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15/11/2024 - Foto: Ismael
Soares (Sistema Verdes Mares) |
“Estou
aqui, em primeiro lugar, como mulher, e digo isso a fim de marcar essa
necessidade sempre urgente de ampliar o lugar das mulheres na sociedade civil
brasileira. E mais, estou aqui como trabalhadora: como uma das muitas
trabalhadoras desse imenso, formidável e difícil País. Mas falo a partir de um
lugar específico: a música popular".
Maria
Bethânia - Cantora,
compositora e doutora honoris causa da UFC
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Maria Bethânia foi recebida pelo reitor da
UFC, Custódio Almeida, e pelo governador do Ceará, Elmano de Freitas - Foto: Ismael Soares |
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Custódio Almeida foi quem
entregou à artista as chamadas "vestes talares" ou "vestes
doutorais", mas, quando foi entregar a ela o capelo, "símbolo
doutoral", deixou que a própria se trajasse: "Uma rainha se coroa a
si mesma", celebrou o reitor. |
Discurso de
Maria Bethânia na sua Titulação de Doutora Honoris Causa, pela UFC.
15 de novembrode 2024
Ao ser homenageada nesta Universidade, devo,
primeiramente, eu mesma homenagear aqueles que ao logo desses muitos anos me
constituíram como artista. Minha dívida não é pequena. Minha vontade de
agradecer não é menor. Mas seriam tantos nomes que é impossível listá-los e
reconstituir tudo o que se passa no meu coração. Assim, limito-me a dizer que,
comigo, pisam neste chão uma série infinita de escritores, poetas,
compositores, cantores, artistas, amigos.
Agradeço aos membros da Universidade Federal do
Ceará, ao Excelentíssimo Senhor Reitor, Custódio Luís Silva de Almeida;
ao excelentíssimo Senhor Reitor da Universidade Federal da Bahia, Paulo
Cesar Miguez de Oliveira e ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação,
Camilo Santana.
Saúdo também todas as demais autoridades acadêmicas
presentes.
Agradeço ainda ao professor e poeta Eucanaã Ferraz
que me ouviu e orientou nesse discurso.
Minha gratidão vai, por fim, para todas as
autoridades presentes e para cada um dos senhores que aqui vieram para
participar dessa solenidade.
Não me formei em nenhuma Universidade. No entanto,
o espaço universitário não me é estranho. Para ser mais clara, preciso voltar
no tempo. O ano é 1960. Tenho apenas 13 para 14 anos. Como é costume em minha
família, vou para Salvador cursar o antigo ginásio no Colégio Severino Vieira.
Não é um momento fácil para mim. Não quero sair de Santo Amaro, não quero ficar
longe de minha família, de minha mãe, de minha cidade, de Nossa Senhora da
Purificação, nossa padroeira. Mas vou. Sigo com Caetano para Salvador, onde já
estão outros dois irmãos, Roberto e Rodrigo, e logo nossa irmã mais velha,
Nicinha, se junta a nós. Estou triste, mas da janela de nosso apartamento
vejo as águas do dique do Tororó e uma promessa de alegrias vem das suas águas,
calmas, verde escuro, silenciosas.
O tempo passa e guiada por Caetano sou tomada pelo
cenário artístico, cultural e humano da capital. Teatro é a minha paixão.
Ouvir os textos e ver o preparo dos atores me encanta e me revela a mim
mesma. Um desejo se acende com intensidade: viver no palco.
A UFBA, tendo à frente seu reitor, o professor
Edgard Santos, é o centro que sintetiza este momento incrivelmente singular, de
grande otimismo transformador. De lá irradia-se uma série de ideias e ações de
modernização cultural e educacional da Bahia. Trata-se de um projeto de
vanguarda: a criação está livre! a inteligência está solta! Cursos de música,
teatro e dança, o Centro de Estudos Afro-Orientais, uma imensa ciranda na qual
giram a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, Glauber Rocha e o melhor do
cinema, o melhor da dança, o teatro mais arrojado, a música clássica
experimental, a excelência da música popular.
