viernes, 29 de marzo de 2019

1971 - GAL A TODO VAPOR







Compacto duplo que antecedeu o lançamento do disco ao vivo "Fatal-Gal a Todo Vapor". 




1971 - Setembro - Revista inTerValo














Letra anotada por Gal Costa











Direção de Produção: ROBERTO MENESCAL
Foto da capa : WILMA DIAS GRUNFELD


1971 – GAL COSTA
Álbum GAL

“Sua estupidez” / “Zoilógico” // “Vapor Barato” / “Você não entende nada”
Philips EP nº 6245.004













 




























1971
Documentário, 3"
 
“Gal Fa-Tal”
 
Fotografia, câmera e direção: IVAN CARDOSO
Edição: CLAUDIO TAMMELA
Produção: TOPÁZIO FILMES 1971
 
 
Imagens inéditas de Gal Costa, no Pier de Ipanema com Wilma Dias e Paulo Lima e no show “Gal a todo vapor”, intercalado com cenas de “Nosferato no Brasil”.



Torquato Neto





FALSA BAIANA (Geraldo Pereira)

NÃO SE ESQUEÇA DE MIM (Caetano Veloso)





















1971

programa
em revista








Acervo: Paulo Lima

Acervo: Paulo Lima







13/10/1971

13/10/1971

13/10/1971








  













1971
Revista Fatos e fotos
Pág. 38-39








 
 

 

 

 
 
 

 



Gal Costa e Wilma Dias (1954/1991) - Instagram
 



















 






 

 
 




16/10/1971

















 

 






















19/12/1971















 
 



















1971

programa
em revista

Ano II – n° 22

de 15/12/71 a 15/1/72

Revista mensal
















31/12/1971














9/1/1972

9/1/1972















































































 


Fotos: Instagram / Acervo Paulo Lima




















































PERNAMBUCO, Novembro 2014


Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco 
n° 105
Novembro 2014


CARTA DO EDITOR

A Companhia das Letras tem, desde o sucesso da sua antologia com Leminski, feito um trabalho dos melhores para que repensemos a importância da poesia dos anos 1970, sempre ligada à transgressão e quebra de valores. Há pouco, foi lançado um volumen reunindo todo o trabalho de Waly Salomão. Mas talvez a melhor forma de entendermos o impacto dessas palavras seja nos voltarmos a quem, efetivamente, concedeu “carne” a esse universo: a cantora Gal Costa, musa da década de 1970 que, em 2015, completa 50 anos de carreira e 70 de nascimento.

Pela voz de Gal Costa, talvez tenham saído os versos mais importantes que permearam aqueles anos de chumbo: “Oh, baby, minha honey, baby”– trecho da canção Vapor barato. A matéria de capa dessa edição vem não só lembrar um momento da nossa literatura, mas também a relação que a MPB teve com a construção poética e imaginária de um país.

“Na ebulição da década de 1970, Gal foi o corpo presente que trouxe esse significado último e, sobretudo, empreendeu a busca pela palavra, por uma verdade. ‘Gal Costa foi, na música, a voz que conseguiu fazer pontes entre a poética da contracultura e o Brasil ‘comum’ – gente que ouve rádio, que vê televisão, que vai à padaria. Em outras palavras: transformou artistas como Waly Salomão, Jards Macalé e Torquato Neto em figuras íntimas do brasileiro – para além de quem se interessa por poesia, por música de invenção. E segue fazendo isso até hoje. A voz de Gal aproxima as pessoas das coisas que ela escolhe. Foi assim com a poética transgressora dos anos 1970’, afirma o jornalista e crítico musical Marcus Preto”, aponta a reportagem de capa, assinada pela jornalista Priscilla Campos.

