jueves, 18 de mayo de 2017

2012 - DICIONÁRIO POÉTICO CAETANO VELOSO



A obra do cantor e compositor baiano, que completa 70 anos, é analisada por artistas e críticos. 

Matéria publicada no caderno Eu& Fim de semana do jornal Valor Econômico, do dia 3 de agosto de 2012.


Sexta-feira e fim de semana, 03,04 e 05 de agosto de 2012 
Jornal Valor Econômico 
Suplemento Eu& Fim de Semana 
São Paulo, 03 de agosto 2012.


Dicionário poético Caetano Veloso

Por Gonçalo Junior* | Para o Valor, de São Paulo 



Caetanear, o verbo. Existe? Djavan talvez tenha sido o primeiro a identificar - e a verbalizar - na obra de Caetano Veloso um jeito pessoal de compor que poderia ser entendido em conceito mais amplo: do artista que compôs uma mitologia própria, formada por personagens, estilos, expressões, termos e usos experimentais da língua portuguesa - vindas do modo peculiar de catalisar desde expressões populares e da cultura pop ao concretismo. A isso se poderia chamar de "caetanear o que há de bom", segundo a música "Sina"? A expressão pode ser entendida do modo mais simples possível: "Compor como Caetano". O próprio Djavan interrompe a gravação de seu próximo disco para dizer que não teve pretensão alguma de definir o estilo do compositor e cantor baiano, que completa 70 anos na terça-feira. "É apenas uma homenagem ao amigo, não significa que quis me referir a um gênero musical, um jeito de compor ou cantar", diz, bem-humorado.

Caetanear ganhou todos os sentidos possíveis. Se não é uma definição, provavelmente Djavan não se importaria em emprestar o termo para se tentar explicar por que, ao completar também 45 anos de carreira, Caetano não conheceu ostracismo ou esquecimento. Pelo contrário, extrapolou o campo da música e é até hoje um dos nomes mais influentes da cultura brasileira. De certo modo, ele mesmo não deixa. Ora com um comportamento inquieto que jamais lhe permite se acomodar para fazer música, ora em polêmicas nas páginas dos jornais e das revistas ou pela internet. Isso também é caetanear. Ou não? "Caetano é quem tocou mais fundo na música, na arte, no pensamento, no comportamento de nosso tempo. Sua visão multifocal é um dissolvente das ideias prontas, e sua inspiração e sua coragem são apostas permanentes na possibilidade do melhor, sem deixar de amar a vida no que ela é. Talvez seja esse o maior curto-circuito que ele produza", observa José Miguel Wisnik, músico, compositor, ensaísta e professor de literatura da Universidade de São Paulo.

Caetanear pode ir além da música em si e chegar ao aspecto intelectual da criação. É o que diz o antropólogo, poeta e compositor Antonio Risério. "O óbvio, correto e imediato é realçar a presença musical de Caetano em nossa música, como cantor e compositor. Mas é também interessante e importante - até em termos comparativos internacionais, geracionalmente, já que compositores brasileiros são, nesse particular, muito mais sofisticados do que Lennon e Jagger, por exemplo - ressaltar a presença intelectual de Caetano na música, com sua formação de base marxista, seu prisma antropológico, seu pleno conhecimento do seu ofício e, ao mesmo tempo, dos clássicos do pensamento brasileiro, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, passando por Sérgio Buarque".

Segundo Risério, com todo o gosto por floreios e digressões de seu temperamento barroco, "Caetano tem o dom de avançar rapidamente em direção às questões essenciais - e ao essencial das questões -, exibindo uma visão do Brasil que impressiona pela lucidez e surpreende muitas vezes pelo inesperado dos ângulos e luzes de leitura".

