domingo, 22 de noviembre de 2015

1971 - INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL










1971
Revista O CRUZEIRO 
n° 7 – 17 de fevereiro de 1971 


Págs. 16 e 17



DAVID NASSER  
(Jaú, 1/1/1917 / Rio de Janeiro, 10/12/1980). Compositor e jornalista brasileiro.


A menina do lado quer saber se gosto de Caetano Veloso. Claro que gosto. E das suas músicas? Claro, claro, menina. E da sua cabeleira? Claro, claro, claro. Gosto do arzinho celestial com que ele nos olha com aqueles olhos de Maria Bethânia, sua irmã de berço trocado. Gosto do andaime novo de harmonia que ele pôs em suas canções, usando a madeira velha de Xavier Cugat. Há juventude, alegria, otimismo na música desse bom baiano. A gente se lembra de como apareceu, naqueles programas de Blota junior, na TV Record, eta baianinho anêmico e cabeludo deixando meio mundo bestificado com sua prodigiosa memória de letras e músicas do passado. Num instante, como foguete, Caetano se projetou ao infinito de uma glória falsa e legítima. Falsa pela pressa. Legítima pelo talento.
O prestígio que a televisão dá ao artista brasileiro (não sei se no resto do mundo é assim) é rápido como gozo de galo. Vem depressa, vai depressa. Aqueles que têm cabeça (como Agnaldo Timóteo, Altemar Dutra) usam o vídeo em doses homeopáticas, cortam o monstro em fatias. Caetano Veloso, poeta vivo, excelente musicista, demonstrou bom senso em parar (ou, antes, em dar uma parada) quando sentiu que o mito estava oco de cupim.


Por estranho que pareça, a Revolução foi o pretexto utilizado por vários artistas que emigraram num falso exílio. O exílio promocional. Entre eles, estava Caetano Veloso. Sim, e possível que tenha havido excesso na repressão, que algumas cabeleiras tenham sido cortadas, injustamente, que esta ou aquela autoridade tenha se zangado com uma linguagem que, de tão simbólica, de tão oculta, estava na cara - e a zanga do coronel ou do delegado, sei lá, terminasse o festival de um socialismo promocional, inautêntico, regado a bom uísque escocês. Daí para justificar o autodesterro vai um oceano de boa vontade.


A maioria dos compositores brasileiros - de comunistas ou, usando expressão mais doce, de socialistas, só tem a barba, a cabeleira, o rótulo. Fazem boa música, trabalham sobre boas letras, porque vêm de uma geração lítero-musical universitária bem melhor que as anteriores, mas sabem que o povo gosta dos canários que cantam nas gaiolas. Por isso se apresentam como vítimas. Houve uma excessão: Geraldo Vandré. Mas este, também, foi longe demais. Cabra-da-peste.


A música é a pátria. A primeira base que depois da língua se procura destruir é a maneira de cantar de um povo. Todas as fronteiras, então, desaparecem e aí começa aquela história de operários de todo o mundo, uni-vos.


O brasileiro tem horror ao ridículo. Virou moda ser tachado de quadrado ou de ufanista brasileiro que falasse de Brasil. O próprio ritmo do samba, vindo nos terreiros da Bahia, virou antiguidade, museu de cera, velharia. Numa época em que todo o mundo cultua seus valores definitivos e eternos em todos os campos, mantendo-os vivos e sagrados juntos aos valores novos e sagrados juntos aos valores novos, o Brasil enterra antes da morte seus maiores. Ary Barroso, Noel Rosa, Lamartine Babo - nunca lutaram tanto para sobreviver como depois da morte.


A televisão cria mitos e os fulmina. Daí essa estratégia inteligente do exílio voluntário. Não posso imaginar que , numa terra em que se lhe ofereça 50 milhões antigos por apresentação, o sr. Caetano Veloso se considere um banido. Um banido que pega o avião tranquilamente no Aeroporto do Galeão, vai até a Bahia, assiste à missa da mãe com os bentinhos no pescoço e fica à espera de que os convites lhe entrem pela casa aos borbotões, subindo, subindo sempre na cotação do mercado musical.