Ainda nesta edição, um passeio pela Buenos Aires de Beatriz Sarlo, um conto inédito do escritor chileno Pedro Lemebel e um ensaio de Elvira Vigna sobre o status da literatura como um pensamento não lógico (estético, justamente) e sempre incompleto, precisando da outra pessoa para seguir em frente. “Estética, etimológicamente falando, é o contrário de anestesia”, atesta.

Boa leitura e até dezembro.



FA TAL -

DE COMO GAL
DEU “CARNE”
À POESIA DE
TRANSGRESSÃO
DOS ANOS 1970





Oh minha honey baby, baby, baby

Munida da poesia de nomes como Waly Salomão, Gal “criou” os nossos anos 1970

Priscilla Campos

É preciso lembrar: a geografia traz consigo muitas respostas. Uma ciência que tem como objetivo estudar a relação da Terra com seus habitantes, traçando inter-relações entre os encontros vivos — homem, animais, plantas — e a localização de elementos — rios, montanhas, cidades —, não pode compactuar com o tédio presunçoso do acaso. Em Salvador, existe um ponto geográfico chamado vértice da península, onde é possível observar tanto o nascer quanto o pôr do sol confluindo-se com as águas salgadas das marés (um fenómeno natural tido como único nas terras banhadas pelo oceano Atlântico). Aqui traçamos certo tipo de linha invisível — um dos melhores recursos cartográficos já criados — que começa na tal região de embate terrestre, aéreo e marítimo; passa por espaços públicos, avenidas, dique e orixás; terminando no pátio do Colégio Estadual Severino Vieira, no Bairro de Nazaré. Durante um recreio barulhento, no início dos anos 1960, uma moça de longos cabelos negros enfeitados com arranjo de flores vermelhas, dedilhava o violão e entoava canções que, mais tarde, explodiriam com os Novos Baianos.

Diante dessa força mística geográfica, — a verdade é que os baianos, eles sim, entendem dos possíveis poderes siderais que nascem do encontró entre um corpo vivo e os elementos da paisagem — a voz de Maria da Graça Costa começou a ser ouvida. Na antiga fortaleza de São Salvador, sempre cercada de lendas espirituais e feitiços ocultos, nascia uma entidade feminina que foi capaz de conceder à linguagem potência brutal através de sua performance e de seu timbre. A imagem de Gal Costa, descalça em cima do palco, de um lado para o outro com sua saia rodada vociferando “Eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés” é um dos símbolos da poética transgressora dos anos 1970.

A baiana aparece como o corpo do desbunde total que transformou aquele espaço-tempo na década “das experiências e de poucas intermediações. Não importava, realmente, se havia ou não registro, memória, inventário do que se experimentava. A captura do momento fugaz, em toda a sua intensidade, era privilégio e tormento de cada uma, de cada um”, como escreve a jornalista e escritora Ana Maria Bahiana, em seu Almanaque anos 70.

“Antes de falar do papel de Gal nos anos 1970, é preciso falar do clima artístico da época. A década marca o primeiro momento na história da arte moderna no Brasil em que corpo e arte se tornam indissociáveis da vida. Se antes tivemos a action painting de Jackson Pollock, recurso estético de que se vale o artista norte-americano para desconstruir os processos estáticos de criação do quadro, no Brasil a aproximação de arte, política e vida torna frágil e vulnerável o corpo humano que, durante a ditadura militar, se apresenta no palco a cantar ou a atuar. O corpo deixa de ser estático para ser extático, dionisíaco. Por ser apenas palavra, a literatura parecia menino atônito na berlinda. Gal é transgressora. Bate na repressão e na censura por ser corpo em movimento, palavra em ebulição e voz em enfrentamento das convenções pequeno--burguesas que montam o regime de exceção. Nela, tudo funciona em uníssono. Pela voz (notável) o corpo (sensual) transgride a caretice geral com a poesia do barato, ainda que essa poesia seja escrita por outros”, observa o crítico literário e romancista Silviano Santiago. Essa concepção de que a palavra alheia necessita da carne para se lançar foi, talvez, a principal característica da transgressão artística — e também política — dos anos 1970 no Brasil. Nesse cenário, Gal Costa surge como a definição de feminino escrita pela filósofa feminista Françoise Collin: o aberto, o não uno, o infinito, o indefinido, a ilimitação.

