização do seu tropicalismo.
Imagens: Reprodução


Esse tipo de confronto – como Correa chama essa comparação eterna entre as duas figuras – mostra que seus nomes carregam consigo um conjunto de valores já assimilado pelo público. Outro episódio ilustrativo: depois de ser criticado por Caetano, em 2009, o ex-presidente Lula declarou: “Minha resposta a Caetano eu dei ontem à noite, quando ouvi o CD do Chico Buarque”.

Os próprios artistas já se manifestaram sobre essa relação. A historiadora lembra que suas declarações na imprensa eram bastante sugestivas – e iam além da ‘questão’ tropicalista, considerada o cerne da divergência entre os dois. Certa vez, Caetano comentou: “Às vezes penso que minha profissão tem sido perseguir Chico Buarque, mas é uma perseguição amorosa. E tem dado bons resultados já faz muito tempo”.


Eu quero que você venha comigo... todo dia

Exemplo desse bom resultado é o diálogo recorrente entre suas obras. Um dos momentos mais emblemáticos dessa interação se passou em 1972, no palco do teatro Castro Alves, em Salvador, onde os dois fizeram uma interpretação conjunta das canções ‘Você não entende nada’ (de Caetano) e ‘Cotidiano’ (de Chico).

No palco, ambos cantavam a rotina, a repetição, de certo modo a opressão – mas também o desejo de transformá-las

No palco, ambos cantavam a rotina, 
a repetição, de certo modo a opressão – mas também o desejo de transformá-las. 
E fundiam seus estilos e letras no trecho 
que une as duas músicas: 
‘eu quero que você venha comigo... todo dia’.


Por outro lado, a realidade apresentada por Caetano em ‘Você não entende nada’ – embora semelhante à de Chico em ‘Cotidiano’ – é cantada sob uma ótica mais crítica, por um personagem mais arredio. Faz referências a produtos industriais (“você traz a coca-cola / eu tomo”), gestos cotidianos e um desejo (“eu quero que você venha comigo”) que não chega a se concretizar, marcado pela repetição insistente e que se transforma em espera.

É essa espera – como a de ‘Pedro Pedreiro’ – que indica a transição para ‘Cotidiano’. “A longa introdução é na verdade um processo de adaptação do tom”, explica Correa. “Chico subiu o tom para poder acompanhar Caetano.” Na canção de Chico, ainda mais pessimista, a rotina (“todo dia ela faz tudo sempre igual”) oprime o personagem. Ao mesmo tempo, “me calo com a boca de feijão” é a ditadura militar censurando o artista.

Para a historiadora, essa fase artística de ambos é caracterizada por um certo desespero. E o momento de transição das músicas é também, metaforicamente, o ponto de junção entre suas críticas sociais.

Após percorrer 40 anos de produção artística dos dois músicos, Correa se arrisca a sintetizar: “Se fôssemos esquematizar os percursos artísticos dos dois, encontraríamos predominantemente um indivíduo que percorre as instâncias da cultura rumo à cotidianidade, em Caetano; e outro que percorre os espaços da cotidianidade rumo à cultura, em Chico”.

Falando ou não a mesma língua, não importa. Mas construindo, juntos, uma representação do Brasil.



(*) Priscila Gomes Correa
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora de Teoria da História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)  Brasil.

Tese de Doutorado

Do cotidiano urbano à cultura: as canções de Caetano Veloso e de Chico Buarque
São Paulo, 2011

Resumo

Ao constatar a persistência do paralelo entre Caetano Veloso e Chico Buarque, realizado por público, crítica e historiografia da música popular, este estudo parte da identificação e compreensão do processo de elaboração de suas representações artísticas, assim ultrapassando a noção de simples conflito ao apontar também para perspectivas complementares ou convergentes. Uma dinâmica muito mais rica que se revela a partir do confronto e análise sistemática das obras desses dois artistas, que desde o despontar de suas carreiras, em meados da década de 1960, apresentam a característica similar de abordarem temas relativos à vida cotidiana, às relações entre cotidiano/cultura e cidade/subúrbio. Com intensa atividade artística voltada para a reflexão sobre o impacto da industrialização, do desenvolvimento do mercado e das transformações culturais, suas canções versaram paralelamente sobre temas mais amplos da cultura e sociedade brasileiras, assim constituindo trajetórias artísticas ao mesmo tempo representativas e peculiares, cujas diversas correlações expressaram percepções e ações com determinados embasamentos sociais, capazes de revelar permanências e transformações no tecido da história.





                                                                                                                
"NADA ME CONSOLA" 
cotidiano e cultura nas canções
de Caetano Veloso e de Chico Buarque

No sétimo volume da Série Teses e Dissertações a Doutora em História pela USP e professora da UNEB Priscila Gomes Correa trata do cotidiano como trilha de experiências e sensibilidade para o artista, numa busca de consolo em meio a tristeza da vida na história. Os compositores em análise partilham suas aflições, sofrimentos e esperanças. A obra mostra como através da música a história do Brasil se revela em aspectos culturais e emocionais que permeiam o espírito coletivo.
Páginas: 228
Ano: 2016



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