Estamos em 1963, na montagem de Boca de
Ouro. A convite do diretor, Álvaro Guimarães, minha voz soa entoando a capela,
“Na cadência do samba”, de Ataulfo Alves”.
Também a convite de Álvaro Guimarães Caetano é
chamado para compor a trilha sonora do curta-metragem Moleques de rua e
sou chamada para interpretar. Minha vida vai, assim, tomando um rumo que eu não
previa. E tudo gira em torno da Universidade, de sua atmosfera, de suas
iniciativas e de sua capacidade de inventar vidas, de “lançar mundos no mundo”.
É o que deve ser um verdadeiro projeto educacional.
Como eterna aprendiz de trapezista, dou um salto –
no tempo. Seguimos para 2014. Em parceria com a inesquecível professora de
literatura portuguesa Cleonice Berardinelli, grande nome da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Faço com ela uma leitura que viraria o documentário O
vento lá fora, no qual apresentamos um panorama da poesia de Fernando
Pessoa e de seus heterônimos.
A convite da Universidade Federal de Minas Gerais,
tenho a oportunidade de levar ao auditório do campus um recital composto por
obras das literaturas brasileira e portuguesa, do qual resultaram no ano
seguinte, 2015, o registro audiovisual Bethânia e as palabras e o intitulado Caderno de Poesias.
No ano seguinte, a Universidade Federal da Bahia
concedeu a mim o título de Doutora Honoris Causa. De lá veio a indicação de meu
nome por um grupo de acadêmicos para ocupar a cadeira número 18 da
Academia de Letras da Bahia, o que se deu oficialmente em abril de 2023.
Não posso deixar de registrar, por fim, que em 2019
a Universidade Federal Rural de Pernambuco concedeu a mim a Láurea do Mérito
Cultural.
Eu e a Universidade temos, portanto, uma longa e
fértil amizade.
Poderia dizer que daremos agora um salto para fora
dos muros da Universidade; mas uma verdadeira casa de ensino não tem muros –
apenas portas, sempre abertas. Uma dessas portas leva a uma de minhas grandes
paixões: os trabalhos em escolas públicas que tomam como ponto de partida o
trabalho que realizo como intérprete de música popular e, inseparável dele,
minha atuação como leitora.
Citarei apenas três exemplos, a fim de dividir com
vocês minha alegria, meu entusiasmo e minha gratidão. O primeiro teve lugar na
Cidade do Rio de Janeiro, no Colégio Estadual Vicente Jannuzzi, sob a
responsabilidade da professora de filosofia Vânia Aparecida Silva Corrêa Pinto.
O álbum Brasileirinho, de 2003, foi convertido em mote para que os
estudantes debatessem a importância da literatura e da canção na cultura
brasileira, estimulando-os para a escuta atenta, a leitura, a escrita, a
pintura, um conjunto de ações, enfim, voltadas para a educação sensível,
criativa e ética. O projeto, com o título Brasileirinho: os tons da
aquarela cultural de nosso país, teve sua importância
reconhecida para além da sala de aula quando, em 2008, a professora Vânia
foi uma das vencedoras do prêmio “Professores do Brasil”, do Ministério da
Educação.
A segundo exemplo vem de Pernambuco, de uma escola
pública de Camaragibe, onde a professora Ana Cláudia Xavier desenvolveu o
projeto Dra. Maricotinha — Poesia da teoria à prática, destinado a
estudantes de diversos níveis e voltado para o desenvolvimento da escrita
criativa. A professora Ana Cláudia foi uma das vencedoras do prêmio Educador
Nota 10, da Fundação Victor Civita, em 2018.