Caetanear, na deixa de Risério, seria defender o que para muitos críticos parece indefensável: o valor da música popular feita na Bahia desde a década de 1980, que costuma ser rotulada genericamente de axé music. Caetano, afinal, com seu jeito passional, tem certa razão quando prega o valor da música que vem do povo, não importa seu caráter comercial. O mesmo espírito que o levou a aceitar o convite para gravar "Você não Me Ensinou a Te Esquecer", para o filme "Lisbela e o Prisioneiro", tida por muitos como um dispensável sucesso da música brega. Ele, então, deu uma dramaticidade comovente aos versos, revelou sua poesia, com trocadilhos geniais. E deixou seu autor, Fernando Mendes, feliz. Agora, a canção volta na novela "Gabriela", como tema do personagem Nacib, após sua separação de Gabriela. Até o último capítulo, será tocada 142 vezes. "Caetano sempre foi assim, grava o inesperado, tem a capacidade de sair do padrão, do que se espera do lugar-comum. Foi assim, quando aceitou gravar minha música, que muito me orgulhou", diz Mendes. "Ficou linda a gravação, é indiscutível a inquietação dele quando a canta, impressiona-me sempre". Caetano Veloso, em apresentação no Rio: "Caetano é quem tocou mais fundo na música, na arte, no pensamento, no comportamento de nosso tempo", diz José Miguel Wisnik.


 
17/5/2011 - Caetano Veloso, em apresentação no Rio: "Caetano é quem tocou mais fundo na música, na arte, no pensamento, no comportamento de nosso tempo", diz José Miguel Wisnik – Foto: Marcos Ramos/Agência O Globo

Caetanear para Walter Franco tem um sentido mais transcendental. "Pode ser verbo e substantivo ao mesmo tempo", diz ele, que cedeu a Caetano uma expressão que muita gente pensa ser do autor de "Alegria, Alegria", mas completa do título do Disco Branco, de 1972: "Ou não?". Ele traduz: "Tem a ver com humanizar as características do substantivo. Se o verbo transitivo humanar significa tornar humano, caetanear pode significar tornar-se Caetano, tornar-se a entidade Caetano". Grato por Caetano ter sido "generosíssimo" com ele por toda a vida, Franco chegou a compor com sua ex-mulher Cristina Villaboim e o músico Raulito Duarte uma canção em homenagem ao colega, ainda sob o impacto de ter ouvido "Podres Poderes", em 1984. Ele guardaria os versos inéditos de "Truque do Azul": "Ergueu sua voz/ sereno e veloz/ um poeta, um menino./ Contra o capataz/ cruel e voraz/ foi mordaz e ferino./ Saiba que a tua proeza, rapaz!!!/ Espalhou a turquesa/ de norte a sul./ Saiba e tenha a certeza/ você e a turquesa/ são o truque do azul".

Caetanear tem relação com um jeito de cantar que o próprio artista costuma minimizar ou autodepreciar. Não falta quem discorde disso, como o compositor e musicólogo Luiz Tatit, que tem predileção pelas roupagens que Caetano deu às composições de Jorge Ben Jor. "Além de ser um grande compositor, um dos maiores que o Brasil já teve, Caetano deu outra dimensão ao trabalho do intérprete no universo da canção. Quando canta composição de outros autores [Chico Buarque, Djavan, Cazuza, Guilherme Arantes, Luiz Gonzaga etc.] expõe conteúdos que estavam inscritos na música, mas nem sempre revelados pelas interpretações já existentes". Para Tatit, talvez ele tenha iniciado esse trabalho com reinterpretações de faixas de Jorge Ben Jor. Quando cantou "Charles, Anjo 45", "Zumbi" e "Jorge de Capadócia", por exemplo, explicitou o forte conteúdo mítico, geralmente neutralizado nas execuções dançantes do próprio compositor carioca. "Às vezes, com recursos de desaceleração do andamento melódico, às vezes, com ênfases em algumas palavras da letra, ele sempre acaba reapresentando a canção para os ouvintes. O auge dessa prática de transformação das obras pelo canto foram seus álbuns dedicados à canção hispano-americana ('Fina Estampa') e americana ('A Foreign Sound'). Hoje, Caetano é um dos maiores cantores do mundo."

Caetanear, ao que parece, tem ainda a ver com o jeito de o artista se relacionar e formar longas amizades. Nos primeiros tempos, Caetano estava bem acompanhado por jovens que fariam a história da MPB no meio século seguinte e com ele dividiram a intimidade de uma revolução que surgia: Gilberto Gil, Nana Caymmi e Dori Caymmi, Gal Costa, Torquato Neto, José Carlos Capinam, Jorge Mautner e, claro, a mana Maria Bethânia. Sua relação com Gal, sem dúvida, é uma das mais longas e intensas. Desde sempre. "Caetano é um compositor com quem tenho uma grande afinidade, desde o meu começo", diz ela. "Ele é o meu compositor especial, meu grande e querido amigo, meu irmão espiritual." Nana lembra-se dele como um irmão que escolheu. "Embora não o tenha perto, sinto ele sempre como alguém muito especial em minha vida". E faz uma revelação sobre a canção dele que mais a impressionou, "Alegria Alegria", semente maior do caetanear ("pelo tema, pela novidade, por ser uma coisa completa, feita e cantada por ele num festival e que marcou uma época"). Em 1967, ela pediu a Caetano que passasse na casa do amigo Sergio Feiner e depois seguissem até seu apartamento. Na saída, Sergio, apressado, disse a ele: "Não posso sair de casa sem lenço e sem documento". Caetano gostou da frase e a MPB nunca mais foi a mesma.