Gal era a existência em seu mais extremo grau de pulsão. A baiana, que completa 70 anos em 2015, converte-se então em um objeto de análise direta com o conceito de desconstrução apresentado pelo filósofo francês Jacques Derrida.

PRESENÇA/AUSÊNCIA & DESMANTELO

De acordo com Derrida, a fala sempre foi interpretada na filosofia — desde Platão – como mais importante do que a escrita, pois possui a posição de uma forma de linguagem primária. Em contraponto, a escrita é “apenas” uma transcrição do que seria dito por meio da comunicação oral. A fala está associada à presença de alguém, como o filósofo alemão Ludwig Klages definiu: “a ideia humanista de que há um eu (self) real que é a origem do que está sendo dito”. Gal foi — e continua sendo — a representação da ideia do ser, da presença: pensamento cêntrico em vários sistemas de conceitos da filosofia ocidental.

A metafísica da presença existe, de acordo com alguns sistemas filosóficos ocidentais, devido à desarmonia do binário presença/ausência, na qual a presença, ligada à fala, é privilegiada. Como elucida o artigo O corpo desconstruído: argumentos para uma abordagem desconstrucionista da corporeidade: “Em resumo, esse privilégio da fala e da presença é o que Derrida chama logocentrismo: a ideia de que há um sentido ou significado último existindo por si mesmo, como fundamento, como essência (ou presença), um fundamento original que dá sentido à existência do mundo e do Homem”.

Na ebulição da década de 1970, Gal foi o corpo presente que trouxe esse significado último e, sobretudo, empreendeu a busca pela palavra, por uma verdade. “Gal Costa foi, na música, a voz que conseguiu fazer pontes entre a poética da contracultura e o Brasil ‘comum’ — gente que ouve rádio, que vê televisão, que vai à padaria. Em outras palavras: transformou artistas como Waly Salomão, Jards Macalé e Torquato Neto em figuras íntimas do brasileiro — para além de quem se interessa por poesia, por música de invenção. E segue fazendo isso até hoje. A voz de Gal aproxima as pessoas das coisas que ela escolhe. Foi assim com a poética transgressora dos anos 1970”, afirma o jornalista e crítico musical Marcus Preto.

Porém, a relação da baiana com os escritos transgressores dos anos 1970 não pode ser desvendada apenas com o pensamento de hierarquia ligado à filosofia pré-Derrida. Se, pelas definições de Platão, Merleau Ponty e outros pensadores, Gal poderia ser considerada a presença que anula uma ausência — esta última, com forte teor coletivo, relacionada à política opressora —, para Jacques Derrida, talvez Gal Costa, apesar de não ser compositora e poeta, seja um símbolo do seu conceito de desconstrução. Sobre os estudos do francês, o professor norte-americano de teoria literária Jonathan Culler escreve: “Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem inevitável, mas uma construção produzida por discursos que se apoiam nela, e mostrar que ela é uma construção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la — isto é, não destruí-la, mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes”. As performances inesquecíveis de Gal Costa surgiam naquele momento para dizer que a ideia ditatorial que os militares bradavam não era natural. A opressão e a censura faziam parte de um discurso construído, e antes mesmo de combatê-lo, desmantelá-lo, era preciso deixar claro que era possível, com todo o fervor, evitá-lo, reinscrevê-lo, desconstruí-lo.