A terceira iniciativa também nasceu em Camaragibe,
na Escola Municipal XV de Novembro, sob a responsabilidade da professora Audaci
Maria, no âmbito da primeira etapa do ensino básico, voltada para crianças
de até cinco anos de idade. Em 2015, a professora criou o Projeto Bethânia
Fulozinha, voltado para atividades lúdicas que promovem o aprendizado e o
desenvolvimento motor, cognitivo, social, emocional e físico dos alunos. O trabalho
culminou no jornalzinho Isso é onça!, feito pela turma do 4° ano da
Educação Infantil, que divulga a cada bimestre as invenções, brincadeiras,
desenhos e falas das crianças. O nome do jornal faz referência à canção “Moda
da onça”, tema popular adaptado por Paulo Vanzolini que gravei em 2014.
Quero registrar ainda uma iniciativa desenvolvida
no campo da saúde mental. Em 2015, o Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, por ocasião da exposição Maria de todos
nós, que comemorou meus cinquenta anos de carreira, reuniu diversas obras
plásticas realizadas por pacientes em oficinas intituladas Sextas Bethânicas.
Devo lembrar que muitos anos antes, em 1971, a cenografia do show Rosa dos
ventos, assinada por Flávio Império, foi desenvolvida com os internos da Casa
das palmeiras, que tinha à frente a pioneira doutora Nise da Silveira.
Hoje, mais uma vez, a Universidade me acolhe e
reconhece meu trabalho. Fosse eu uma professora, como tantos de vocês aqui,
falaria de escritores notáveis como Emília Freitas e Gerardo Melo Mourão,
ou de Rachel de Queiroz, a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de
Letras, entre outros filhos desta terra. Deveria falar do mítico Cego Aderaldo,
nascido no Crato em 1878, andarilho, tocador, improvisador. Limito-me,
porém a citar seus nomes.
Detenho-me um pouco, no entanto, na figura de Patativa
do Assaré, nascido em 1909. Mesmo nascido no seio de uma família pobre,
frequentou a escola, o que lhe garantiu a alfabetização. Por volta dos doze
anos, começou a fazer repentes e a se apresentar em festejos e cerimônias.
Por volta dos vinte anos, adotou definitivamente o pseudônimo Patativa,
porque sua poesia falada era comparável ao canto fino e melodioso dessa ave
brasileiríssima. Teve seu primeiro livro, Inspiração Nordestina, editado
em 1956.
Patativa do Assaré, artista raro, brilhante. Sempre
me emociono ao dizer seus versos:
Sou um poeta do mato
Vivo afastado dos meios
Minha rude lira canta
Casos bonitos e feios
Eu canto meus sentimentos
E os sentimentos alheios.
Canto da mata frondosa
A sua imensa beleza,
Onde vemos os sinais
Do pincel da natureza,
E quando é preciso eu canto
A mágoa, a dor e a tristeza.
O Crato e os poetas populares me levam ao nome que,
nesse dia tão especial, concentra todo o sentimento que sustenta a verdade da
palavra homenagem: Violeta Arraes Gervaiseau.
Maria Violeta Arraes de Alencar nasceu aqui, no
Ceará, em Araripe. Graduou-se em Sociologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e, em Pernambuco, foi presidente da Juventude
Universitária Católica de 1948 a 1950, tornando-se assistente de dom Hélder
Câmara, arcebispo de Recife e Olinda.
Em 1951, estudou no Centro Internacional de
Economia e Humanismo, em Paris, onde conheceu Pierre Gervaiseau, com quem se
casou. Na cidade, participou do Movimento de Cultura Popular, ao lado do grande
educador Paulo Freire. Esteve ao lado do irmão Miguel Arraes nos momentos que
culminaram com sua deposição e sua prisão na primeira hora do golpe militar, no
dia 1º de abril de 1964. Violeta foi presa com o marido e alguns meses depois
seguiu para o exílio na França. Lá, Violeta se pós-graduou em psicologia, exercendo
a função de psicoterapeuta.
Desde cedo, Violeta esteve ligada à vida acadêmica,
mas se expandiu para muito além dela, ligando-se fortemente aos meios
artísticos, culturais e políticos do Brasil e do exterior. Tornou-se bastante
conhecida pelo apoio que daria aos exilados brasileiros na França durante a
ditadura militar. Assim, ficou conhecida pelo belíssimo nome de “Rosa de
Paris”. Nada mais apropriado.