Caetanear é também ter erudição musical e memória musical. O produtor de TV Fernando Faro acompanha Caetano desde que ele surgiu. "O primeiro programa de que ele participou em TV foi meu, o 'Móbile', embora no seu livro fale que quem o lançou foi Nilton Travesso. Quando nos reencontramos, eu lembrei ele disso, que concordou comigo. Na ocasião, cantou a música de sua autoria 'Rio'. Caetano lhe teria dito: "É mesmo, bicho, estou lembrando agora, faz tanto tempo que não canto essa música". Para Faro, Caetano é sempre novo, sua última proeza, em seu mais recente disco, foi o negócio da música eletrônica. Ele carrega em si essa incrível linguagem musical, a capacidade de inovar sempre. O produtor o considera uma enciclopédia musical. "Ele ficou toda a infância e adolescência ouvindo rádio e música. A natureza, por outro lado, deu-lhe uma memória musical incrível. Tudo isso faz a diferença, dá segurança para ousar, arriscar. Como conhece tudo, sabe o que está falando ou fazendo. Soma-se a isso a coragem de fazer coisas incríveis, sem ligar para críticas."

Caetanear é o termo que Rodrigo Lemos, guitarrista de A Banda Mais Bonita da Cidade, usa para "designar algum maneirismo ou inovação em música". Sérgio Ricardo ressalta que caetanear é simplesmente o talento extraordinário que Caetano tem para traduzir seus sentimentos de forma poética. O designer de discos Elifas Andreato acha que fazem sua diferença "a erudição, a cultura musical, a ousadia e essa capacidade de se renovar, de estar à frente de todos". Apesar de uma obra vasta já feita e consagrada, prossegue, Caetano persegue o vanguardismo. "É o senhor que não sossega, faz coisas instigantes, provocativo, sem jamais deixar cair a qualidade. Mesmo aos 70 anos, ele é muito jovem. Se juntar ele, Gil e Tom Zé, todos com 70 anos agora, são os artistas que ainda fazem a vanguarda no Brasil." Caetanear, enfim, também é atemporal, perene como a obra de seu criador. Leia, a seguir, os verbetes do "dicionário" Caetano.





Araçá azul
Álbum: "Araçá Azul" (1973)

Por Chico César, compositor, cantor e secretário de Cultura da Paraíba
"Araçá Blue" é mais conhecida como "Araçá Azul" porque esse é o nome do disco mais experimental de Caetano Veloso, lançado em 1973. Essa música é marcante para mim por traduzir o disco todo e ter sido nesse ano que comecei a trabalhar na Lunik, loja de discos de minha cidade. Tinha só 8 anos de idade e tudo nele era chocante: a começar pela capa com Caetano magérrimo vestido com uma minúscula tanga vermelha, a sonoridade, a estranheza das canções, a falta de canções. Dizem que é o disco de música brasileira que mais teve devoluções. Mas em Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba, foi diferente: os cinco exemplares dele colocados à venda na Lunik foram vendidos. Achava lindo e ainda acho ouvi-lo com aquela voz de jovem melancólico: "Araçá Azul é o nome mais belo do medo, com fé em Deus eu não vou morrer tão cedo". Está aí, setentão. Profético. Já li alguma coisa sobre Caetano não ter paciência com o que chama de "órfãos de 'Araçá Azul'". Não me sinto órfão, mas sei que, de algum modo, aquilo ajudou a me criar.