Mas, assim como as comprovações da geografia, explosões mortíferas musicais e políticas não tendem a acontecer por conta de aleatoriedades. O pesquisador
e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Rocha da Silva, aponta uma linha evolutiva no cenário musical brasileiro na qual a baiana é um centro importante e moderno. “Os fundamentos da chamada revolução poética transgressora dos anos 1970 vêm de mais longe: da linha evolutiva da bossa nova, do projeto concretista e da perspectiva antropófaga de Oswald de Andrade, ao lado do teatro de Zé Celso Martinez Correa e do Cinema Novo. Gal chega aos anos 1970 como a voz de um movimento que durou pouco tempo como expressão coletiva de trabalho (1968 e 1969). Com o exílio de Caetano e Gil, com a norte de Torquato Neto, Gal se torna a voz de um projeto estético de país que passava bem longe daquele preconizado pelo samba do morro, pela música de protesto e pela bossa nova engajada, como o de Elis Regina ou Nara Leão. Ao misturar estilos como os de Nara Leão e Janis Joplin, os trabalhos de Gal de 1969 a 1971 — ano de lançamento do Fa-tal — têm em sua voz talvez o principal estandarte da nova poética transgressora.”

Ainda no seu processo de estudos voltados à desconstrução, Derrida observa que a voz, desde Aristóteles, ocupando o lugar de produtora dos primeiros símbolos, mantém com a alma certa união.

A fala seria, então, a substância de um “estado da alma”. O francês escreve: “Entre o ser e a alma, as coisas e as afecções, haveria uma relação de tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização convencional.

E a primeira convenção, a que se referiría imediatamente à ordem da significação natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada”.

Nesse ponto, a imagem da intérprete baiana volta aos conceitos da filosofia pré-desconstrução: a voz como matéria-prima do espírito. “Gal tem um entendimento da canção que foge da vulgaridade das interpretações marcadas, intencionais. Ela entende a canção de dentro pra fora, começando pelo cerne, pela essência, antes da compreensão prática. Acho que isso vem da escola de João Gilberto. Ele é o melhor cantor do mundo porque traz uma compreensão profunda da canção, não trabalha a partir da superfície, como a maior parte dos cantores. Gal aprendeu isso ouvindo João. Mas usou em outro contexto, mais de acordo com seu tempo. Acho que é por isso que Gal é tão aberta a correr riscos. Ela se arriscou no Tropicalismo, na contracultura, na explosão comercial dos anos 80 (em que o risco era perder tudo) e fez isso agora, com Recanto. Não tem medo do risco porque sabe que a música está com ela, profundamente”, reflete Marcus Preto.


“Da amizade com
Oiticica, Waly
trouxera o desejo
de se distanciar
da literatura, do
livro”, afirma
Silviano Santiago


Jacques Derrida e Aristóteles nunca acreditariam, mas foi em 1971, com o lançamento do show — dirigido pelo poeta Waly Salomão — e, posteriormente, do disco -Fa-tal- Gal a todo vapor, que os conceitos de presença, desconstrução e a voz como corpo da alma estiveram juntos, em um encontro tido como impossível pela filosofia ocidental, naquele palco do Teatro Teresa Raquel, em Copacabana.

ME SEGURA Q’EU VOU DAR UM TROÇO

“Gal a todo vapor, o grande sucesso da temporada, todas as noites, lá no Teresão. A todo vapor mesmo. Era só a banda dar os primeiros acordes, que a turma das dunas desfiava o resto, de cor. E pior, ninguém queria pagar. Pagar era um insulto. O teatro era o Teresa Raquel, vulgo Teresão, lá em Copacabana. E o diretor do show era o Waly Salomão. E dá-lhe convites. Principalmente quando descia o Morro de São Carlos com o Melodia e toda aquela roda de bambas e compositores de sambas. E ficavam na porta. Aí o Waly dava uns abraços psicodélicos na Teresa Raquel e ficava falando loucuras no ouvido dela. Aí, convite virava chuva de confete. Os convites eram tantos, que a Teresa Raquel ficava nervosa, andando pelo saguão do teatro, num caften até os pés, gritando: ‘Eu não sou Jesus Cristo’.”, escreve o jornalista Zé Simão em As dunas de Gal, texto publicado no jornal O Globo em junho de 2005. A apresentação da baiana virou instante obrigatório durante o verão carioca de 1972. O crítico musical Marcus Preto afirma que o espetáculo foi catalizador de toda uma movimentação criativa.