Caetano, em seu livro de memórias, Verdade
tropical, disse muito bem: “ela nos acolheu com um misto de carinho e
firmeza que só se encontra nos verdadeiros nordestinos”. Sua casa em Paris foi
um pouso seguro para intelectuais e artistas brasileiros perseguidos pelo
regime militar, e depois se transformou em algo mais amplo, convertendo-se num
verdadeiro centro de divulgação da arte e da cultura brasileiras na França.
Violeta apoiou também os movimentos
anticolonialistas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Com a anistia, em 1979, Violeta regressou ao
Brasil, mas cinco anos depois retornou à França, agora como adida cultural na
Embaixada brasileira. Mas o Ceará a trouxe de volta em 1987, para assumir a
Secretaria de Cultura do Estado. Dez anos depois, seria nomeada reitora da
Universidade Regional do Cariri, com sede no Crato. Agora sou “Magnífica”, ela
me dizia, rindo. Em seguida, juntamente com Pierre, criou a Fundação Araripe,
voltada para preservação da região onde nasceu. No Rio de Janeiro, no dia 7 de
junho de 2008, ela nos deixou.
Pisando este chão cearense, é irresistível afirmar
que ela era uma “fortaleza” – porque ela era sólida, segura, dona de uma força
moral, de uma energia e de uma constância extraordinárias. Doce e bela
fortaleza.
Lembrá-la me enche de emoção. Extraordinária,
engraçada, forte, lúcida, grande senhora e, como ela gostava de se dizer,
sertaneja. Ela foi para mim uma “outra” universidade, que me apresentou a
poesia do sertão e me deu muitos e altos ensinamentos. Gravei para ela um dos
sucessos de dona Inezita Barroso, a canção “Caipira de fato”.
Maria Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau,
patrimônio inestimável do Ceará, flor do sertão, cidadã do mundo, dedicou sua
vida à ação cultural e política movida pelo sonho de fazer deste país uma terra
de justiça, plena de igualdade e de beleza.
Como intérprete da canção popular, concluo minha
fala rendendo homenagem a um nome fundamental do nosso imenso e deslumbrante
cancioneiro: Humberto Teixeira.
Cearence de Iguatu, onde nasceu em 1915, mostrou
sua grandeza com a palavra cantada graças ao encontro com aquele que seria seu
principal parceiro, Luiz Gonzaga. Um encontro de gigantes. Compuseram em
parceria “Asa Branca”. Ao tratar das desventuras do homem nordestino vitimado
pela seca, a canção se converteu numa espécie de hino nacional, um retrato que
vai muito além de uma realidade regional e alcança algo universal: o sofrimento
e a esperança como forças antagônicas, mas que se equilibram dentro de cada um
de nós.
Este filho notável do Ceará é motivo de orgulho e
gratidão para todos os brasileiros, a quem devemos aclamar permanentemente.
A Universidade Federal do Ceará concede a mim o
honroso título de Doutora Honoris Causa, e isso me enche de alegria. Agradeço
mais uma vez. Mas acrescento que estou aqui, em primeiro lugar, como mulher; e
digo isso a fim de marcar a necessidade, sempre urgente, de ampliar o lugar das
mulheres na sociedade civil brasileira. E mais, estou aqui como trabalhadora,
como uma das muitas trabalhadoras deste imenso, formidável e difícil país. Mas
falo a partir de um lugar específico: a música popular. Aqui está ela: a canção
e sua história, a canção e sua força, a canção e seu sangue, a canção e suas
asas – o ritmo de suas asas –, a canção e suas dores, a canção e suas alegrias,
suas aleluias.
No Ceará, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas
Gerais, não importa onde, é sempre o palco que me conduz, este lugar sagrado,
lugar de festa, onde a menina de Santo Amaro fincou seus pés, e de onde, em
reverência, olha nos olhos da vida. E canta.
“Viver…” (Bethânia canta o refrão da
música “O que é, o que é?” de Gonzaguinha.)
Obrigada, senhores.
Maria Bethânia,
Novembro de 2024