Leon Hirszman [Rio de Janeiro, 22/11/1937 — ib. 16/9/1987] |
1972
S. Bernardo
Brasil, 110 min
Direção: Leon Hirszman
Roteiro: Leon Hirszman, baseado no romance homônimo de Graciliano Ramos
Elenco: Othon Bastos, Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Vanda Lacerda, Mário Lago, Jofre Soares, Rodolfo Arena, Josef Guerreiro, José Policena, José Lucena, Angelo Labanca
Música
: Caetano Veloso
Fotografia: Lauro Escorel
Fotografia: Lauro Escorel
Febrero de 1972 - Caetano graba la banda sonora de la película
S. Bernardo
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São Bernardo é um clássico do cinema moderno brasileiro, que clama
por ser visto pelas novas gerações. Um drama psicológico em um panorama de
tensão social, mostrado para o espectador em regime de direção rigoroso e
contido, prenhe de beleza plástica e de reverência ao texto original de
Graciliano Ramos, interpretado por atores do quilate de Othon Bastos, Isabel
Ribeiro e Vanda Lacerda. Se não por tudo isso, São Bernardo precisa ser
apreciado para entendermos que a composição de música para filmes sempre poderá
trilhar caminhos criativos e singulares, explorando o infinito campo das
possibilidades de beleza e de articulação com o tecido dramático que ela pode
oferecer a um filme.” (2013, Guilherme
Maia, REVISTA DE CINEMA DA UFRB)
2013
REVISTA DE CINEMA DA UFRB
"ANO III N 5 2013"
ENTREVISTA COM CAETANO VELOSO
por Guilherme Maia e Guilherme Sarmiento
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Cinecachoeira – Você já trabalhou com grandes nomes do cinema nacional, como Leon Hirszman, Cacá Diegues, Neville de Almeida, Jorge Furtado, Júlio Bressane. Como vê essa relação diretor-compositor no contexto da sua prática de compor para filmes?
Caetano Veloso – O mais interessante foi a trilha de São Bernardo, que fizemos de modo precário, mas que resultou muito inspiradora. Como experiência de detalhar a trilha de um filme, minha colaboração com Cacá Diegues foi a mais rica. Tieta do agreste, um filme que adoro, me levou a criar várias canções que, retrabalhadas, serviam de tema para cenas dramáticas. E Orfeu, filme de que gosto bastante menos, foi minha mais completa experiência como trilheiro de verdade. Mesmo assim, imaginei uma música quase de cartoon (ou de partitura russa a que Eisenstein às vezes submetia sua mise en scène e sua montagem, como em Alexandre Nevsky) para as “bacantes” que matam Orfeu que traz Eurídice nos braços no final do filme, mas Cacá desaprovou totalmente a experiência. Nesse filme, gosto das cenas de polícia invadindo o morro (está ali toda a gênese dos favela movies que vieram depois – sendo homenagem ao documentário de João Moreira Salles, que veio antes) e do carnaval na avenida, mas não gosto da encenação do romance do casal central. Fiz temas bons para essas cenas, há algo que funciona e comove, mas não dá para fazer o drama do casal crescer. De todo modo, foi a trilha que mais compus. Jaques Morelenbaum sendo, pacientemente e com uma humildade emocionante, apenas aquele que transcreve as ideias de temas, timbres e contrapontos que me vinham à cabeça.
Cinecachoeira –Como foi o processo de concepção, criação e execução da música do filme São Bernardo?
Caetano Veloso – Como já disse, foi o mais interessante. Embora a concepção geral da música do filme tenha estado muito mais sob minha responsabilidade em Orfeu, de Cacá, do que em São Bernardo. Foi assim: eu tinha chegado de Londres e Leon me disse que queria que eu fizesse a música para sua adaptação do romance de Graciliano Ramos. A primeira coisa que eu disse foi: ele não gostava de música – e Nelson Pereira dos Santos resolveu isso perfeitamente em Vidas secas, usando apenas o ranger das rodas de carro de boi como trilha. Leon respondeu que eu poderia fazer algo como os grunhidos que eu tinha feito na gravação londrina de Asa branca. E me mostrou algumas cenas. O filme ainda não estava todo montado. Ele tinha um mini estúdio de 4 canais e eu ia improvisando sobre as cenas que eram projetadas. Fazia um take com uma voz e depois somava mais uma, duas ou três. Sempre revendo as imagens. Ficou bonito. ..."