“Enquanto o show ficou em cartaz, simpatizantes em potencial daquele espírito do desbunde tinham o Teresa Raquel como referência, ponto de encontro (mesmo que não entrassem para ver o show todas as noites).

E se encontravam na Praia de Ipanema, durante o dia, nas Dunas da Gal - local que reunia, com frequência, cantores, poetas, escritores, militantes políticos, no Posto 9. Surgiram muitas ideias de livros, filmes, poemas e canções nesses dois cenários.

Várias dessas ideias não se concretizaram, mas mesmo isso faz parte do desbunde. E da criação.”

Simão continua em seu artigo: “O caso é que aonde Gal ia, todo mundo ia atrás. Gal era quieta. Mas sua presença acionava o motor. Ou melhor, o rotor. Porque o babado era quente”. A partir de -Fa-tal - Gal a todo vapor, e da sua parceria com Waly, a baiana é, definitivamente, um arquétipo da expressão freudiana pulsão de vida. De acordo com Freud, existem duas pulsões: a de vida e a de morte.

Ambas estariam localizadas na fronteira entre o corpo e o psiquismo. O prazer, as ligações amorosas que estabelecemos com o outro, com o mundo, o erotismo, o impulso do vivo — características da pulsão de vida — transbordavam em Gal Costa, sorriso no rosto, barriga de fora, canga colorida na praia de Copacabana. A pulsão de morte, manifestada por uma compulsão à repetição, retorno à inércia e pela agressividade, era a ditadura, os militares, os desaparecidos, as perseguições. Os dois conceitos, segundo o filósofo e psicanalista austríaco, estão conectados: a pulsão de vida surge impulsionada por alta tensão, e leva o indivíduo — por meio do princípio do prazer – a procurar objetos, situações, escapes, que minimizem os impactos da angústia.

Juntos, Gal Costa e Waly Salomão fizeram parte tanto do conjunto de indivíduos que buscaram destruir as pancadas do desespero quanto foram objetos — através de suas produções poéticas, e de conteúdo visual, literário — apropriados por tantos brasileiros que almejavam a liberdade diante dos tentáculos do regime opressor.

Sobre o relacionamento da dupla, Silviano Santiago disserta: “Ia além das composições compostas por Waly e cantadas por Gal. Da amizade com Hélio Oiticica, em Manhattan, Waly trouxera o desejo de se distanciar da literatura, do livro, e passar a atuar na cena artística carioca como uma espécie de metteur-en-scène do barato. No caso de Oiticica, a mise-en-scène se fazia artes plásticas na vontade de reclamar a participação do próprio espectador no processo de fruição da obra de arte. Sujeito, objeto e espectador se casam no parangolé. Se bem me lembro, Wally doou a Gal mais do que letras de música. Doou-lhe a mise-en-scène que o corpo sensual da cantora exigia em frenesi. No espetáculo, Gal saía à procura da tropicalidade exemplar. Já Wally queria ser uma espécie de Godard dos palcos cariocas, criando para Gal (e também para Maria Bethânia) a estranheza desconcertante e desbundante de Jean Seberg em Acossado. Ele, Waly, tão cafajeste quanto Jean-Paul Belmondo, a modelar
as divas pelo amor. Acho que a grande inspiração para o trabalho de Waly nos palcos veio da capa maravilhosa que Hélio fez para o disco Legal (1970).

Os cabelos de Gal — como os de Iracema, de Alencar — se transformam em fotogramas que se encaixam, se montados, ao sabor das ondas. Há um cinema das ondas do desbunde que desce dos cabelos negros e abundantes e da boca vermelho-carmesim de Gal.