Beleza pura
Álbum: "Cinema Transcendental" (1979)

Pedro Luis, compositor e cantor
Essa é uma canção, entre tantas de Caetano, que reúne balanço e extrema sofisticação. Traz sutilezas e referências pessoais e regionais, mas oferecidas de forma universal, louvando belezas, em aliterações preciosas que conferem um ritmo delicioso ao poema, para quem canta ou para quem ouve. Além disso, na versão do próprio Caetano, em "Cinema Transcendental", o arranjo é um ijexá mesclado a ingredientes da música e da cultura pop, que são uma característica marcante no encontro do autor com sua A Outra Banda da Terra. Eu recomendo!

O Ciúme
Álbum: "Caetano" (1987)

Zuza Homem de Mello, crítico e historiador musical
"O ciúme" desmente categoricamente que Caetano Veloso seja melhor letrista que melodista. Atinge o equilíbrio ideal em que a narrativa acompanha a evolução melódica, numa condução que oferece ao intérprete praticamente tudo de que necessita para dar vida a uma canção. Abordando um dos sentimentos mais amargos e incontroláveis, o texto transcorre num sereno cenário onde tudo corre manso, "tudo esbarra embriagado de seu lume... só vigia um ponto negro, meu ciúme". Usando como paisagem o rio São Francisco no trecho entre duas cidades que se espelham, a masculina Juazeiro, que nem se lembra dessa tarde, e a feminina Petrolina, que nem chegou a perceber, Caetano se embrenha metaforicamente alcançando pelo menos dois versos dignos da obra prima: "O ciúme lançou sua flecha preta" e "tantas almas esticadas no curtume". Sob o ponto de vista melódico - no formato A1 (em sol maior), A2 (com alteração no último verso), B (significativamente em mi menor, até o arremate em sol maior para o retorno à tonalidade original), A1 e A2 para encerrar - ele tece um percurso dramático em perfeita consonância com a metáfora criada. Finalmente o arranjo com a guitarra em sofrimento, o andamento lento e a interpretação de Caetano transmitem a sensação sufocante do ciúme que se apossa do personagem. É uma dessas canções em que o tempo só solidifica sua classificação insofismável de obra-prima.

Da maior importância
Álbum: "Índia" (Gal Costa, 1973)

Nando Reis, compositor e cantor
Tudo nessa canção é encantador: a voz de Gal, o violão, a composição. É muito simbólica, sobre o cara - Caetano - que escreve para sua musa. Eu a conheci no disco "Índia", de Gal. Desde a primeira vez que ouvi, teve em mim um grande impacto, principalmente a letra, sobre duas pessoas. Parece-me muito pessoal para Caetano, não é uma coisa distante da sua vida. Mas importa também o modo como é cantada, a forma como letra, harmonia e melodia se completam. É uma música sem refrão, não repete, insinuante. É um marco de inspiração para se escrever uma canção, para se contar uma história que está dentro de você, como se fosse: "Uau, se é isso, sei como fazer". Um detalhe a observar ainda nessa gravação é que o violão de Gil é brilhante.

Estrangeiro
Álbum: "Estrangeiro" (1989)

Laerte, cartunista e quadrinista da "Folha de S. Paulo"
Até o título dessa canção faz pensar num estrangeiro (Albert Camus); segue com Gauguin, Cole Porter, Lévi-Strauss - e termina com Bob Dylan. O show do mesmo nome foi o único de Caetano a que fui - afora vê-lo no palco do "Divino Maravilhoso", na TV Tupi, na glória de sua roupa de plástico. Tenho me sentido no estrangeiro, de muitas formas. Não sei mais onde vivo, a TV Tupi acabou, a cidade onde passei a infância desapareceu numa zona difícil. Acho que não me mudo mais de São Paulo, mais por não gostar de me sentir de outra terra, como me sentiria em qualquer outro lugar. Inclusive aqui. Adoro o modo como o Caetano age livre dentro da letra que canta - inclui notas de rodapé, encontros irreais, pequenas piadas; é uma palestra, "palestra" como a que Noel Rosa troca pelo tango e que só termina "meia hora depois de descer a orquestra". Eu trocaria muitas coisas por essa palestra de Caetano, que é um tango macanudo. E ainda tem o rei nu, tema do meu primeiro cartum medalhado.