A MÚSICA DE SÃO BERNARDO
Por Guilherme Maia
Músico e Professor da Facom e do Póscom (UFBA), Mestre em musicologia, Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas.
A presença do compositor e intérprete Caetano Veloso em trilhas sonoras pode ser medida por uma rápida consulta ao Internet Movie Database: Caetano tem o nome citado em 84 títulos, entre documentários e obras de ficção para cinema e televisão. Na maioria dos casos, as citações se referem ao uso de canções não compostas especificamente para o produto, mas o trabalho autoral de Caetano Veloso, no âmbito de composições para filmes, séries e novelas, também aparece em destaque. Colocamos aqui em foco o trabalho autoral de Caetano Veloso para o cinema e, em relevo, a música original de São Bernardo (Leon Hirszman, 1972), por considerarmos esse filme um espécime raro no reino da música para cinema.
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Canções são seres híbridos, compostos de palavra e melodia e, mesmo reverentes à riqueza melódica das canções compostas por Caetano Veloso, temos que nos render à evidência de que a fortuna simbólica por ele acumulada ao longo da carreira paga elevados tributos à qualidade literária de suas composições. Ao ouvir Caetano, saboreamos belas melodias, decerto, mas grande parte do encanto de suas canções reside no domínio das palavras cantadas. Um brevíssimo, mas emblemático, exemplo do encanto do qual aqui falamos pode ser saboreado em uma das rimas mais sagazes da nossa canção popular: “Pena de pavão de Krishna, maravilha, vixe Maria mãe de Deus”.
Na música que compôs pra o filme São Bernardo, entretanto, Caetano Veloso não utilizou uma palavra sequer. Adaptação para as telas do célebre romance de Graciliano Ramos, escrito no contexto da segunda fase do Modernismo brasileiro, quando muitos artistas se voltam para as temáticas sociais com foco nos problemas do Nordeste do país, o filme São Bernardo, dirigido por Leon Hirszman e estrelado por Othon Bastos e Isabel Ribeiro, mostra na tela uma história densa, narrada em primeira pessoa por Paulo Honório, o protagonista, que conta sua vida em retrospectiva. Uma infância difícil, um tempo na prisão, a vida como biscateiro pelo sertão após a liberdade, o início do sucesso como negociante, a compra da fazenda São Bernardo, o assassinato do rival, a prosperidade financeira, o casamento com Madalena, os desentendimentos do casal, o ciúme atormentado do protagonista, o suicídio da esposa, a ruína financeira e a solidão de um homem que vemos ao final atormentado pelas memórias.
Uma vida bruta, em um ambiente hostil, eivada de sofrimento e com final trágico, nos é mostrada pela via de uma montagem audiovisual em adágio, fortemente ancorada em um regime épico, no qual as belas imagens produzidas pela fotografia de Lauro Escorel muitas vezes ilustram o que a voz over enuncia. A música que participa desse jogo é um constante lamento vocal sem palavras que provoca algumas interessantes reflexões.
O material musical utilizado na música do filme é mínimo. De modo predominante, o que se ouve é somente a voz de Caetano Veloso ora em solo, ora a duas ou três vozes, entoando melodias nos modos característicos da música do Nordeste brasileiro – o mixolídio e o dórico. Algumas poucas vezes, o canto é acompanhado por um discreto bordão grave. Ao invés de palavras, a voz nos oferece apenas fonemas com uma entonação anasalada que remete diretamente à sonoridade dos repentistas e cantadores do sertão. Em uma primeira leitura, vemos que a conexão entre o que vemos e ouvimos, no que diz respeito à representação de mundo construída pelo filme, é óbvia e não foge ao padrão dominante, isto é, a música operando na dimensão que Claudia Gorbman (1987), falando sobre as funções da música no cinema clássico, classifica como narrativa referencial, um índice do tempo e do lugar construídos pela narrativa. É interessante, todavia, observar a música deste filme sob outras perspectivas.