Tudo a ver com o píer de Ipanema”. Se a baiana é a deusa, corpo imenso do desbunde da década de 1970, Salomão foi o mesocarpo da linguagem.
Em um ensaio dedicado ao livro Me segura qu’eu vou dar um troço, de 1972, o professor e doutor em Língua e Literatura Francesa da Universidade de São Paulo (USP), Roberto Zular, escreve: “O chamado ambíguo que dá título ao livro e marca o tom de Me segura abre um espaço tenso entre corpo e palavra que revela o hábil manejo dos ato implícitos na fala. Mais do que um título, um pedido da presença do corpo na escrita e na leitura. Pedido contraditório, pois aponta os limites dessa presença: a palavra incita o corpo, mas o corpo deve ceder à sua mediação”. O início da análise feita por Zular define de forma certeira a poética transgressora daquela década “muito doida” e parece não deixar brechas para questionamentos sobre o arroubo das combinações realizadas entre Wally e Gal. “-Fa-tal- Gal a todo vapor foi o disco em que Gal se apresentou claramente como porta-voz da Tropicália, e em um período muito especial.


Ela cantava os companheiros exilados, mas sem o tom ‘conteudista’ da música de protesto. Era um o despojamento dos figurinos, a simplicidade do canto. Todo o projeto micropolítico que caracterizou o tipo de oposição à ditadura trazido pelos tropicalistas estava ali, presente sob a rigorosa direção de Waly. Foi a síntese, o ponto máximo e talvez derradeiro da experiência tropicalista no Brasil”, afirma Alexandre Rocha.



DA MAIOR IMPORTÂNCIA
A cantora, ao lado de
Waly Salomão, que
também foi responsável
por alguns dos versos
que criaram o seu mito






É dentro (e fora) de Me segura qu’eu vou dar um troço, como também na capa de um dos discos mais importantes para a música brasileira, que surge a expressão -FA-TAL-, fragmentada e em letras maiúsculas, despojada de qualquer tipo de caretice linguística. Em A experiência opaca: literatura e desencanto, a professora e doutora em literatura e linguagem, Florencia Garramuño, afirma que, na década de 1970, começou a surgir no Brasil e na Argentina uma literatura que trabalha com os restos do real. Garramuño destaca o primeiro livro de Waly como uma das obras da época
que faz parte do surgimento dessa literatura autobiográfica, que se apropria das experiências pessoais e não se distingue da vida. Escrito durante a prisão do poeta carioca no Carandiru, Me segura tornou-se o marco zero da poesia experimental brasileira. Sobre a capa da primeira edição, na qual Waly, Zé Simão e uma garota aparecem segurando a faixa com a palabra desmembrada por hífens enquanto o título da coletânea está impresso logo abaixo, Zular escreve: “Os limites e as virtudes entre corpo e palavra são postos na mesa. Ficamos diante de uma palabra desesperada, na iminência de um ataque de nervos ou, ainda, a palavra sedutora na ambígua conotação sexual de ‘dar um troço’. Ficamos menos diante de uma frase do que de um gesto que se configura, se prepara, arma o corpo, clama pela presença do outro”.

Para o filósofo, crítico literário, compositor e poeta Antônio Cícero, - FA-TAL- é o que o artista plástico Luciano Figueiredo chama de palavra-destaque. “Fez parte do cenário em que o verbal se funde com o visual. Outra palavra-destaque é ‘violeto’, uma espécie de fusão entre a cor violeta e violento. São invenções poéticas do Waly, os sentidos são múltiplos. Há a ideia de fatalidade também.” Em uma entrevista