Fina estampa
Álbum: "Fina Estampa" (1994)

Margareth Menezes, compositora e cantora
O projeto "Fina Estampa" foi um grande presente, um resgate afetivo, que fortaleceu as nossas relações com a música latina. Os arranjos e seu jeito de cantar hipnotizam. Caetano tem facilidade de surpreender, criatividade, inquietude e irreverência, que influenciou a performance de várias gerações. Tudo o que ele viveu e da forma como viveu o transformou numa muralha zen anticonvencional, deixando sempre no ar o que poderia ser antagônico às expectativas. Seus rompantes de movimento e de pensamento, ao mesmo tempo, expandem e particularizam a forma de se mostrar. Em alguns momentos, expansivo. Em outros, introspectivo. Mas como ele mesmo diz: "É só um jeito de corpo, não precisa ninguém me acompanhar". A canção "Fina Estampa" é uma escolha curiosa. A letra fala de uma rua florida, que fica mais bela com a presença de um cavalheiro que caminha por ela. A música brasileira é essa rua. Caetano, nosso "caballero de fina estampa". "Reluce la acera al andar." Amado, definitivo e necessário.

Gente
Álbum: "Bicho" (1977)

Jards Macalé, compositor e cantor
Desde a primeira vez que ouvi os versos "Gente é pra brilhar/ Não pra morrer de fome", nunca mais saíram de minha cabeça. Acho brilhante essa frase, tão simples e direta, creio que era o que Caetano queria dizer com toda a música, apesar de a letra ser grande. Foi um momento de grande inspiração do poeta maior que ele é. Parece-me algo tão forte e que continua a ser dito e repetido. Por isso é maior e melhor que a própria melodia da música. Pelo menos é uma das muitas coisas que ele fez de que sempre me lembro dessa forma.

Haiti
Álbum: "Tropicália 2" (1993)

Elifas Andreato, designer e artista plástico
É uma música que destaco em sua obra pelo que significa sua mensagem, especialmente a composição da letra. É um panfleto, uma informação que ele acha importante dar sobre um país que tem muitas semelhanças com o nosso. É um poema absolutamente maravilhoso. Na melodia, vê-se algo simples, embora o simples dele seja sempre sofisticado. Melodia e harmonia são coisas que ele faz muito bem em tudo que compõe. Mas é diferente nessa música. Nesse caso, Caetano trabalha com a valorização dos versos. Como grande poeta que é, sabe se fazer ouvir, faz a gente entender a mensagem com gosto pelo que ele está dizendo. Enfim, é preciso entender o recado e ele sabe melhor que ninguém passar isso.

Irene
Álbum: "Caetano Veloso" (1969)

Jorge Mautner, compositor, cantor e escritor
Assim como a visita de Roberto Carlos a Caetano Veloso durante o seu exílio em Londres trouxe muita alegria para Caetano, essa música composta por ele o fazia sorrir, e a mim também, pois, ao recordar a risada de Irene, cantando essa música, todos nós ficávamos contagiados de uma felicidade brasileira e por instantes a vida voltava a ter sentido e o futuro se transformava em otimismo. Por isso ela deve ser vista em seu conjunto e num contexto histórico de nossas vidas.




Joia
Álbum: "Joia" (1975)

José Miguel Wisnik, músico, compositor e ensaísta
A melodia dessa canção é inspirada na música dos índios do Xingu, como boa parte do disco do mesmo nome, o que ressalta especialmente no intervalo de trítono nas palavras "caju" e "na boca". Liberdade selvagem de associar o caju e a Coca-Cola, sem medo do pecado original nem da crítica ideológica.

Língua
Álbum: "Velô" (1984)

Antonio Risério, antropólogo, escritor e compositor
Toda língua é primeiro música (palavras que o recém-nascido ouve como puro som), mas também visão de mundo. Acho que foi Ernst Cassirer quem disse que a língua traça um círculo mágico em volta do povo que a fala. Lembro-me sempre desse círculo quando penso nas relações de Caetano com a língua portuguesa - com o "idiomaterno", como dizia Haroldo de Campos. Nessa canção, tirando Camões e Pessoa para dançar, entregando-se à inovação, ele explicita perspectivas e fascínios. E nos deixa não só culturalmente energizados como inteiramente à mercê do seu necessário, rigoroso, fascinante e comovente amor pela língua portuguesa.

Marinheiro só
Álbum: "Caetano Veloso" (1969)

Luiz Gleiser, diretor de núcleo do "Som Brasil" e "Na Moral"
Para nossa geração, essa composição foi incorporada como um hino à liberdade de poder ser diferente, de ficar fora da matilha, de viver como um lobo solitário. De ser estrangeiro, desterrado na própria terra, singular. Mas com muito suingue e sem perder jamais o equilíbrio, graças ao mix do tombo do navio com o balanço do mar.