Um primeiro aspecto a ser observado é o caráter idiossincrático da música que, mesmo em relação ao cinema contemporâneo, conserva um acentuado frescor de originalidade. É possível afirmar, sem grandes riscos, que a opção do compositor por um canto modal sem palavras e acompanhamento, sempre em andamento lento e permeado por silêncio, com uma textura polifônica bem próxima do estilo medieval, faz de São Bernardo um filme singular no mundo da música para cinema.
Na dimensão da montagem, observa-se que, na maioria das vezes em que a música é utilizada, isso se dá em conjunção com a voz do narrador. Apenas na abertura e em dois momentos da seção final do filme ouvimos a música em primeiro plano, sem a presença da voz over. É possível perceber também uma analogia entre os passos da montagem e os andamentos da músicas, sempre lentos, muitas vezes em tempo rubato, isto é, sem uma pulsação regular. Da mesma forma como acontece com os planos que se sucedem sem pressa, oferecendo ao espectador a oportunidade de saborear em cada um deles a direção de arte e a fotografia. No canto predominam notas longas, movimentos melódicos mínimos e silêncios.
O filme, portanto, faz um uso muito moderado de música em primeiro plano, optando por fazê-la operar sempre em conjunção com a narração. A rigor, desconsiderando a sequência dos créditos iniciais, a decupagem da trilha sonora nos mostra que a música é oferecida à escuta sem a presença da voz do narrador durante pouco mais de três minutos ao longo de quase duas horas de filme. Cabe aqui uma aposta inferencial de que o compositor tenha optado por não acrescentar palavras em um filme tão agudamente dominado pelas falas da narração e dos diálogos, bastante fiéis ao texto original, ademais.
De modo curioso, todavia, é uma música que, mesmo operando na maior parte do tempo como pano de fundo da narração over, chama atenção sobre si e goza de uma importante autonomia em relação ao drama. Não é uma unheard melody, como diz Claudia Gorbman (1987): ao contrário de uma fusão estrutural com a progressão dramática que faz com que a música opere em uma espécie de background perceptivo subserviente aos acontecimentos da encenação, em São Bernardo a música, pelo caráter incisivo da sua presença e por sua operação “descolada” da microtextura da trama, pode ser considerada uma estratégia de distanciamento. Isso não quer dizer que ela seja completamente indiferente ao fluxo de emoções da narrativa. Podemos observar que é ligeiramente mais ágil e alegre logo após o casamento de Paulo Honório e Madalena. A nota aguda solitária em falsete que antecipa em poucos fotogramas a informação de que Madalena está morta também é prova de que o filme, em alguns momentos, recorre à música em uma dimensão sentimental aderida ao fluxo dramático. De um modo dominante, entretanto, percebe-se nela um caráter estático do ponto de vista retórico – o centro estável da música modal e o uso constante de notas longas, sustentadas, em muito contribuem para isso. O que ouvimos, em uma macro escuta, é um longo sintagma de lamento conectado, certamente, com a tristeza e a desesperança que emana da fábula, mas, ao mesmo tempo, com autonomia em relação à progressão dramática. Não há crescendos nem mudanças harmônicas rítmicas ou melódicas subordinadas às filigranas do drama. A música opera em um regime de sentido que se articula mais com a sensação e o sentimento que emergem do filme como um todo do que com o fluxo dos acontecimentos ponto a ponto. Mesmo nos exemplos citados de momentos onde pode ser percebida um interação direta entre a música e a progressão dramática, isso acontece, via de regra, em uma dimensão minimalista.
10/8/1996
– Caetano com Heloísa de Medeiros Ramos (11/1/1910 – 23/7/1999), viúva de
Graciliano Ramos (1892/1953), na casa de Jorge Amado
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