“Corpos não são
habitados como
espaços vazios.
Eles estão também
em andamento do
tempo”, aponta
Judith Butler


publicada no livro Anos fatais: design, música e Tropicalismo, de Jorge Caê Rodrigues, Figueiredo fala da concepção colaborativa que girou em torno da produção da capa do disco e “da tentativa de valorizar a palabra a poesia e uma relação forte com a imagem”: “O Gal-Fatal foi uma coisa muito importante e que confirma o que estava acontecendo antes, porque eu, o Waly Salomão que dirigiu o show, com o Oscar, a própria Gal e as pessoas em volta, nós sabíamos desse campo novo, muito excitante, estimulante, que era a interação de linguagens. Na época, nós não falávamos essa palavra: interação de linguagens nem interdisciplinaridade. Nós só tínhamos uma certeza: era que nós nos alimentávamos muito um do outro, da linguagem do outro, ou seja, era muito importante prestar atenção à poesia (...) o close up da boca da Gal com a palavra Fa-tal em cima, com o título grande — Gal a todo vapor — e atrás um outro corte fotográfico com detalhe da mão e violão escrito mão violão, isso tudo era pensado com muita precisão, muito intencional, a valorização da palavra”.

Em relação à apropriação do FA-TAL pela cantora baiana nos palcos, o professor Alexandre Rocha reflete sobre uma ascensão do devir-feminino, presente em todo o trabalho de Gal Costa. “No Brasil, essa ideia chega ao apogeu no final dos anos 1970, início dos 1980, com a onda de cantoras e compositoras feministas. Sob tal perspectiva, Gal foi precursora. Em segundo lugar, a expressão designa a perspectiva fatal do acontecimento estético-político: Gal protestava esteticamente, tornava presente o folclore baiano com os acordes dissonantes da modernidade musical.
Poderia ainda, próximo da superinterpretação, denunciar ironicamente as estratégias da ditadura. Porém, mais importante que isso, e em uma significação que só pôde vir a posteriori: Fa-tal designou o apogeu e o fim do Tropicalismo em seu trabalho como motor estético. Os discos seguintes evidenciam uma nova direção para sua carreira, menos experimental e mais lapidada, joia rara, porém convencional”, conclui.

TUDO EM VOLTA ESTÁ DESERTO, TUDO CERTO

Talvez a geografia seja uma ciência tão resolutiva porque estabelece conexões com o afeto. Deixar-se atingir pela paisagem e pela Terra (Por mais distante / o errante navegante / quem jamais te esqueceria?) sempre foi da maior importância para compreender o funcionamento das associações individuais e coletivas, estabelecidas diante das exigências do mundo.

Seguindo a linha geográfica citada no início deste texto, — acrescenta-se aqui uma curva que vai dar direto em 1971 — não seria de se estranhar: -Fa-tal - Gal a todo vapor tem como abertura uma canção do folclore baiano. Eu sou uma fruta gogoia / eu sou uma moça / eu sou calunga de louça / eu sou uma joia canta Gal Costa sem nenhum instrumento ao fundo.



A partir daí, começa sua homenagem aos amigos, a entidade feminina que molda a voz de uma poética. O intérprete que passa a ser considerado coautor, como explica o professor . “Coautor no sentido de que, ao executar o canto a partir de projetos estilísticos bem-definidos, produz, com os autores, uma nova canção. Talvez sejam tais cantores os autores do acontecimento musical. Ao realizarem a música com suas vozes, instauram aquilo a que Roland Barthes denominou de o grão da voz. Sob tal perspectiva, Gal Costa tem sido uma espécie de compositora também. Ela não escreve canções, nem compõe arranjos musicais; porém instaura no seio da canção o grão da voz.”