No dia em que eu vim-me embora
Álbum: "Caetano Veloso" (1967)

Sérgio Ricardo, compositor e cantor
É impressionante como essa música ainda me toca. Imagine quando a ouvi pela primeira vez, aquela coisa forte, de quem parte em busca de um sonho e se obriga a deixar tudo para trás. Lembro-me bem dele cantando "No dia em que vim-me embora, minha mãe chorou em ui". Lindo isso. Tanto a letra quanto a melodia são sedimentados em valores telúricos brasileiros, uma herança que Caetano trouxe de outros grandes compositores baianos, como Dorival Caymmi e outros. Ele tem essa sensibilidade para impregnar no que faz muito do que aprendeu com seus mestres.

Oração do tempo
Álbum: "Cinema Transcendental" (1979)

Rita Benneditto (ex-Ribeiro), compositora e cantora "Por seres tão inventivo e pareceres contínuo. Tempo, tempo, tempo, tempo. És um dos deuses mais lindos...". "Oração ao Tempo" é uma linda canção de exaltação ao orixá TEMPO, soberano na existência de todos nós. Caetano Veloso reverencia o tempo como o senhor de todas as horas, os minutos e segundos, como uma energia em constante deslocamento. Quando concebi "Tecnomacumba", em 2003, essa música já era uma escolha natural para o repertório, por sintetizar o conceito atemporal do projeto. Caetano gostou da minha gravação e aceitou o convite para escrever a apresentação do CD e DVD ao vivo. Ele encerra o texto em tom premonitório: "Esse disco tem um futuro intrigante e pode vir a dizer mais do que parece agora - é ouvir e esperar". Em outubro de 2012, "Tecnomacumba" completa nove anos de existência, confirmando sua previsão. "Tempo, tempo, tempo."

Podres poderes
Álbum: "Velô" (1984)

Walter Franco, compositor e cantor
Na época em que foi lançada, no fim da ditadura, essa música teve um grande impacto em mim e em muita gente, por causa da sua conotação política. Abordagem, aliás, que se mostrou atemporal, pois vale mais do que nunca hoje. Mudaram os personagens, mas a peça é a mesma. Poeticamente, gosto muito. Em especial, o poder de síntese, a originalidade do discurso, quando Caetano decidiu entrar pelo caminho da política. Historicamente, ele conseguiu sintetizar tudo, de modo que cada um pode tirar as próprias conclusões. Gosto ainda dessa estrutura quase tribal de rock'n'roll que a música tem, em linha reta, digamos assim.

O Quereres
Álbum: "Velô" (1984)

Antonio Cicero, poeta e compositor
"O Quereres" é uma canção que sempre me impressionou. Ostensivamente, trata-se de uma canção de amor em que cada uma das pessoas que se amam não deseja nunca o que a outra deseja ou não é, ou não está - nunca como a outra deseja que seja (ou esteja). Além disso, porém, nessa canção o artista parece estar falando com os muitos admiradores que se queixam de que ele não se mantém fiel à imagem que dele guardavam: de que não compõe ou canta, ou fala, ou age agora como compunha ou cantava, ou falava, ou agia na época em que o admiravam: admiradores que se esquecem de que provavelmente, já nessa época, haviam-no admirado, em parte, justamente porque ele já não compunha ou cantava, ou falava, ou agia como outros artistas costumavam compor ou cantar, ou falar, ou agir; e admiradores que talvez, no futuro... Mas, como diz a canção, "a vida real é de viés": e de viés é também a arte real.


Rapte-me, camaleoa

Álbum "Outras Palavras" (1981)

Carlos Rennó, crítico, pesquisador e produtor musical
Essa canção, dedicada a Regina Casé, além de se referir ao seu grupo teatral à época, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, que fazia sucesso com a peça "Trate-me, Camaleão", aludia também, implicitamente, ao poeta Augusto de Campos, mais exatamente aos seus poemas "Pulsar" (ao qual, por sinal, Caetano deu uma musicalização elogiada por John Cage) e "Quasar", no verso "de um quasar pulsando, loa". São adoráveis as palavras rimando sucessivamente no penúltimo verso da segunda estrofe: "rapte-me", "adapte-me" e "capte-me" seguidos por um "it's up to me" imprevisto e surpreendente.