Já imaginaram, então, quando for na vez do Gilberto Gil, outro valor da música popular que tem no velho e imortal Luiz Gonzaga o seu folclore vivo? Vai chegar aqui e pedir ao Walter Clark a estação da Bahia como cachê. Se o Geraldo Vandré, outro da pesada, conseguir luz verde para entrar no Brasil, haverá a maior briga de foice no escuro. Haverá até pool financiado com dinheiro americano. O negócio é vender sabonetes, visando ao seu patrocínio. Ora, esses fatores interligados, num sistema de vasos comunicantes, expulsam do Brasil, tacitamente, aqueles que deles não participam, que honestamente o repelem. O próprio Tom Jobim (de quem trataremos outro dia) compõe no Brasil e vai gravar nos Estados Unidos. Não tem lugar aqui. Mas a estagiária rosa-choque, assim que desembarca um crioulo que o Augusto Marzagão descobriu no W.C. Astoria e contrata para o festival, mal o xexéu pisa o último degrau da escada da Varig, a moça de jornal que também é da pesada quer saber se Frank Sinatra ouviu o último lançamento de Tony Tornado.


Meu povo, fora do Brasil, musicalmente, só se conhecem Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, e ainda se lavam as águas de rosas quando soa a música verdadeira do velho Ary ou do Herivelto. Estoura um sucesso de quando em quando de Edu Lobo na voz de Elis Regina, pipoca, por acaso, um Carlos Imperial que a Brigitte Bardot aprendeu entre duas queimadas na praia de Cabo Frio - mas a verdade é que toda essa história de consagração lá fora, sucesso lá fora, Paris caiu aos pés de beltrano, Londres chorou ao ouvir sicrano, não passa daquela tapeação de a Europa se curvou ante o Brasil. Perguntei a um francês de Montmartre se ele conhecia algum brasileiro e ele respondeu que conhecia Santos Dumont. Contei essa história ao Blecaute e ele estranhou que o homem tivesse descido no Galeão.


Autores de quatro ou cinco sucessos, apesar de bons autores, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros estão a uma distância de Ary, Noel, Tom Jobim Vinícius, Lamartine, Herivelto, João de Barro, Haroldo Lobo e do próprio Chico Buarque de Hollanda - como estamos da Lua. Pode ser que cheguem lá. Acedesse a Antonio Carlos Jobim em perder a dignidade profissional, a pureza de sua criação, a barganhá-la pelos slogans - e seria o Cole Porter brasileiro. Ele sabe, mas, bom colega, não admite em público que, em verdade, em verdade, a maioria desses valores não são falsos, mas se dirige a um público falso, bebe uísque e fabrica cerveja. Fazem música de inseminação artificial.


Exilados não são os compositores brasileiros que vão e vêm quando bem entendem. Exilados são são aqueles, como o próprio Dorival Caymmi, o já citado Jobim e alguns outros, monstros populares, que não querem misturar política e arte - e se tornam estrangeiros dentro de sua própria pátria. É por isso que um inglês de gênio, numa febre de justiça, num ímpeto de revolta contra a pirâmide esmagadora dos falsos valores, pedia uma arte para o povo. O que ele devia reclamar no Brasil era um povo para a arte. Vem um português e diz que educar um povo não é impor-lhe opiniões, não é declarar-lhe que tal frase está em ré. É lhe dar o direito de opção, o que, musicalmente, não existe no Brasil. De reflexos condicionados, somos aquele cachorro de Alagoas que chora qiando ouve a "Minha Vida" cantado pelo Altemar Dutra. E eu não desejo tanto.


É preciso denunciar que há neste país em plena ação um movimento para nivelar todas as idades, todos os gostos, todas as idades, todos os gostos, todas as tendências, todos os valores, na música, no teatro, na pintura, em todas as artes. Quem não gostar de Caetano Veloso tem de comer Gilberto Gil ou almoçar Maria Bethânia ou jantar Gal Costa ou Ivan Lins ou alguém de mesmo cardápio. Pode ser bom, mas há quem goste de feijoada. Vatapá todo dia dá enjoo até em baiano. E o baiano não esquece que até hoje ninguém cantou a Bahia melhor do que Ary Barroso ou Dorival Caymmi.


Se eu gosto de Caetano Veloso? Gosto sim. Só espero que você, leitor do ano 2000, ao abrir por acaso esta revista numa biblioteca qualquer, não pergunte à memória, num comercial gratuito:

- Caetano Veloso? Mas era um dos donos da Casa da Banha?





Em 1991, Caetano Veloso grabó Baião da Penha de David Nasser e Guio de Moraes [Álbum Circuladô].








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