A respeito do processo de escuta na linguagem, “do estranho privilégio do som na idealização, na produção do conceito e na presença a si do sujeito”, Derrida, citando o filósofo alemão Hegel, expõe a diferença entre uma apreensão subjetiva feita através dos olhos e outra realizada pelos ouvidos: “Este movimento ideal, pelo qual, dir-se-ia, se manifestara a simples subjetividade, a alma do corpo que ressoa, a orelha (o ouvido) o percebe da mesma maneira teórica que aquela com que o olho percebe a cor ou a forma, a interioridade do objeto tornando-se assim a do próprio sujeito. A orelha (ouvido) ao contrário, sem se voltar praticamente para os objetos, percebe o resultado do tremor interno do corpo pelo qual se manifesta e se revela, não a figura material, mas uma primeira idealidade vinda da alma”. Tremor interno que soltava no ar quente carioca versos tão doídos e viscerais como Não choro / Meu segredo é que sou rapaz esforçado / Fico parado, calado, quieto / Não corro, não choro, não converso.

Nas lembranças do exílio, que se confundem com canções de amor, Como dois e dois, Não se esqueça de mim e Coração vagabundo, todas compostas por Caetano Veloso.

Mas é na tríade Dê um rolê, Vapor barato e Luz dos olhos que o disco encontra seu âmago. Talvez a sensação de grau zero e a premissa política, estética, linguística estejam presentes nessas faixas devido à assinatura de Waly nas duas últimas (Vapor barato em parceria com Jards Macalé) agregada ao discurso público descabelado e ao vínculo antigo, da época do pátio escolar, com Moraes Moreira (autor de Dê um rolê, juntamente com Luiz Galvão). Enquanto eles se batem, dê um rolê e você vai ouvir/ Apenas quem já dizia/ Eu não tenho nada/ Antes de você ser eu sou, esbraveja Gal, um corpo que parecia entender exatamente o que a filósofa feminista norte-americana Judith Butler quis dizer quando escreveu, em Undoing gender: “Corpos não são habitados como espaços vazios. Eles estão, em sua espacialidade, também em andamento no tempo: agindo, alterando a forma, alterando a significação — dependendo das suas interações — e a rede de relações visuais, discursivas e táteis que se tornam parte da sua historicidade, de seu passado, presente e futuro constitutivos”.

PEFORMATIVIDADE

Na linha do pós-estruturalismo, dialogando com as obras de Derrida e Hegel, Butler surge como um dos grandes nomes da filosofia contemporânea, focada em estudos sobre feminismo, identidade e sexo. Em suas investigações, a norte-americana travou um embate teórico com a ideia do performativo levantado pelo filósofo inglês, J. L. Austin, em 1962.

De acordo com Austin, era preciso sair da discussão baseada em verdadeiro-falso, descritivo-informativo e partir para o fazer algo. A esse axioma, ele deu o nome de performativo. Butler escolhe abordar o tema radicalizando a sua interpretação da linguagem, como escreve a pesquisadora e professora Joana Plaza Pinto, em artigo publicado na revista Cult: “A autora prefere discutir uma teoria da ação, de influência fenomenológica, que seja radical em sua visão da linguagem, que torna o próprio sujeito objeto de seu fazer”. Em 1997, ela cunha o termo performatividade em sua obra Excitable speech: a politics of performative, na qual questões sobre linguagem e subjetivação são debatidas.

Acerca da temática do ato de fala, segundo os pensamentos de Butler, Joana Plaza disserta: “O ato de fala, na sua eficácia performativa, obriga — violenta e arbitrariamente — o corpo a espaços de inteligibilidade, de regulação e legitimação. A eficácia violenta do ato de fala é um duplo: retirando sua força ilocucionária do ritual que o compõe, o ato da fala mantém, para além do ritual, o traço da força que ajudou a produzir”. Com seu entendimento do corpo como substância senhora do Tempo, que permanece em constante jornada espacial visando alcançar, pelo ato da fala, e da ação performativa, diferentes lugares — políticos, representativos de gênero, linguísticos, narrativos, poéticos —, Butler parece delimitar — com certo rigor — a arrebentação provocada por Gal Costa na transgressão dos anos 1970. Porque a coisa mais bonita da geografía é tentar aprisionar nos símbolos cartográficos a imensidão desenfreada do corpo terrestre.





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