Sampa
Álbum: "Muito" (1978)

Cacá Diegues, diretor de cinema
Sempre que São Paulo gosta do Brasil, o país fica muito melhor. Mas, como todo amante desconfiado, São Paulo nunca gostou de se deixar amar. Mais do que nos aproximar da cidade, Caetano ajudou-a a se aceitar como ela realmente é e, desse jeito, ser indiscutível objeto de nosso amor. Depois da ronda que Caetano faz com "Sampa", nenhum coração pode mais ficar indiferente a São Paulo.

Tropicália
Álbum: "Caetano Veloso" (1967)

Zuenir Ventura, jornalista e escritor
Um clássico de uma época. Está tudo aí, a síntese de um tempo. Aos 70 anos, Caetano segue caminhando contra o vento como já fazia há quase meio século, sem ranço e em pleno movimento, tirando acordes dissonantes, cheio de alegria e preguiça, os olhos cheios de amores. Como fazia em "Tropicália". Viva a Bahia-ia-ia, Viva a Tropicália-ia-ia, Viva Ipanema-ma-ma e que ano após ano viva Caetano-no-no-no! 


Uns

Álbum: "Uns" (1983)

Paquito Moura, compositor, cantor e crítico musical
No início dos anos de 1980, Caetano finalizou a fase aparentemente mais relax com o disco "Uns". É o fim d'A Outra Banda da Terra e dos discos produzidos por si. Com o pop brasileiro tomado pelo rock pós-punk, a MPB se reinventa a partir do álbum seguinte, "Velô". Caetano recebe críticas de Marcelo Nova, líder da banda baiana Camisa de Vênus, mas não se furta ao diálogo. Pelo contrário, elogia o suposto oponente. A canção "Uns", por sua vez, é um conciso retrato da condição humana, com versos curtos, profusão de rimas em "ão" e "em" e finais de estrofes definidores: "Nunca estão todos", "E não há outros". O poeta da canção fala pouco e bonito do que é comum e singular na gente.

Você é linda
Álbum: "Uns" (1983)

Zizi Possi, cantora
Nessa canção, ouço a beleza da simplicidade musical que por si já expressa o tema tão bem escrito, que soa como poesia. Quem não gostaria de ser essa musa cantada por Caetano? Eu, com certeza!

You don't know me
Álbum: "Transa" (1972)

Romeo Stodart, guitarrista da banda inglesa Magic Numbers
Essa faz parte de um dos meus álbuns favoritos e me influenciou musicalmente. Sempre adorei essa música. Ao gravá-la para homenagear seus 70 anos, pensei em fazer alguma coisa diferente, algo mais rígido e forte em termos de gravação. É uma canção que lida com o isolamento e o sentimento e a sensação de que ninguém sabe realmente quem você é. Focamo-nos nesse aspecto mais do que na própria história do Caetano e seu exílio em Londres. O som dos três primeiros álbuns dele é muito louco e realmente emocionante. São ritmos diferentes e, em termos de composição, suas letras têm muito poder.

Wally Salomão
Álbum: "Cê" (2006)

Ana Cañas, cantora
Um poema para um poeta. Para homenagear seu amigo Wally Salomão, Caetano escreveu essa canção com a aparente simplicidade da ponta da faca. Para mim, Caetano nunca é menos do que Caetano: genial. Absolutamente preciso e solto. Entre acordes tensos escorre o mel do melhor. Amor nítido e real dos corações simpáticos. Não conheci Wally, mas seus livros sempre me contaminaram. Na minha imaginação, uma figura fascinante delirante quente e lúcida. Afinal, como descrever o poeta? Caetano é que sabe.

Zera a reza
Álbum: "Noites do Norte" (2000)

Rodrigo Lemos, guitarrista de A Banda Mais Bonita da Cidade
Não é preciso ser profundo conhecedor de sua trajetória para reconhecer sua voz, seus trejeitos na escrita, seus neologismos... Não raro uso o verbo "caetanear" para designar algum maneirismo ou inovação em música. Essa música, de alguma forma, mostra todo esse compêndio sintetizado. Concreta e levemente bucólica, a canção me remete a alguma passagem da infância, e também me esclarece um dos versos de “Cadê Teu Suin?”, da Los Hermanos (na qual aparece citada).

 



* Gonçalo Junior é jornalista, escritor e pesquisador.

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